Por André Dick
Em 2017, o diretor Zack Snyder passou por um problema pessoal trágico, o suicídio de sua filha Autumn. Na época, ele continuou filmando Liga da Justiça, mas, quando o filme foi para a pós-produção, acabou se afastando justamente pela questão familiar. A Warner Bros, então, contratou Joss Whedon, diretor dos dois primeiros Vingadores, para finalizar a produção. Isto, no entanto, envolveu refilmagens extensas e uma nova edição. Snyder acabou assinando, mas o estilo parecia, para muitos, apenas de Whedon, sobretudo pelo bom humor de muitas cenas.
Não estou entre os que consideram o filme de 2017 fraco, pelo contrário: creio que Whedon utilizou os personagens a partir de uma base sólida deixada por Snyder, prejudicada, no entanto, por uma edição apressada, que subtraía visivelmente pelo menos meia hora de filme, no desenvolvimento dos personagens do Ciborgue, do Flash e do Aquaman. Por alguns anos, Snyder disse possuir uma versão de diretor, com 219 minutos, uma das que foram descartadas pela Warner. Em 2017, o receio fazia mais sentido do ponto de vista comercial, embora não artístico: um ano antes, Batman vs Superman havia descontentado boa parte da crítica e feito sucesso, mas não o esperado. Era preciso equivaler, para os produtores, as bilheterias bilionárias de Os vingadores – o que, claro, não aconteceu, devido ao fato de os rumores das filmagens prejudicarem também a recepção. E assim se fez que essa versão de Snyder fosse protelada e virasse um movimento de internet, de fãs e admiradores em geral, pedindo por seu corte final (ReleaseTheSnyderCut).
Quando a Warner lançou a HBO Max, parecia a plataforma adequada para abrigar um projeto cheio de percalços, e o estúdio ofereceu a Snyder 70 milhões de dólares para concluir a sua versão tecnicamente. Hoje, 18 de março, ela é finalmente lançada, com o nome Liga da Justiça de Zack Snyder.
Snyder, como se sabe, é um diretor que divide opiniões: quem gosta costuma gostar muito de seu estilo e quem desgosta tem uma reação proporcional. É um dos principais nomes do cinema blockbuster, principalmente na área de HQs, mas com aquilo que já chamei de estilo delirante. Ele não se encaixa muito bem na linha tradicional de diretores que trabalham com orçamentos milionários, que normalmente não lidam com temas polêmicos. Diga-se o que quiser de Watchmen – O filme ou Sucker Punch, e mesmo O homem de aço e Batman vs Superman: são filmes com uma visão autoral, mexendo com temas que trazem, principalmente, a ligação entre figuras que se equivalem a deuses e sua origem (paterna e materna). Isto está na base de toda a sua filmografia, começando por 300 e sua iconografia grega, estendida às conversas de Lex Luthor em Batman vs Superman sobre deuses, no caso deles ameaçadores à medida que podem conduzi-lo ao Asilo Arkham. No entanto, é também um diretor que faz uma animação sobre corujas, A lenda dos guardiões, bastante original, e uma refilmagem de George Romero em Madrugada dos mortos.
O novo Liga da Justiça, com suas 4 horas, um dos filmes mais longos da história, faz jus a este estilo. Tudo nele é construído sob o ponto de vista de que os personagens se ligam a figuras primordiais, mais exatamente o pai e a mãe. Por isso, ao começar a nova versão com um grito de Superman (Henry Cavill) morrendo em Batman vs Superman, que ecoa no horizonte mais longínquo, mexendo com as Caixas Maternas que serão o ponto-chave da narrativa, Snyder logo vai tecer que ele tem ligação com o passado, mais exatamente com o povo de Atlântida e com as Amazonas de Themyscira e suas batalhas seculares. Isto é muito importante para começar a construir a narrativa. Bruce Wayne (Ben Affleck), em seguida, está em busca de Arthur Curry (Jason Momoa), o Aquaman, e a Mulher-Maravilha (Gal Gadot) enfrenta terroristas num banco. Tais passagens na versão de 2017 eram rápidas, mas aqui Snyder dá uma cadência apropriada a elas, como se fossem pequenos elementos que vão formando um todo maior. Ao mesmo tempo, o Lobo da Estepe (Ciáran Hinds) – desta vez com uma armadura de grande projeção visual de Snyder – está atrás das Caixas Maternas, que podem fornecer o poder a Darkseid (Ray Porter), um terrível vilão, dominar a Terra. Sua ida à ilha de Themyscira na versão de 2017 era rápida. Já aqui a construção de suspense e o encadeamento da ação é particularmente impressionante.
Dividindo seu novo Liga da Justiça em capítulos bem definidos, Snyder retoma a imagem de Silas Stone (Joe Morton) como o pai que quis salvar o filho, Victor (Ray Fisher), de um desastre maior e o transformou em Ciborgue. O passado dele, negado na versão anterior, amplia o entendimento de sua ligação familiar e é um dos momentos mais ressonantes na obra de Snyder, fazendo lembrar muito Watchmen – O filme, a figura conturbada do Dr. Manhattan, nas imagens e na condução. Suas cenas jogando futebol americano são plasticamente algumas das mais notáveis. Snyder também faz uma introdução mais detalhada de Barry Allen (Ezra Miller), o Flash, sobretudo numa cena em que salva uma personagem-chave e seu encontro mais minucioso com o pai, Henry (Bill Crudrup), na cadeia. Tais figuras, para Snyder, estão em busca de solucionar suas questões familiares, contudo estão em busca, ao mesmo tempo, de algo que possa fazê-los transcender. Enquanto Victor não aceita aquilo em que se transformou, Allen não consegue ter o emprego desejado para seu pai ficar tranquilo, e Wayne vê em Alfred (Jeremy Irons) um substituto para sua tragédia familiar, como já era bem elaborado em Batman vs Superman.
Isso ficava subentendido na obra concluída por Whedon, entretanto não como aqui, com esses personagens sendo comparados a Aquaman visitando uma figura imponente no fundo do oceano, como se sentisse falta do pai (presente em seu filme solo, de James Wan) e Mulher-Maravilha tentando seguir o alerta das Amazonas para o perigo iminente – e as recordações que ela traz da origem da batalha pelas Caixas Maternas, com deuses do Olimpo, o povo de Atlântida e os Lanternas Verdes, guarda ecos de O senhor dos anéis e 300 e foram completamente picotadas na versão do cinema (há um estilo épico nessas passagens bastante satisfatório). Do mesmo modo, o Flash não tem uma função predominantemente cômica, mas contribui com observações científicas interessantes. Também vemos rapidamente Mera (Amber Heard) e Vulko (Willem Dafoe) em Atlântida, e Hippolyta (Connie Nielsen) na ilha das Amazonas.
Em meio a isso, o espectador acompanha o sentimento de solidão que se abate sobre Lois Lane (Amy Adams) e a mãe de Clark Kent, Martha (Diane Lane). Esse drama pessoal projeta todos os outros, dos filhos numa tentativa de ligação com os pais e na ausência deles, para Clark do pai, e para Bruce de ambos.
Com o roteiro de Chris Terrio, o mesmo de Batman vs Superman, Snyder desenha um painel bastante amplo. Se este era o filme que ele lançaria originalmente, certamente que não, pois há acréscimos. No entanto, esses acréscimos (com novas filmagens) são quase imperceptíveis na ordem em que foram editados, ou seja, este parece sim trazer em maior parte alguma versão descartada pelo estúdio em 2017, com mais desenvolvimento, efeitos visuais mais bem acabados, um vilão menos previsível (com traços de submissão a um poder maior) e uma paleta de cores soturna no estilo de Snyder.
O diretor de fotografia Fabian Wagner, de Game of thrones, havia reclamado da versão de Whedon, e, apesar de eu gostar da paleta de cores do filme que foi aos cinemas – e que na época era ainda dos trailers quando Snyder estava à frente do projeto, ou seja, ele pode também ter modificado no todo para esta –, com seu alaranjado de pôr do sol melancólico em muitas cenas, a versão de Snyder corresponde ao que ele mostrou antes em O homem de aço e Batman vs Superman, ou seja, tem uma real ligação com o universo que ele pretendia desenhar e depois, principalmente a partir do sucesso de Mulher-Maravilha, foi bastante modificado. E tem a ver com o tom de sua obra, agora, inclusive, com o formato 4:3 da tela, buscando uma certa compactação das cenas de ação, fazendo com que o espectador centralize seu olhar num determinado foco. E Snyder utiliza este recurso muito bem, sobretudo numa sequência em câmera lenta do Flash quando ele observa uma pessoa antes de salvá-la, com um compasso exato. Ou quando Clark observa por uma janela o balanço em que brincava quando criança em O homem de aço, numa bela homenagem de Snyder ao início desta jornada fantástica.
O filme finalizado por Whedon funciona, para mim, dentro do seu tom; o de Snyder funciona muito melhor, com outro estilo, mas trazendo várias cenas que muitos achavam que não eram dele, e de fato eram – e não sem um certo humor bastante eficiente em alguns pontos, menos expositivo do que o de Whedon, como aquele do personagem Alfred, por meio de uma atuação precisa do grande Jeremy Irons. O que Whedon fez, em 2017, foi regravar passagens muito soturnas em ambientes mais claros e acrescentar um certo humor desbragado, mais na linha dos filmes de Richard Donner dos anos 70 e 80, embora os de Donner fossem mais profundos e bem acabados, porém a partir da mesma estrutura-base de roteiro. Whedon tentava tornar didáticas algumas cenas que aqui ficam mais subentendidas; estabelecer pontes no roteiro para facilitar o entendimento, o que, por outro lado, quando se vê a versão de Snyder, tornam-se escolhas de um projeto visando principalmente o resultado comercial, e não o envolvimento crescente com uma trama e com seus personagens. Não havia nada na versão de 2017, em termos criativos ou de estrutura, que fosse realmente de Whedon, a não ser a parte inicial e a transformação da obra de Snyder numa espécie de trailer para esta nova versão.
Como legado para o cinema, são dois exemplos de como enxergar um filme de super-heróis, e leve-se em conta que o de Whedon era também aquele que os produtores esperavam, embora as notícias de seus bastidores posteriormente tenham resultado em problemas para a Warner Bros.
Os produtores estavam equivocados: a versão de Snyder é muito superior na elaboração de personagens, temas, diálogos e numa cadência própria de filme de 4 horas, mas sem, surpreendentemente, cansar o espectador. Claro que quem não aprecia em hipótese alguma seu estilo não vai comprar a ideia, mas é muito clara a paixão dele pelo projeto, fazendo um filme do mesmo nível dos seus melhores, talvez até o seu melhor, em novas visualizações.
Ele também se equipara ao que melhor foi feito em termos de adaptações de HQs, não apenas de filmes de super-heróis. A trilha sonora de Junkie XL, assinando como Tom Holkenborg – que fez a de Batman vs Superman com Hans Zimmer e que substitui a de Danny Elfman – é impecável e não se mostra intrusiva e sua perícia para cenas de ação impactantes se mostra novamente ótima, o que é um problema em determinadas obras da DC. Os efeitos visuais são notáveis, principalmente os do Lobo da Estepe, que eram falhos no original, e os do The Flash, assim como aqueles embaixo d’água, muito mais realistas do que os do filme Aquaman. O CGI é atenuado no terceiro ato em relação à versão do cinema, com cores mais soturnas, sem uma coloração vermelha exagerada sobre as imagens escolhida por Whedon. O design de produção também cresce em Liga da Justiça de Zack Snyder, junto com a melhor utilização de vários cenários, em Gotham City, Metropolis, Central City, Atlântida, ilha de Themyscira etc.
As atuações igualmente não destoam, embora me pareça que Gal Gadot tenha feito esta versão original de Liga da Justiça quando ainda não havia feito seu filme solo e as cenas que refez na versão de Whedon, em certa parte, já a traziam depois de sua atuação no filme de Jenkins, mais confortável no papel, mas pode ser apenas impressão, pois não há como ter certeza quanto aos períodos de filmagens. E a Mulher-Maravilha de Snyder é, sem dúvida, um tanto mais violenta do que aquela de Jenkins, o que fica claro principalmente ao final. Fisher é surpreendente como o Ciborgue, Miller consegue equilibrar humor e certo apelo dramático e Momoa e Affleck fazem seus personagens desprendidos em meio a uma luta pela existência na terra, no entanto com competência. E chama a atenção o quanto, em breves diálogos, a atuação de Heard é muito superior àquela problemática que exibe em Aquaman, de Wan, assim como a de Hiands para Lobo da Estepe e Morton como o pai do Ciborgue, especialmente bem numa cena emocional mais perto dos atos finais. (Em seguida, spoiler). Já a participação surpresa de Jared Leto como Coringa mostra não apenas seu talento como ator, como também o fato de que foi desperdiçado em Esquadrão suicida com maneirismos e pouco roteiro. Aqui o ator, mesmo que brevemente, é promissor para futuros projetos.
Em termos de acréscimos, das cenas que foram filmadas para o projeto, percebe-se claramente uma sequência, mas outras, se foram, estão bem disfarçadas em meio às que já existiam, e destaca-se o quanto há de cenas completas que já tinham recortes nos trailers originais de Liga da Justiça, ou seja, é muito provável que o filme a ser lançado era muito parecido com este – com exceção feita à divisão, que possivelmente foi uma ideia posterior, para comportar melhor as 4 horas. Independente de qualquer coisa, Liga da Justiça de Zack Snyder é um dos grandes acontecimentos do ano e um verdadeiro feito diante de tantos percalços. Ele tem uma aura suficientemente distinta para se comparar com Watchmen – O filme, talvez o filme mais arriscado de Snyder, e com Batman vs Superman, seu momento mais subestimado. Para os fãs de quadrinhos e de Snyder é impecável, mesmo que o cineasta atenue seu estilo, empregando poucas canções e pouca câmera lenta, apesar de usá-la bem em momentos específicos. Pessoalmente, é desde já uma das melhores obras de super-heróis já feitas. Em certos momentos, isso é como o reinício da “era dos heróis” – e um reinício com uma visão completamente própria e ainda muito humana. Extraordinário se fosse sintetizar, como tanto queriam os produtores em 2017.
Zack Snyder’s Justice League, EUA, 2021 Diretor: Zack Snyder Elenco: Ben Affleck, Henry Cavill, Amy Adams, Gal Gadot, Ray Fisher, Jason Momoa, Ezra Miller, Willem Dafoe, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Diane Lane, Connie Nielsen, J. K. Simmons, Ciáran Hinds Roteiro: Chris Terrio Fotografia: Fabian Wagner Trilha Sonora: Tom Holkenborg Produção: Deborah Snyder e Charles Roven Duração: 242 min. Estúdio: Warner Bros. Pictures, HBO Max, DC Films Distribibuidora: HBO Max