Por André Dick
Em As confissões de Schmidt, de Alexandre Payne (1961), um dos cineastas contemporâneos mais interessantes (o texto segue com spoilers), Jack Nicholson tem uma das melhores atuações de toda a sua carreira, o que não é pouco. Ele interpreta Warren Schmidt, que acaba de ficar viúvo de Helen (June Squibb) e de se aposentar, mas deseja retomar a vida. Para isso, ele quer fazer uma viagem pelo interior dos Estados Unidos para chegar, em Denver, ao casamento da filha, Jeannie (Hope Davies), o qual quer impedir, pois não gosta do genro, Randall Hertzel (Dermot Mulroney), que, logo à primeira vista, lhe pede dinheiro para negócios pessoais. Além disso, pretende ajudar um menino, Ndugu, da África do Sul por meio de uma agência de caridade. São objetivos de quem, como ele mesmo diz, gostaria de ser visto como alguém importante, generoso e atencioso, e aparecer nas capas de revista, porém está contido dentro de suas amarras.
O filme traz a característica básica dos filmes de Alexander Payne: o personagem central que deseja se encontrar. É aqui que Nicholson consegue ser ainda mais brilhante. Fazendo o Schmidt recém-aposentado e viúvo, que descobre uma traição da mulher com o melhor amigo (a cena em que esvazia o armário dela mostra-se antológica), ele se destaca mais do que todo o elenco, só tendo como equivalente Kathy Bates, como Roberta, a a mãe de Randall. A viagem dele pelo interior dos Estados Unidos é subliminar, mostrando por que gostaria de ser lembrado, numa tentativa de voltar à infância e à juventude, simbolizando a aventura que constitui a formação dos Estados Unidos (a ida ao museu faz parte disso). Trata-se, portanto, de um sujeito que pretende progredir, mas como progredir se a velhice chegou e se os compromissos com a família precisam ser mantidos, caso contrário se cai em solidão absoluta? Nesse sentido, ele é o oposto do produtor de música que Nicholson interpretou no ano seguinte, em Alguém tem que ceder – infelizmente outra de suas últimas atuações até agora (o que é de se lamentar, pois é de 2003; a de Como você sabe não está à sua altura).
A relação com a filha, problemática, é o núcleo de conflito no filme, que se revela cada vez mais interessante a cada passo da trama (entrecortada por pequenos incidentes, embora todos de relevo), escrita por Payne com seu habitual parceiro Jim Taylor. Quando ele precisa se deparar com toda a família do genro, e lembrar da memória da esposa, que acabou de perder, surge um dos momentos mais solitários que o cinema nos mostrou, muito por causa da atuação de Nicholson – e Payne procura no realismo das situações a sua poesia, na sua tentativa de compreender o que o cerca, em que contexto precisa se inserir para que não se sinta abandonado, ou mais próximo das estrelas. Trata-se de um humor patético, característica que ele guarda em comum com Wes Anderson (de Os excêntricos Tenembaums, por exemplo). Esta cena cria um enlace com aquela em que Schmidt está num camping e acaba beijando uma mulher casada, depois de quase torná-la sua psicóloga, mostrando a sua mescla entre infantilidade e insegurança adulta. Ali, já sabemos que as confissões mais profundas de Schmidt se atritam com a realidade. E para Payne, como é comum em sua filmografia, enfrentar o dia a dia rotineiro, como o faz Warren, tem a mesma importância dos descobridores da América – mas não há condescendência nenhuma em relação às suas atitudes.
Warren Schmidt remete ao professor de Eleição, Jim McAllister, interpretado por Matthew Broderick, conhecido pelo Ferris Bueller de Curtindo a vida adoidado, incumbido de organizar uma eleição para diretoria de alunos de seu colégio. É o motivo para ele se deparar com a sua aluna mais ambiciosa, Tracy Flick (Reese Witherspoon, em seu melhor papel até hoje), que pretende ganhar a eleição a qualquer custo. Ele quer colocar outros concorrentes para atrapalhá-la, entretanto só encontra um jogador do time de futebol e um ingênuo, Paul Metzler (Chris Klein, de American Pie, excelente).
Na verdade, Payne, como em seus outros filmes, fala de um indivíduo que gostaria de ser visto pelas conquistas pessoais – que não chamam a atenção – e sair da mesmice. O professor quer vingar através disso o amigo, também professor, que se envolveu com essa aluna e acabou denunciado. Tenta ter filhos com a mulher, Dianne (Molly Hagan), mas está interessado ainda mais em ter uma amante, Linda (Delaney Driscoll) – porém, tudo é visto, por Payne, sem o olhar moralista, em tom de humor e corrossão típicos de sua filmografia. Os personagens nunca agem como se esperava deles, e a lucidez disso é a melhor desculpa para ver um dos bons filmes de colégio já feitos, um dos poucos com real inteligência. Há uma crítica ao comportamento de cada personagem, como ao de uma menina, Lisa (Frankie Igrassia), que, para provocar Tammy Metzler (Jessica Campbell), irmã do outro candidato, o jogador, passa a andar com ele para magoá-la. A irmã resolve se candidatar por vingança ao irmão e à ex-amiga, apenas para tumultuar o ambiente – e Payne é mestre em tumultuar ambientes comuns, porém sempre por meio de uma dramaticidade travada, sem exageros e sem desviar o foco dos personagens para elementos cinematográficos que possam se destacar (seus filmes têm uma direção de arte e uma fotografia sempre naturais, apesar de cuidadosas, por exemplo). Eleição acaba sendo um retrato bastante interessante de certo comportamento político: a da menina que, para não ver a própria mediocridade, passa a ver todos contra ela e seus objetivos – Tracy Flick é o retrato mais bem acabado dessa questão. De qualquer modo, o que mais pode ser acentuado é sua questão entre o que é público e privado – e como os desejos pessoais podem contrastar com o que é considerado justo e dentro das normas.
O filme seguinte sobre os anti-heróis de Payne, Sideways começa como se fosse uma comédia fútil, com piadas e gracejos, mas logo se torna mais densa e séria, com a descoberta de que o personagem principal, um escritor, Miles Raymond (Paul Giamatti), abandonado pela mulher e que sai em viagem com o amigo Jack Lopate (Thomas Haden Church), que está para se casar e é mulherengo, é na verdade um alcoólatra. Em sua obsessão por experimentar vinhos – a viagem é feita por lugares com vinícolas do interior dos Estados Unidos, em Santa Ynez Valley –, Payne desenha o painel de um escritor que não consegue publicar o que considera sua obra-prima, nos moldes joycianos, e tenta preencher sua vida com um novo amor, todavia é sobretudo o retrato de um homem de meia-idade que tenta se encontrar na vida, como acontece em seus roteiros e filmes (como As confissões de Schmidt e Os descendentes).
Giamatti tem uma atuação bastante eficiente, mostrando toda sua desconfiança em relação a uma nova vida e seu desespero de ser aceito, apoiado por um elenco em grande estilo. E Payne novamente mostra o interior norte-americano, o que já acontecia em As confissões de Schmidt, com seus restaurantes de beira de estrada e o isolamento oferecido pela frustração, uma espécie de road movie quase estático e sem aventura. O seu amigo, especialmente, o coloca em várias situações constrangedoras, e representa uma espécie de tentativa de evidenciar a masculinização forçada.
Mas há a sensibilidade insegura de Miles, revelada pela sequência em que ele e seu amigo vão para casa de duas mulheres – Miles se interessa por uma garçonete, Maya Randall, feita por Virginia Madsen, enquanto o amigo fica com Stephanie, a talentosa Sandra Oh. Trata-se de uma pausa romântica muito bem feita, neste sentido, depois com a volta ao isolamento do hotel e, finalmente, um pouco da vivência do bucólico, pelo qual Payne está interessado sobretudo para mostrar o que pode esconder de mais real na estrutura psicológica dos seus personagens.
Estabelecendo relação direta com Sideways, em Os descendentes, Payne está preocupado em tirar de George Clooney a melhor atuação de sua carreira e por isso o filme tem um aspecto trágico familiar, mostrando emoções e constrangimentos dos personagens, característica do cineasta. Ele não gosta desse personagem como gostava do escritor problemático de Sideways – que gostaria de ver sua carreira artística reconhecida –, mesmo que sua assinatura esteja no estilo e na trama, com sua desenvoltura para um roteiro que poderia existir em outros filmes, sendo melhor trabalhado agora. Clooney faz Matt King, um pai de família que mora no Havaí, com duas filhas rebeldes, Alexandra (Shailene Woodley, excepcional) e Scottie (Amara Miller), e cuja mulher, Elizabeth (Patricia Hastie), está na UTI. Para acentuar seu drama pessoal, ela descobre que ela tem um amante – um vendedor de imóveis do lugar (Matthew Lillard), também casado, com Julie (Judy Greer, atriz inexpressiva, que aqui não atrapalha).
O filme basicamente mostra essa busca dele pelo amante da esposa, em meio à venda de um grande terreno da sua família, pretendido sobretudo por seu primo (Beau Bridges), mas é apenas um motivo para mostrar desencontros entre personagens. E o momento em que ele o encontra é o ponto alto desta tensão dispendida ao longo de todo o tempo e do que ele precisa suportar para criar as duas filhas problemáticas, acompanhadas por um rapaz, Sid (Nick Krause), meio namorado de Alexandra, em cuja solidão Matt se apoia para entender a sua própria.
O cenário das praias do Havaí não atenuam este sentimento de perda, e Payne quer que vejamos os personagens como complementares a esta paisagem – por isso, sabemos que eles não podem se desviar do seu passado, que volta a cada instante (seja por meio do coma da mulher, seja por meio do Mal de Alzheimer da sogra), como acontece com Schmidt, McAllister e Milles Raymond – dos outros filmes do cineasta –, exatamente num momento decisivo para a vida de cada um, que concentra todos os momentos, passados ou futuros.
O filme procura, em alguns momentos, representar a ética familiar, e Payne desenvolve isso com talento, dispondo os personagens da maneira mais sóbria, como se fosse um documentário familiar, adquirindo ainda mais intensidade do que aquela mostrada em As confissões de Schmidt e Sideways. As conversas do marido com a mulher em coma permitem a Clooney desempenhar cenas com as quais não estava acostumado, pois em algum momento sempre caía no exagero. Aqui é diferente. Clooney se coloca como um pai de família comum, e acreditamos nisso, com seu ar cansado e corpo arqueado. O momento em que ele reúne os familiares e amigos da esposa para contar a verdade é antológico. Payne filma tudo com mais luz natural do que cinematográfica, o que dá um aspecto de verdade ao que acontece e leva o espectador a se interessar ainda mais pela trama e por esta descendência.
Election, EUA, 1999 Diretor: Alexander Payne Elenco: Matthew Broderick, Reese Witherspoon, Loren Nelson, Chris Klein Produção: Albert Berger, David Gale, Keith Samples, Ron Yerxa Roteiro: Alexander Payne, Jim Taylor Fotografia: James Glennon Trilha Sonora: Rolfe Kent Duração: 103 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures / Bona Fide Productions / MTV Films
About Schmidt, EUA, 2002 Diretor: Alexander Payne Elenco: Jack Nicholson, Kathy Bates, Hope Davis, Dermot Mulroney, June Squibb, Howard Hesseman, Len Cariou, Harry Groener, Connie Ray, Mark Venhuizen, Cheryl Hamada, Phil Reeves Produção: Michael Besman, Harry Gittes Roteiro: Alexander Payne, Jim Taylor Fotografia: James Glennon Trilha Sonora: Rolfe Kent Duração: 125 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: New Line Cinema
Sideways, EUA, 2004 Diretor: Alexander Payne Elenco: Paul Giamatti, Thomas Haden Church, Virginia Madsen, Sandra Oh, Patrick Gallagher,Missy Doty, M.C. Gainey Produção: Michael London Roteiro: Alexander Payne, Jim Taylor Fotografia: Phedon Papamichael Trilha Sonora: Rolfe Kent Duração: 123 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Fox Searchlight Pictures / Michael London Productions / Sideways Productions Inc.
The descendents, EUA, 2011 Diretor: Alexander Payne Elenco: George Clooney, Judy Greer, Shailene Woodley, Matthew Lillard, Beau Bridges, Robert Forster, Rob Huebel, Michael Ontkean, Mary Birdsong, Sonya Balmores, Amara Miller Produção: Jim Burke, Alexander Payne, Jim Taylor Roteiro: Alexander Payne, Nat Faxon, Jim Rash Fotografia: Phedon Papamichael Duração: 117 min. Distribuidora: Fox Film Estúdio: Ad Hominem Enterprises