25 melhores filmes brasileiros dos anos 2000

Por André Dick

Este artigo traz 25 melhores filmes brasileiros dos anos 2000, uma das décadas mais fortes para o cinema brasileiro de modo geral. Com o talento de cineastas como Fernando Meirelles, Jorge Furtado (até então diretor de curtas), Sandra Werneck, Laís Bodansky, Bruno Barreto, Jorge Padilha, Walter Salles, Anna Muylaert, Luiz Fernando Carvalho, entre outros, o cinema brasileiro adentrou o século com uma intensa criatividade no campo cinematográfico. Antes da lista, as menções honrosas.

Era uma vez… (2008, Breno Silveira)
Cazuza – O tempo não para (2004, Sandra Werneck e Walter Carvalho)
A mulher invisível (2009, Cláudio Torres)
Meu tio matou um cara (2004, Jorge Furtado)
O casamento de Romeu e Julieta (Bruno Barreto, 2005)
Redentor (Cláudio Torres, 2004)
Loki – Arnaldo Batista (2009, Paulo Henrique Fontenelle)
Entreatos  (2004, João Moreira Salles)
Salve geral (2009, Sérgio Rezende)
Se eu fosse você (2006, Daniel Filho)
Jean Charles (2009, Henrique Goldman)
Durval Discos (2002, Anna Muylaert)
Estômago (2008, Marcos Jorge)
Amarelo manga (2003, Cláudio Assis)
Ônibus 174 (2002, José Padilha e Felipe Lacerda)
O cheiro do ralo (2007, Heitor Dhalia)
O xangô de Baker Street (2001, Miguel Faria Jr.)
Bellini e a esfinge (2002, Roberto Santucci)
A partilha (2001, Daniel Filho)
Dom (2003, Moacyr Góes)
Mutum (2007, Sandra Kogut)
O céu de Suely (2006, Karim Aïnouz)

Com Marcos Palmeiras interpretando Villa-Lobos mais jovem e Antônio Fagundes como o músico já mais velho, este filme de Zelito Viana é uma obra importante por conseguir trabalhar uma das figuras mais surpreendentes e geniais da arte brasileira de todos os tempos, com uma obra impecável. Letícia Spiller aparece bem no papel de Arminda Neves d’Almeida em uma narrativa montada a partir de flashbacks de modo eficiente e algumas referências curiosas à história do Brasil.

Neste filme de Sandra Werneck, Carlos (Murilo Benício) e Júlia (Carolina Ferraz) combinam de ir ao cinema. Ela acaba faltando ao encontro e, a partir isso, Werneck expõe três possíveis histórias de amor, ou seja, versões diferentes da mesma história. Com um olhar sensível e romântico sobre a realidade, Werneck extrai boas atuações do elenco e desenvolve de forma interessante os personagens. Na base da narrativa, a aceitação dos amores, de histórias diferentes e que podem se encontrar.

Dirigido por Nando Olival e Fernando Meirelles, Domésticas é um panorama muito bem executado sobre uma das profissões com temática mais interessante do cinema brasileiro, a julgar pelo sucesso do posterior Que horas ela volta? Aqui o tom bem-humorado, as situações reveladas sob uma ótica bastante particular, faz uma narrativa brilhar por si só. Ao mostrar uma visão multifacetada sobre o trabalho das personagens principais, Meirelles já revela a eficiência na condução e edição que se tornariam exímias em Cidade de Deus.

Estreia de Jorge Furtado na longa-metragem, Houve uma vez dois verões é um retrato autêntico e divertido da adolescência, mostrando um menino, Chico (André Arteche) que se apaixona por uma garota, Roza (Ana Maria Mainieri) na praia onde vai veranear. Com uma trilha sonora impecável, Furtado mostra esses personagens com uma certa ingenuidade e bom-humor sem nunca cair para a grosseria ou superficialidade, ao lado do amigo Juca (um Pedro Furtado muito inspirado). O próprio título homenageando um clássico dos anos 70 desperta certa nostalgia, assim como as paisagens solitárias parecem conduzir as ações de modo único.

A direção de Oscar Rodrigues Alves e Branco Mello, com uma reunião extraordinária de imagens dos Titãs, torna este documentário sobre a grande banda de rock brasileiro num dos referenciais para o gênero. Sem perder um minuto, o filme consegue focar o movimento e a explosão de um grupo com artistas multifacetados (Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Tony Belloto, Sérgio Britto, Charles Gavin, Nando Reis e Paulo Miklos), com sua combinação entre poesia e explosão sonora, que consegue marcar sua época por meio de apresentações inesquecíveis, em festivais ou programas de auditório. O filme tem uma parte sonora impressionante, assim como consegue elaborar as características de cada músico nas viagens pelo Brasil ou no exterior.

Bossa Nova tem direção de Bruno Barreto, com roteiro a partir de Miss Simpson, de Sérgio Sant’Anna, e traz roteiro assinado por este, Alexandre Machado e Fernanda Young. Mary Ann Simpson (Amy Irving) é uma professora que vive no Rio de Janeiro ensinando inglês. Seus estudantes vão de um jogador, Acácio (Alexandre Borges), passando por uma mulher obcecada por computadores, Nadine (Drica Moraes), que não parecem interessados em desenhar laços de ligação, até Pedro Paulo (Antônio Fagundes), um advogado que recém se separou. Como boa parte da obra de Barreto, Bossa Nova é agradável e bem-humorado, parecendo uma comédia romântica um pouco agridoce.

Dirigido por José Henrique Fonseca, O homem do ano se baseia no romance O matador, de Patrícia Melo, e foi adaptado para o cinema por Rubem Fonseca. Com filtros de fotografia, curiosos, O homem do ano mostra dois amigos que fazem uma aposta, a partir da qual há a transformação de Máiquel (Murilo Benício), que aparece ao lado de Cledir (Cláudia Abreu). Essa transformação leva o personagem central a um extremo, levado de maneira eficaz por Benício, com uma atuação interessante e com nuances.

O filme de Bruno Barreto tem uma qualidade indiscutível: não é exagerado nem demagógico. O diretor, que vinha alternando obras faladas em inglês (como Voando alto) e em português (O casamento de Romeu e Julieta), ou com a mistura entre os dois idiomas (como é o caso da comédia romântica Bossa Nova, com Antônio Fagundes e Amy Irving), sabe como filmar uma história depois de muitos anos de experiência atrás da câmera. Ou seja, Barreto sabe como tornar, por exemplo, o cenário que foca num elemento tão importante da narrativa que parece um personagem à parte. Desta vez, ele volta suas lentes para o Rio de Janeiro, filmando a cidade como poucos cineastas. Se havia uma certa melancolia nas praias e ruas de seu filme Bossa Nova, menos ensolarado do que a cidade em que se passa, com personagens situados em meio a um mundo de executivos, em Última parada 174, Barreto reproduz a carga de uma cidade situada entre o centro, carregado de meninos de rua, e as favelas, onde se situa o tráfico de drogas, que parece movimentar toda a cidade. O movimento de câmera, no início, da favela para a cidade representa bem isso.

Depois de quase 20 anos em relação a O beijo da mulher-aranha, Hector Babenco regressa ao universo prisional nesta adaptação do livro de Drauzio Varella, mostrando vários tipos no famoso presídio de São Paulo onde aconteceu a trágica chacina. Com grande elenco, incluindo Wagner Moura e Rodrigo Santoro, o filme consegue desenhar um panorama amplo sobre vários personagens e o que os levou à prisão, vendo muitas motivações em cada um para tentar explicar o retrato de uma tragédia. Se a parte final é o instante mais forte, as tramas que conduzem até lá são sempre interessantes.

Dirigido por Anna Muylaert, É proibido fumar mostra a história da aproximação entre Baby (Glória Pires), professora de violão e viciada em cigarros, interpretada por Glória Pires, e um músico, Max (Paulo Miklos), que não se recuperou ainda de seu relacionamento. Na mudança para o apartamento ao seu lado, Baby se interessa por Max e considera que podem dar certo. A fotografia de Jacob Solitrenick consegue capturar a imensidão de São Paulo e a solidão desses personagens, com breves momentos da Paulista. De forma atenta e orgânica, este filme consegue mostrar como se dá um relacionamento entre pessoas maduras e que tentam se aceitar, compreendendo os defeitos de cada um. Miklos e Pires formam um dueto poderoso nesse sentido, com grande empatia pelo espectador.

Este filme dirigido por Carlos Gerbase não chegou a se tornar uma referência para a crítica, mas, com o passar dos anos, parece que sua trama sobre um casal, Júlio (Roberto Boitempo) e Márcia (Maitê Proença), uma advogada, envelheceu bem. O roteiro se desenrola a partir de uma viagem deles com a filha Guida (Ana Maria Mainieri) e sua amiga Ana Maria (Maria Ribeiro) para uma cidade no interior. Júlio é fotógrafo e se apaixona pela amiga da filha. Parecendo às vezes um conflito entre a cidade grande e o interior, um semifaroeste urbano, Tolerância tem uma trilha que remete ao rock gaúcho e algumas cenas interessantes ligadas a uma edição. Tem até certas reviravoltas para estabelecer um suspense eficaz e um clima meio argentino nas passagens do interior, em contraste com as imagens da cidade grande.

Comédia de Jorge Furtado que retoma a qualidade de O homem que copiava, mostra um grupo de amigos que decide fazer um filme numa cidade do interior gaúcho a fim de exibi-lo junto à comunidade. Com atuações divertidas de Wagner Moura, Fernanda Torres, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e Bruno Garcia, Saneamento Básico – O filme tem ainda o grande Paulo José. Com paisagens da serra gaúcha, tem belos momentos, mostrando um grupo de descendentes italianos querendo ajudar a encontrar condições, na pequena cidade de Linha Cristal, para construir uma fossa na cidade para o tratamento de esgoto. A prefeitura diz não ter condições, mas disponibiliza quase R$ 10.000 para a realização de um filme. Alguns moradores decidem se unir para fazer um filme barato para contar história de um monstro que surge na fossa. Isso é motivo para Furtado trabalhar com algumas das melhores gags em sua trajetória, sempre com o auxílio do elenco em grande performance geral.

Dirigido por Beto Brant, O invasor mostra a revelação de Paulo Miklos na pele de Anísio, um matador contratado por dois homens, Ivan (Marco Ricca) e Gilberto (Alexandre Borges), para matar seu sócio, Estevão (George Freire). Anísio executa o serviço, mas quer se tornar respeitado na sociedade, recorrendo aos dois para isso. A situação acaba gerando um clima de perseguição e pesadelo, levando dois homens a princípio comuns por uma jornada inesperada.

Na mesma linha do sucesso O Auto da Compadecida, Lisbela e o prisioneiro é dirigido por Guel Arraes, adaptado de uma peça de teatro homônima de Osman Lins. Com a companhia de Pedro Cardoso e Jorge Furtado no roteiro com uma sequência incrível de gags, Arraes mostra um malandro (Selton Mello), que se apaixona por Lisbela (Débora Falabella); no entanto, ela está noiva. Outras personagens, como Inaura (Virginia Cavendish), Frederico Evandro (Marco Nanini), Tenente Guedes (André Mattos); e um valentão, Douglas (Bruno Garcia), além de Cabo Citonho (Tadeu Mello), fazem essa trama se mover, com uma metalinguagem muito interessante em alguns momentos.

Inevitável pensar por que Walter Salles escolheu o mesmo menino, Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil neste seu novo retrato sobre o Brasil. O que se percebe ao longo do filme é que ninguém poderia estabelecer um eixo melhor entre Linha de passe e Central do Brasil: o salto de um país que poderia dar certo – sobretudo, em Central, na fuga para o interior, em que o folclore é respeito, ao contrário da cidade grande, em que as culturas se perdem e se tornam em certa medida anódinas – para um país que, em grande parte, evidentemente fracassou na sua tentativa de mudança mais ampla, no filme mais recente. A figura de Dario, um jogador de futebol talentoso que tenta a sorte em várias “peneiras”, é significativa porque ele acaba sempre acusado, em campo, de ser individualista. A pergunta: seria diferente diante da condição em que vive? Esse personagem acaba estabelecendo a ponte com o sonho mais forte visto na trama: o de ajudar a mãe. Contudo, o que chama atenção, sob esse ponto de vista, é que Salles e Daniela Thomas, codiretora, ainda procuram imprimir a mudança em cada um dos personagens. Todos, por meio desse sonho, querem se libertar da sua condição atual. O filho mais novo, Reginaldo (vivido com talento impressionante por Kaique de Jesus Santos), é, por exemplo, talvez mais do que os outros, o retrato dessa procura. Desconfiado de que o pai é o motorista de ônibus que costuma levá-lo à sua escola, ele sonha em aprender a dirigir na Kombi que enferruja no pátio da casa onde vive. A história poderia soar previsível, mas foge ao estereótipo, pois o sonho do menino está ligado diretamente à vida da mãe.

Vencedor do Festival de Berlim em 2008, Tropa de elite quer mostrar a realidade crua. Em relação especificamente à violência – bem menor, por exemplo, do que a apresentada em Cidade de Deus –, o filme não revela mais do que o espectador que acompanha telejornais já imagina acontecer: agressões a “testemunhas”, tiros a esmo, violação de direitos humanos, embora as ditas cenas de tortura devam, infelizmente, ser muito piores na realidade. Mas Padilha quer dar ao personagem principal – com uma presença da voz em off, como em Cidade de Deus, para tentar costurar uma trama fragmentada – o caráter de justiceiro, a começar pela epígrafe que abre o longa-metragem. Ou seja, o policial tem esse caráter que tem – agressivo, impulsivo – porque seria fruto do meio em que vive. Ele também é um homem com transtorno psiquiátrico e sua mulher espera um filho. Com isso, o filme acaba tirando a carga negativa que ele apresenta, tentando humanizá-lo no bom sentido. No entanto, o personagem não tem passado, como não tem futuro: não se sabe por que ele age dessa maneira, quais suas origens. Se Padilha quis mostrar um homem em conflito, acertou em cheio. A questão é se só pode se encontrar um homem incorruptível em quem se revolta literalmente contra o sistema.

O ator Selton Mello talvez tenha a atuação de sua trajetória como o rapaz de classe média alta que cresce em meio a uma visão conturbada de mundo e acaba se transformando num traficante de drogas, mas interessado em aproveitar a vida que o dinheiro oferece do que se tornar um bandido temido. Esta figura, João Guilherme Estrella, ou Johnny, tem relacionamentos dispersos, com amigos e com a própria mulher (Cléo Pires). Baseado num romance de Guilherme Fiuza, mostra as ações desse personagem entre 1982 e 1995, com uma transição muito eficiente do universo barra pesada das drogas para uma tentativa de real alegria na passagem pela Europa. Perseguido pela polícia, Johnny é o retrato do jovem que não quer se desvencilhar da eterna juventude.

Este grande sucesso de bilheteria e crítica dirigido por Marcelo Gomes segue a linha tradicional no cinema brasileira do road movie, inclusive com referências a Vidas secas e a Central do Brasil, no entanto com elementos nostálgicos de um Cinema Paradiso. Passado em 1942, mostra o alemão Johann (Peter Ketnath), que foge da Segunda Guerra Mundial para o Brasil, onde vende aspiras em um caminhão no interior do Nordeste, atraindo os compradores por meio de filmes promocionais. Nas suas jornadas, ele conhece Ranulpho (João Miguel), nordestino que pretende ir para o Rio de Janeiro. Ambos se tornam amigos. Esta história incomum é levada por Gomes de maneira sensível, com personagens interessantes e diálogos eficientes, além das boas atuações principais.

Filme que seguiu Central do Brasil na trajetória de Walter Salles e por isso foi tão contestado. Realmente, é difícil equivaler o talento que vemos em Central do Brasil, entretanto Abril consegue ser um projeto humano, bem interpretado e fotografado de maneira exata (por Walter Carvalho). Em certo sentido, é bem mais universal do que Central. Com base num romance de Ismail Kadere, adaptado por Karim Aïnouz, mostra o conflito entre duas famílias no Sertão, em 1910, sobretudo após a morte do filho de uma delas cometido por Tonho (Rodrigo Santoro), a mando do pai, após a morte de um de seus irmãos. São duas famílias que brigam por território e poder na região. Ele tem um irmão pequeno e se apaixona pelo mundo do circo quando ele passa pela cidade, sobretudo por uma de suas integrantes, Clara (Flávia Marco Antônio). Walter Salles dirige com bastante sensibilidade, mostrando a descoberta dessa criança e desse jovem de um mundo violento.

Talvez seja o primeiro projeto a mostrar o talento de Rodrigo Santoro como ator. Ele faz Neto, um jovem de periferia que tem pais bastante rígidos (Cássia Kiss e Othon Bastos, ambos muito bem), fuma maconha numa construção abandonada com os amigos e passa as suas noites em festas. Certo dia, o pai descobre um baseado em seu quarto e decide, achando também que o seu comportamento é estranho, interná-lo. No entanto, o interna num manicômio. Neto, então, depara-se com uma realidade que desconhecia. Laís Bodansky mostra grande talento ao contar a história, sem cair em maniqueísmos e ao mesmo tempo sendo contundente, sem grande orçamento (visível), mas agilidade na fotografia e na direção de arte, assustadora. A trilha tem canções excepcionais do poeta Arnaldo Antunes, que se encaixam de maneira orgânica na narrativa, a exemplo de “O buraco do espelho”, lido na parede do hospício, ou “Fora de si”, com seus versos quebrados e modernos. É a trilha sonora de Arnaldo que torna o filme tão contemporâneo e, ao mesmo tempo, para gerações diferentes. O momento em que Neto vai a uma festa e se apaixona por uma garota que o menospreza mais adiante mostra a saída da adolescência para a vida adulta, como poucas obras. E os coadjuvantes que contracenam com ele no manicômio são verdadeiramente ótimos, assim como quem faz seus médicos.

Logo depois do nostálgico Houve uma vez dois verões, Jorge Furtado trouxe esta história interessante sobre um rapaz que trabalhava com uma fotocopiadora e se interessa por uma menina que conhece num ônibus. Por meio de um roteiro muito eficiente e ágil, Jorge Furtado vai costurando a relação dos dois e mostrando as inter-relações que os personagens que cercam a trama, interpretados por Luana Piovani e Pedro Cardoso. Trata-se de uma trama labiríntica, com idas e vindas, explorando as motivações do personagem central de modo atrativo, inclusive visualmente.

Com rara sensibilidade, Serras da desordem trata da trajetória do índio Carapiru, que sobrevive ao massacre de famílias de guajás em 1977, colocando o próprio para reproduzir sua trajetória. Há imagens documentadas (sobretudo de jornais televisivos da Globo), mas na maior parte do filme o índio reencena sua peregrinação. Durante os 40 minutos iniciais, não há nenhum diálogo compreensível, ou seja, é mostrada a vida em sua tribo numa das serras do Maranhão, com crianças brincando em meio aos animais, homens e mulheres tomando banho num riacho. De repente, o primeiro sinal de outra civilização: um avião sobrevoa as árvores da floresta. Em seguida, o ataque de alguns fazendeiros com espingardas, com o objetivo de exterminar os indígenas e ocupar suas terras. A cena que segue à fuga de Carapiru do local de extermínio é emblemática: ele corre até os trilhos de trem que cortam a serra onde habitava e espera, com um olhar perdido, o que seria o símbolo da modernidade passar. Nesses primeiros passos, delineia-se o que será Serras da desordem: um filme reflexivo interrompido por uma música que lembra o barulho de trens e aviões. Depois dos minutos iniciais sem diálogos, entra uma música carnavalesca, mostrando imagens do país no fim dos anos 1970, com centenas de garimpeiros na Serra Pelada, os militares no poder, as hidrelétricas – representando o crescimento do país – e o Maracanã lotado. É interessante como Tonacci mostra esse salto do extermínio indígena para o que é considerado “moderno e avançado”. O diretor parece perguntar ao espectador o que seria o Brasil. Pois ele coloca o índio no extremo da modernidade em que o país está ingressando, ou seja, o índio registraria uma mística inadequada à busca incessante pelo poder e pelo dinheiro. A calmaria com que ele retrata a tribo cria um contraponto com a velocidade exigida pelo mundo capitalista, o que pareceria até simplista, não fosse retratado com bastante eficácia.

Esta fabulosa adaptação da peça teatral de Ariano Suassuna, mostrando a amizade entre Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele), originou-se na TV, em formato de minissérie. Em seguida, recebeu uma edição e tratamento para ser lançado nos cinemas. Com roteiro excepcional do diretor Guel Arraes com João Falcão e Adriana Falcão, a narrativa se encontra em Taperoá, na Paraíba, e mostra a interação dessa dupla com alguns habitantes da cidade, entre os quais Eurico (Diogo Vilela) e sua esposa Dora (Denise Fraga). Chicó se apaixona por uma menina rica, mas não imagina o que vem depois: a cidade pode ser invadida por cangaceiros (liderados por Marco Nanini). Guel Arraes consegue costurar a miséria em que vivem os personagens principais com a criatividade deles para sobreviver, e todas as suas ações para não criar ainda mais celeuma na verdade acabam retratando um universo cômico fora de série.

Adaptado do romance experimental de Raduam Nassar, Lavoura arcaica é a estreia no cinema de Luiz Fernando Carvalho, mais conhecido como diretor de telenovelas. Com uma fotografia exuberante e flashes existenciais que remetem a Tarkosvky, este filme se movimenta sobre uma paixão incestuosa do personagem feito por Selton Mello pela irmã (vivenciada por Simone Spoladore). Com longa duração, raridade no cinema brasileiro, nunca deixa de interessar ao acompanhar a vida de um jovem que foge das tradições patriarcais sintetizadas na figura do pai (Raul Cortez) e é encontrado na cidade, depois de fugir, pelo irmão Pedro (Leonardo Medeiros), a quem relata flashes de sua existência até então, mostrando, principalmente, o conflito dele com a religião católica da família. O filme possui uma atmosfera um pouco onírica, sempre que o personagem central se mantém como observador de costumes e danças. Também há uma sensação de gerações se encontrando no tempo, o que remete ao melhor cinema de Malick.

Baseado num romance de Paulo Lins, este segundo filme de Fernando Meirelles (codirigido por Kátia Lund) foi um acontecimento não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Se o filme tinha um estilo de filmagem que lembrava o melhor de Tarantino filtrado por Guy Ritchie, também havia uma naturalidade que não havia nesses filmes. Esta naturalidade se deve à força em mostrar a origem da favela no Rio de Janeiro conhecida pelo nome de Cidade de Deus. A história relata sua criação e os grupos de traficantes que foram se formando nela, com trocas de comando e muita violência para atingir esse objetivo. É contada pela lente de um menino que almeja ser fotógrafo e vive na favela, porém não quer o mesmo destino daqueles personagens que testemunha. Assim, é um relato memorialístico também de um personagem que deseja uma vida contrária àquela que vivencia. Meirelles tem necessidade de mostrar em detalhes a violência, o uso de drogas, os bailes funks, as traições e os reencontros de personagens que achavam ser bons, no entanto acabam sendo maus, sobretudo para si mesmos. Com uma fotografia quase sempre na mão, ou seja, com imagens trêmulas, Cidade de Deus emula um cidade estrangeiro que deu certo, mas oferece uma aceleração visual e de montagem de cenas digna de um mestre jovem como Daniel Rezende (que ajudou a montar A árvore da vida). As sequências passadas no presente, alternadas com o passado, fazem com que Cidade de Deus adquira uma dimensão desconhecida para o cinema brasileiro, e dá a Meirelles o status de grande diretor com uma obra-prima particularmente definitiva.

Moulin Rouge – Amor em vermelho (2001)

Por André Dick

No início do século, o diretor australiano Baz Luhrmann dirigiu Moulin Rouge – Amor em vermelho de forma superlativa, fazendo com que todos os astros se sentissem no maior filme de suas vidas, cinco anos depois de sua versão contemporânea para a conhecida peça de Shakespeare Romeu e Julieta (na versão de Luhrmann, um + ocupando o “e”, como se assinalasse o fim trágico dos personagens), com atuações estelares de Leonardo DiCaprio e Claire Danes, em início de carreira. Nessa adaptação, o cineasta praticamente adiantava todas as suas principais características, também utilizando o design de produção e a fotografia como componentes decisivos de expressão.
Basicamente, em Moulin Rouge, indicado a vários Oscars, inclusive de melhor filme, e vencedor nas categorias de design de produção e figurino, temos a história de um jovem poeta depressivo, Christian (Ewan McGregor), que chega a Paris, mais exatamente ao distrito de Montmartre, em 1889, para escrever num quarto apertado, tendo como vizinhos do andar de cima uma trupe performática liderada por Henri de Toulouse-Lautrec (John Leguizamo). Luhrmann já adota um visual requintado e fantasioso para empurrar o espectador a algo inusitado.

Na ida ao Moulin Rouge, cujo dono é Harold Zidler (Jim Broadbent), para quem Christian e a trupe pretende vender uma peça, Christian se apaixona pela dançarina Satine (Nicole Kidman), cobiçada por seu um homem que quer investir no lugar, o duque de Monroth (Richard Roxburgh). Eles se conhecem depois de uma apresentação de Satine, e o poeta é confundido com o duque, o que tenta contornar afirmando que ele será o escritor de uma peça dedicada a ela, talvez na sequência que define o filme, uma verdadeira coreografia de Kidman e McGregor para esconder que na verdade se apaixonaram à primeira vista.
A Paris de Luhrmann, fantasiosa (há uma lua que evoca Mèlies, o início é uma cortina se abrindo para o espetáculo), com sua Torre Eiffel de CGI e Kyle Minogue como uma Fada Verde, lembra os experimentos de Jean-Pierre Jeunet em Ladrão de sonhos e é verdadeiramente linda em todos os aspectos, parecendo também uma metalinguagem dos próprios escritos de Christian e de como ele percebe a realidade em torno.

O casal feito por Nicole Kidman e Ewan McGregor, por meio de um roteiro simples, consegue ser mais do que simpático, ao lado de todos os vermelhos em profusão, das canções e coreografias exageradas (transformando até “Smeels like than spirit”, do Nirvana, e “Material girl”, de Madonna, em canções de época). Eles representam todos aqueles enfocados sob uma luz de romantismo exacerbado, com trocas de olhares como efeitos de câmera. É Luhrmann que evoca um tempo no qual poetas morriam de tuberculose, mas é (spoiler) Satine que está doente.
Já se falou o quanto este filme é um “ame-o ou deixe-o”; na verdade, toda a filmografia de Luhrmann parece ser assim. Sua estreia Vem dançar comigo o projetou, e Romeu + Julieta anuncia vários elementos deste, com todas as suas cores mais fortes, as quais o combatido Austrália um tanto atenua, sendo novamente resgatadas em O grande Gatsby. Trata-se de um novo caminho para o musical e a reação quase sempre desproporcional dos personagens parece evocar uma experimentação de animações (ecoando também Dick Tracy), incluindo o exagero e câmera acelerada. Não há nenhuma cadência no filme, ou seja, o ritmo é intenso, sem brechas para respirar, o que parece proposital, e na maior parte do tempo funciona.

As cores, o design de produção e os figurinos são notavelmente belos, evocando grandes musicais da era dourada de Hollywood, como Nasce uma estrela e Cantando na chuva, dos anos 50, assim como de suas reprises em New York, New Yok, dos anos 70, mesclando um pouco com musicais de Bollywood e ambientações que ecoam As mil e uma noites. Cada enquadramento, quando o filme não recorda um videoclipe, parece um extrato de pintura de época. O elenco acentua para que essa impressão se estabeleça, não apenas McGregor, num de seus melhores momentos, mas, sobretudo, Kidman, um ano antes do seu Oscar por As horas e mostrando bom equilíbrio entre o humor e o drama, e Broadbent. O vilão é caricato porque a história em marcha é sobre um amor proibido, que vai se estabelecendo na peça sendo escrita. Moulin Rouge, com seu exagero habitual, acaba sendo o retrato de uma época fantástica de cultura, contracultura e underground mesclado ao mainstream da Paris. Embora não haja nada de verdadeiramente novo, ele é um experimento visual que impõe respeito pela tentativa de grandiosidade e homenageia sua época de maneira poética. Visto hoje, é ainda um exemplo de como trazer fôlego para um gênero tão explorado por décadas.

Moulin Rouge!, EUA/AUS, 2001 Diretor: Baz Luhrmann Elenco: Nicole Kidman, Ewan McGregor, John Leguizamo, Jim Broadbent, Richard Roxburgh Roteiro: Baz Luhrmann, Craig Pearce Fotografia: Donald M. McAlpine Trilha Sonora: Craig Armstrong Produção: Martin Brown, Baz Luhrmann, Fred Baron Duração: 128 min. Estúdio: Bazmark Productions Distribuidora: 20th Century Fox

 

A voz suprema do blues (2020)

Por André Dick

Há alguns filmes muito interessantes sobre o blues, entre os quais se pode destacar uma comédia decisiva dos anos 80, Os irmãos cara de pau. Em seguida, temos Bird, de Clint Eastwood, Mais e melhores blues, de Spike Lee, com Denzel Washington, e A encruzilhada, com o jovem Ralph Macchio, de Karatê Kid, apenas para citar alguns exemplos. Este gênero é sempre explorado com a propriedade que lhe cabe.
Lançado na temporada do Oscar certamente para concorrer a prêmios, A voz suprema do blues, é dirigido por George C. Wolfe, e traz a última atuação de Chadwick Boseman, conhecido por ter interpretado o Pantera Negra e bastante consistente também em Destacamento Blood, de Spike Lee, do início de 2020. Junto com ele reaparece Viola Davis, alguns anos depois da atuação exitosa em As viúvas. Pela origem teatral (uma peça de August Wilson), A voz suprema do blues guarda uma sequência ininterrupta de diálogos e lembra, nesse sentido, Um limite entre nós, que Viola fez com Denzel Washington anos atrás; esse ator é um dos produtores do filme. O cenário é ainda mais circunscrito, mas, de algum modo, não há nenhuma queda na frequência com que o espectador recebe o grande número de informações, com a ajuda da fotografia luminosa e detalhista de Tobias A. Schliessler.

É interessante perceber como o melhor de sua narrativa é a maneira como consegue extrair um retrato de época da gravação de uma cantora, Ma Rainey (Viola), cantora vinda do Sul conhecida como a “a mãe do Blues” com um grupo de músicos, formado por Toledo (Glynn Turman) no piano, Slow Drag (Michael Potts) no baixo e Cutler (Colman Domingo), além do trompetista Levee (Boseman0), e a ligação momentânea que se dá entre eles. A gravação é num estúdio administrado por Irvin (Jeremy Shamos), sob a produção de Sturdyvant (Jonny Coyne). Rainey também tem um sobrinho gago, Sylvester (Dusan Brown), que ela quer que faça a introdução da gravação, e e amante de sua corista, Dussie (Taylour Paige), pela qual Levee vai se interessar – mesmo como uma maneira indireta de duelar com a grande cantora. Ele quer ser visto como um grande compositor e parece ter músicas para isso, aguardando apenas uma oportunidade para revelar seu talento solo.
A primeira meia hora de filme mostra a reunião do grupo de músicos, à espera da cantora, que se reúne numa sala para trocar ideias, sendo Levee, que acabou de comprar um par de sapatos amarelo, é o mais animado. Quando Ma chega ao local, ela traz seu talento e sua carga de exigências de alguém que pode obter dinheiro para a gravadora com novos sucessos musicais. Neste ponto, o filme de Wolfe trabalha muito bem a tensão que se desenha durante a pré-gravação, quando Ma, exausta e sob calor intenso, deseja uma Coca-Cola antes de começar a gravação.

O refrigerante, claro, é apenas um símbolo para o desejo de ela representar o domínio sobre os outros homens do estúdio, que precisam esperá-la-la e o mesmo se fala para a sua insistência em fazer com que o sobrinho abra a gravação, com inúmeras repetições. E o refrigerante é, como Ma para o filme, um símbolo também de certo poder, estendendo-se aos outros como um aceno para o sucesso comercial almejado pela gravação.
A grande presença de Boseman lhe concede uma oportunidade derradeira para mostrar seu talento e neste personagem ele insere todo um conjunto de características para o personagem soar como alguém dos anos 1920. Levee é um personagem que, parece óbvio e pouco consistente, mas guarda um passado tenebroso que passa a caracterizar seus passos. Por sua vez, Viola consegue mesclar um certo ar de superioridade em relação aos demais e uma insegurança pessoal, mostrando sua melhor atuação ao lado daquela exatamente de As viúvas. Boseman e Viola compõem uma dupla inesquecível e que transforma o filme sob variados pontos de vista. O diretor, como na peça original, afasta esses dois personagens exatamente para delimitar a distância que deve existir: a cantora está consagrada, o trompetista procura seu espaço. No fundo, Levee quer estar onde Ma está, e por isso o interesse imediato por sua amante. Mas, de certo modo, esse desejo parece se converter em algo inesperado, porque não há um espaço destinado a ambos, e é o que A voz suprema do blues mais apresenta de desolador dentro de seu estilo dinâmico.

Ma Rainey’s Black Bottom, EUA, 2020 Diretor: George C. Wolfe Elenco: Viola Davis, Chadwick Boseman, Glynn Turman, Colman Domingo, Michael Potts, Jeremy Shamos, Taylour Paige, Dusan Brown, Jeremy Shamos, Jonny Coyne Roteiro: Ruben Santiago-Hudson Fotografia:Tobias A. Schliessler  Trilha Sonora: Branford Marsalis Produção: Denzel Washington, Todd Black, Dany Wolf Duração: 94 min. Estúdio: Escape Artists, Mundy Lane Entertainment Distribuidora: Netflix

 

Gangues de Nova York (2002)

Por André Dick

O diretor Martin Scorsese havia saído de um experimento chamado Vivendo no limite, com Nicolas Cage como o motorista de uma ambulância, em diálogo com Taxi Driver, seu clássico dos anos 70, um pouco antes de ingressar num dos seus projetos mais ambiciosos, Gangues de Nova York. Nunca foi o desejo de Scorsese recontar a história dos Estados Unidos, preferindo mostrar o universo de gângsteres em obras como Os bons companheiros, Cassino e O irlandês, a desestrutura psicológica baseada no traço cômico em O rei da comédia e Depois de horas, assim como certo medo que se reflete em indivíduos, em peças como Cabo do medo. Desse modo, Gangues se torna um filme essencial para compreender outros meandros de sua filmografia, e uma influência direta para Lincoln, por exemplo, de Spielberg.
No início, acontece uma batalha no Five Points, Manhattan , em 1846, entre duas gangues: uma de William Cutting, ou Bill, o Açougueiro (Daniel Day-Lewis), e um grupo de imigrantes católicos irlandeses, os “Dead Rabbits”, liderados pelo “Padre” Vallon (Liam Neeson). Os homens estão armados de maneira bárbara, suscitando uma época sem nenhuma lei envolvida, apenas o instinto e a tentativa de impor a própria condição e origem. Não é spoiler, mas necessário dizer que Bill mata Vallon, declarando os adversários fora da lei.

O filho de Vallon é levado para um orfanato e ressurge depois de 16 anos usando o pseudônimo de Amsterdam (Leonardo DiCaprio). Primeiramente ele reencontra um antigo amigo, Johnny Sirocco (Henry Thomas, de E.T.), que passa a contar sobre a rotina dos núcleos que constituem a então cidade de Nova Tork, até levá-lo a Bill, aquele que o filho do Padre Vallon deseja matar para concretizar a vingança.
Amsterdam conhece nesse meio tempo a ladra Jenny Everdeane (Cameron Diaz), por quem Johnny é apaixonado. Amsterdam acaba aos poucos se tornando um dos melhores amigos de Bill. Em torno circula o político William M. Tweed (Jim Broadbent)., à frente do Tammany Hall, e Amsterdam também reencontra Walter “Monk” McGinn (Brendan Gleeson) e Walter “Monk” McGinn (John C. Reilly), que eram próximos do seu pai.
Scorsese constrói essa saga de maneira muito ágil, editando as cenas de forma abrupta com a colaboração vital de Thelma Schoonmaker. Desde o início, ele oferece um escopo em escala épica, procurando rapidamente a motivação dos personagens para que, ao longo da trama, sejam desenvolvidos. Não apenas Day-Lewis tem uma atuação excepcional como Bill, mas DiCaprio também consegue captar um personagem que age perturbado por uma consequência do passado.

O duelo entre os dois, tanto em atitudes quanto em atuações, abrange talvez o que Gangues de Nova York mais tem a oferecer, junto com seu contexto sobre os primórdios da cidade em que se passa a história. Tirando o porto no qual chegam os imigrantes principalmente da Irlanda, já encaminhados para lutar pela Confederação, Scorsese evita mostrar muitos cenários, concentrando-se mais nas ruas e interiores onde Bill fica com sua gangue. Diaz tem um papel de interesse romântico para Jenny Everdeane – e, numa época em que era uma das atrizes com maior salário de Hollywood, tem seu papel talvez mais exitoso da carreira, com o lapso de Scorsese em praticamente colocá-la em segundo plano no terceiro ato.
Até determinado ponto, sua presença é de muito destaque, sobretudo porque tem uma relação como amante com Bill e mais romântica com Amsterdam; sua figura faz a costura entre as diferenças desses dois e é entregue de maneira empenhada por Diaz, com sua mescla entre certa destreza e ingenuidade. Podia haver certa influência, pelo contexto de época, com a personagem de Winona Ryder em A época da inocência em outra abordagem, porém se mostra mais complexa do que aquela no próprio resultado alcançado por Scorsese, cuja narração em Gangues de Nova York é mais contida, dando mais expansão aos próprios personagens e suas reações.

Gangues de Nova York costuma ser comparado com O portal do paraíso, de Michael Cimino, e sem dúvida há cenários, detalhes de interiores, que os aproximam  fala-se que Scorsese o teria filmado antes não fosse o fracasso de bilheteria daquele. No entanto, a abordagem de Scorsese é mais comercial e direta, embora não menos interessante na essência, conduzindo os eixos de modo particularmente feliz. De maneira abrupta, o início lança tudo para um duelo que vai ser incorporado ao longo da trama e distribuído na tensão entre os demais personagens. Alguns ressurgem do passado para atormentar Amsterdam, outros seguem em sua penumbra. Há valores de amizade aqui, mas a Scorsese interessa mais uma concepção religiosa em atrito com a condução politica, que se dá de maneira ampla e irrestrita com a ajuda da trilha sonora impactante de Howard Shore e os efeitos sonoros. O roteiro de Jay Cocks, complementado por Kenneth Lonnergan – cineasta que faria bons trabalhos em tramas expansivas como Margaret e Manchester à beira-mar – e Steven Zaillian – responsável por trabalhos com grande número de personagens e ações, como O gângster e Êxodo, de Ridley Scott – exerce uma grande influência para o resultado, apostando na interconexão entre vários núcleos narrativos que vão se aproximando e se completando.
A figura de Bill traz à memória exatamente, no figurino, a de Lincoln e ele se cerca de homens como se fosse uma figura pública capaz de, ao contrário do presidente dos Estados Unidos fez, manter as pessoas divididas em gangues para uma tensão constante, e não parece por acaso que ele também fica atirando facas em imagens que encontra do político. Num passeio inicial que faz pelas ruas, com os fogos de artifício ao fundo, Bill evoca Max Cady de Cabo do medo. Scorsese, em termos de estilo, não explora tanto seus travellings, preferindo acompanhar seus personagens em quadros que evocam mais pinturas, também por causa da excelência do design de produção e dos figurinos. Sob determinado ponto de vista, é interessante como esse filme também revitaliza uma certa visão sobre a influência da religiosidade, que se manifestou antes principalmente em Kundun e se reproduziria anos mais tarde em Silêncio, também com a participação de Liam Neeson. Quando Bill chega a um determinado extremo, e Amsterdam precisa se refugiar na antiga igreja do pai, é um dos momentos mais sagazes do cinema deste século: é o diálogo entre o movimento histórico e a mudança captada por meio de certa violência misturada com uma tentativa apenas de sobreviver ao próprio tempo.

Gangs of New York, EUA, 2002 Diretor: Martin Scorsese Elenco: Leonardo DiCaprio, Daniel Day-Lewis, Cameron Diaz, Jim Broadbent, John C. Reilly, Henry Thomas, Brendan Gleeson Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillian, Kenneth Lonergan Fotografia: Michael Ballhaus Trilha Sonora: Howard Shore Duração: 167 min. Estúdio: Touchstone Pictures, Miramax Films,Alberto Grimaldi Productions, Initial Entertainment Group Distribuidora: Buena Vista Distribution

Peixe grande e suas histórias maravilhosas (2003)

Por André Dick

Como todo cineasta, Tim Burton sempre dedica um projeto em meio a outros a suas obsessões maiores. Depois de realizar Batman em seguida aos seus autorais As aventuras de Pee Wee Herman e Os fantasmas se divertem,.embora também com sua marca especial na adaptação do super-herói da DC para as telas, ele regressaria com intensidade com Edward mãos de tesoura. E, logo depois de Batman – O retorno, ele faria Ed Wood, a cinebiografia que é um de seus melhores momentos.
Quando Burton surgiu com Peixe grande e suas histórias maravilhosas, ele havia feito anteriormente sua criticada (e boa) adaptação e Planeta dos macacos. Era o momento, portanto, para se voltar a um script mais particular. É o que faz aqui, ao filmar a vida de um senhor, Ed Bloom (Albert Finney), que está doente e conta histórias fantásticas ao filho Will (Bill Crudup). O desejo deste é se reconciliar com o pai, com a presença da mãe Sandra (Jessica Lange) e ao lado da esposa Josephine (Marion Cotillard), na volta à sua casa em Ashton, no Alabama.

Na juventude, Ed é vivido por Ewan McGregor, que faz amizade primeiro com um gigante que atormenta a sua cidezinha, Karl (Matthew McGrory) – e, quando corta a barba e cabelo, é convidado a ir embora, o que Bloom acompanha – e depois chega a uma cidade secreta, Spectre, onde faz amizade com um poeta saído de Ashton, Norther Winslow (Steve Buscemi), e a filha do prefeito, Jenny (Hailey Anne Nelson). Na continuação da jornada, ele se depara com um grupo de circo, liderado por Amos Callaway (Danny DeVito), e com uma bruxa (Helena Bonham-Carter). No circo, ela conhece Sandra Templeton (Alison Lohman), por quem se apaixona. O filho deseja descobrir se as histórias são reais e sai em busca disso – inclusive com a famosa história de ter pego um peixe grande.
Burton oscila novamente entre a realidade e a fantasia, como em A lenda do cavaleiro sem cabeça e Edward, mãos de tesoura. O diretor tem uma especial consideração por este personagem do pai contador de histórias, como se estivesse retratando sua própria carreira, em meio a devaneios de fábulas, antes de sua fase mais amarga, aquela de Alice no país das maravilhas.

O filme guarda seu registro como cineasta interessado pelas lendas do interior norte-americano, a partir do livro de Daniel Wallace, o que pode se corresponder, inclusive, com Forrest Gump, mesclado com seu excepcional A lenda do cavaleiro sem cabeça. Na maneira como retrata os cenários, no entanto, ele retoma elementos de Os fantasmas se divertem e Edward na simetria das casas, e na coleção de histórias retoma As aventuras de Pee Wee, dos anos 80, com certa ingenuidade. McGregor, fazendo o Ed mais jovem consegue desenhar um personagem modesto e, ao mesmo tempo, gentil. Suas lembranças de como teria conhecido sua amada mulher estão entre os mais belos da trajetória de Burton, com uma espécie de intensificação de um romantismo que dá espaço a certa melancolia. Mais exatamente quando conhece o dono do circo, que, para lhe revelar detalhes de sua amada, que frequenta o local, o faz de empregado, registra uma espécie de sonho americano que Burton retomaria em Dumbo, com certo olhar triste, assim como quem é de fato o dono do circo.
Do mesmo modo, quando Burton mostra quem de fato é a bruxa das histórias de Ed, há uma espécie de retomada de uma característica do cineasta – da mulher que é solitária, personificada por Sandra, com atuação atenciosa de Jessica Lange, e de Jenny, vivida por Bonham Carter.

Na fotografia de Phillipe Rousselot Buiton colhe um certo ar europeu, mesmo com suas paisagens dialogando com a cultura norte-americana, e a brincadeira com a literatura, por meio do poeta que está na escondido de cidade de Spectre, a fim de escrever seu épico – que Bloom constata não ser mais que um poema óbvio com três linhas. Burton se dedica aqui, mais do que nunca, a ser uma espécie de Spielberg dos anos 80 em formato mais agridoce, sabendo lidar com certos sentimentos de decepção que às vezes não são tão bem trabalhados pelo mestre da fantasia dos anos 90. Além disso, não só por meio das figura, ele apresenta um design de produção notável, sobretudo quando Bloom participa da Segunda Guerra Mundial ou quando tem seu carro submerso numa grande enchente quando está voltando para sua cidadezinha. É uma espécie de contínuo retorno que Burton proporciona a seu filho, uma ilha de desejo por nais criatividade e pela maneira inigualável de querer transformar história simples em algo mais extraordinário e chamativo para as pessoas. O terceiro ato do seu filme acaba, nesse sentido, explorando mais seu olhar dos anos 90, de Edward e Ed Wood, com uma notável perspicácia em filmar o diferente de maneira acessível e comovente.

Big fish, EUA, 2003 Diretor: Tim Burton Elenco: Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Jessica Lange, Helena Bonham Carter, Alison Lohman, Robert Guillaume, Marion Cotillard, Steve Buscemi, Danny DeVito Roteiro: John August Fotografia: Philippe Rousselot Trilha Sonora: Danny Elfman Produção: Richard D. Zanuck, Bruce Cohen, Dan Jinks Duração: 125 min. Estúdio: Columbia Pictures, Jinks/Cohen Company, The Zanuck Company Distribuidora: Sony Pictures Releasing

Superman II – Corte de Richard Donner (2006)

Por André Dick

Neste momento em que Zack Snyder vai conseguir finalmente trazer à cena sua versão original para Liga da Justiça, que teve, depois de um afastamento conturbado seu, uma finalização de Joss Whedon, o diretor de Os vingadores, é interessante lembrar do caso de Superman II. Ele foi feito por Richard Donner ao mesmo tempo que o primeiro, lançado em 1978, mas sua versão de fato não foi lançada nos cinemas em 1980. Em razão de os produtores Alexander e Ilya Salkind não pretenderem pagar um acréscimo financeiro para Marlon Brando, que fazia o pai de Superman, Jor-El, que já tinha feito cenas para o segundo, Donner não aceitou sua exclusão, foi afastado e substituído por Richard Lester, que, para poder assinar o filme, teve de realizar ou refazer ao menos 51% das cenas dele. A versão de Donner foi lançada apenas em 2006 em Blu-ray e DVD, incluindo as cenas com Brando e, apesar de conter quase todas as cenas da versão do cinema, não têm algumas acrescentadas por Lester e possui outras que mudam o significado.
Donner é uma diretor especialista em filmes de ação com drama e comédia, o que pode ser constatado em filmes como Os GooniesMáquina mortífera. Em Superman, ele estabelece um padrão para o que viria na década seguinte, com o Batman, de Tim Burton, e com certo bom humor recente e vertiginoso de Os vingadores, de Joss Whedon. O Superman de Reeve, e isso se deve sobretudo à visão de Donner, é, sobretudo, alguém indefinido entre tempos diferentes: ao mesmo tempo em que conserva um ar dos anos 40, 50, ele consegue efetuar uma transição para os momentos em que precisa enfrentar seu maior inimigo, Luthor,de maneira plausível.

Na versão de Donner para Superman II, é estabelecida uma conexão diretamente com o final do primeiro. Se na versão de Lester Zod (Terence Stamp), Non (Jack O’Halloran) e Ursa (Sarah Douglas ), expulsos de Krypton no início do original, eram libertados de sua prisão numa espécie de espelho gigante pela explosão de uma bomba tirada pelo Superman da Torre Eiffel, na versão de Donner eles já se libertam com a explosão do míssel teleguiado por Lex Luthor levado ao espaço sideral pelo super-herói antes de fazer o tempo voltar. A versão de Donner reprisa também mais claramente a expulsão de Zod, Non e Ursa por Kal-El (Marlon Brando), enquanto na versão de Lester era mais rápida e quase incompreensível.
Por sua vez, as cenas iniciais no Daily Planet são muito mais interessantes na versão de Donner, não apenas pela fotografia de Geoffrey Unsworth, como pela tentativa de Lois (Margot Kidder) descobrir se Clark Kent (Christopher Reeve) é Superman, primeiro pintando uma foto do super-herói com os óculos e terno do parceiro de trabalho e depois jogando-se do prédio – o que inexiste na versão exibida nos cinemas. Clark está cada vez mais próximo de Lois e ambos, inclusive, vão viajar juntos para as cataratas do Niágara. Na versão de Lester, este trecho se prolonga; com uma cena buscando comicidade na figura de um funcionário do hotel onde se hospedam, na de Donner é mais sintética. No filme assinado por Lester, é quando Lois tenta provar que Clark é Superman, atirando-se nas águas do Niágara. Ele está cansado de ser herói, deseja ser humano, e, para isso, volta às suas origens, à Fortaleza da Solidão, em que está a explicação do seu passado, para tentar ser igual aos demais seres humanos.

Lá estiveram antes Luthor e sua assessora Eve Teschmacher (Valerie Perrine) – na versão de Lester conversando com a mãe, Lara (Sussanah York), de Superman; na de Donner, com seu pai. No entanto, chegam os três criminosos à Terra depois de uma passagem pela Lua (que aparece nas duas versões): coronel  Zod, Non e Ursa, mandados embora de Krypton no início do primeiro filme, condenados por Jor-El, e eles vão querer perturbar a população, sobretudo o filho de quem os mandou embora, tendo como aliado Lex Luthor. Luthor tenta chegar às origens do herói, a fim de tentar encobri-lo com sua tentativa de romper o mundo. Mas sua relação com Superman é estranha: ao mesmo tempo que proporciona doses de violência, sobretudo moral, ele não consegue se posicionar como um vilão todo o tempo, e tenta disfarçar com uma ironia seca seu objetivo (e Hackman não quis refazer nenhuma de suas cenas com Lester; aquelas em que aparece foram todas filmadas por Donner).
A questão é como o herói voltará a ser como era antes. Como observa Pauline Kael, “as transições de Clark Kent para Super-Homem e vice-versa agora são números cômicos bem acabados”. Nesse sentido, se a versão de Lester é mais cômica, a de Donner é mais séria, com a presença de Marlon Brando e sequências mais impressionantes (como a inicial). Donner dosa a humanidade de Clark sem torná-la superficial ou maniqueísta (na interpretação talentosa de Reeve). É interessante como os vilões também conseguem ficar no limite do bom humor aceitável, principalmente em sequências com duelos militares e na famosa invasão da Casa Branca -os primeiros numa cidade do interior feitas exclusivamente por Lester.

Há muitas cenas de ação de destaque, efeitos especiais melhores do que o primeiro, e no todo trata-se de uma continuação divertida, apoiado novamente num roteiro de Mario Puzo (criador de O poderoso chefão), com a colaboração de David e Leslie Newman. E a versão de Donner conta com a fotografia de Geoffrey Unsworth, que fez a do primeiro e faleceu em 1979; as cenas modificadas ou acrescentadas por Lester têm a fotografia de Robert Paynte, não tão talentoso. Não existe também, na versão de Lester, a melancolia impregnada por Donner nas bordas de suas versões: o seu Superman é, ao mesmo tempo, um herói e alguém realmente trágico, não com rompantes para o humor exagerado. A maneira como Clark recupera seus poderes com a ajuda do pai é definitiva. Jor-El parece abandoná-lo quando surge do além e lhe transmite os poderes de volta. Não que Lester não perceba a essência dele, mas é certo que Donner consegue desenhá-la de maneira mais adequada, assim como sua relação conflituosa com o pai que não conheceu e com a dualidade entre alguém de outro planeta e o humano. Se eu fosse indicar uma versão do filme, seria a de Donner lançada em 2006.

Superman II – The Richard Donner Cut, ING/EUA, 2006 Diretor: Richard Donner Elenco: Christopher Reeve, Gene Hackman, Marlon Brando, Ned Beatty, Jackie Cooper, Sarah Douglas, Margot Kidder, Valerie Perrine, Susannah York, Terence Stamp, Jack O’Halloran Roteiro: Mario Puzo, David e Leslie Newman Fotografia: Geoffrey Unsworth e Robert Paynte Trilha Sonora: John Williams  Produção: Pierre Spengler e Michael Thau Duração: 117 min. Distribuidora: Warner Bros.

300 (2006)

Por André Dick

Na virada do século, o filme Gladiador, de Ridley Scott, retomou a ideia de um cinema épico baseado na ideia de homens lutando em arena. O personagem principal, Maximus, cujo intérprete, Russell Crowe (ganhador do Oscar de ator), faz crer numa volta a um tempo clássico, de Spartacus, é um fiel seguidor de Marcus Aurelius (Richard Harris), imperador de Roma, mas é traído e se torna um gladiador. Roma passa a ser governada por um tirano, Commodus (Joaquin Phoenix), o filho de Marcus Aurelius. Ridley Scott consegue transformar o argumento em imagens antológicas de lutas em arenas, com atuação eficiente de todo o elenco (cada personagem é tratado de forma nada unidimensional). A direção de arte e os efeitos especiais também são de muita consistência, sobretudo porque estamos diante de um filme de época, que leva o espectador por algumas horas numa volta a um tempo histórico, com uma trilha sonora magnífica de Hans Zimmer e Lisa Gerrard, além da fotografia irretocável de John Mathieson.

Em Madrugada dos mortos, a refilmagem do clássico dos anos 70 dirigido por George Romero, que marca a estreia na direção de Zack Snyder, baseado num roteiro de James Gunn, que viria a dirigir Guardiões da galáxia, o diretor não mostra completamente seu estilo, no entanto consegue extrair situações interessantes de um panorama caótico. Seu real estilo viria a partir de 300, que ingressou exatamente nesse universo suscitado por Scott, remetendo também a Os 300 de Esparta.
A mitologia greco-romana sempre atraiu o olhar de cineastas com interesse pelo trabalho narrativo e pela questão visual: tivemos nos anos 80 Fúria de titãs, precursor de muitos elementos do campo de efeitos visuais, assim como sua refilmagem nos anos 2010, e Tróia, o grandioso experimento de Wolfgang Petersen.
Snyder adaptou 300 com fidelidade à HQ de Frank Miller, e o elenco oferece um desempenho dedicado. O filme inicia mostrando a infância do rei Leônidas: aos 7 anos, é afastado de sua mãe para iniciar o agogê, período de privações a que os cidadãos de Esparta são levados.

Depois de 30 anos, um mensageiro persa (Peter Mersah) chega a Esparta falando que Xerxes I (Rodrigo Santoro) quer dominar a território – assim como outros povoados gregos à época. Leônidas (Gerard Butler), casado com a Rainha Gorgo (Lena Headey), decide aniquilar toda a comitiva. Sendo período da festa de Carneia, ele seleciona 300 homens de sua guarda para enfrentar os invasores da Pérsia – levando-se em conta que em Esparta os homens eram treinados para lutar em batalhas. A seu lado, estão Stellios (Michael Fassbender), Dilios (David Wenham), Capitão Artemis (Vincent Regan) e seu filho Astinos (Tom Wisdom). Mas contra está o político Theron (Dominic West). Tudo tem como centro a Batalha das Termópilas de 480 a.C.
Com poucos diálogos (sendo uma obra essencialmente de batalhas) e trama não trabalhada de forma suficiente, na qual o rei Leônidas enfrenta, com seus homens, o exército persa de Xerxes. 300 se sente, mais do que outros filmes de Snyder acusados disso, mais estilo do que substância. A violência prepondera do início até o fim, principalmente na segunda metade em larga escala, e Snyder usa e reusa a câmera lenta para criar cenas de impacto – e ainda assim muitas sem o peso emocional necessário. Há uma tentativa de traçar duelos políticos e uma certa privação da mulher num universo predominantemente masculino, e Snyder faz isso ligando os personagens a uma certa tentação pelo que pode levá-los à queda. O rei Xerxes – com uma voz acentuadamente estranha de Rodrigo Santoro – é o símbolo de uma espécie de avanço do pecado contra uma comunidade que, longe de ser ingênua, ainda tenta conservar seus integrantes.

Como no seu filme de estreia, Snyder tem noção de cenas de ação e da potência dos embates, além do cuidado uso de efeitos sonoros capazes de amplificar a atmosfera, mas ainda lhe falta uma certa reflexão que viria com Watchmen, em sua lentidão. Ainda assim, é um estilo único, e pode-se dizer que os quadrinhos de Miller são traduzidos em perícia visual de um modo que dificilmente seria visto novamente, nem mesmo em sua sequência, quase uma década mais tarde, com Eva Green como a grande vilã. Isso se deve também ao trabalho de fotografia de Larry Fong, que voltaria a trabalhar com Snyder em Batman vs Superman, utilizando os recursos do CGI para iluminar cada cena de maneira grandiosa e tentando buscar comparações diretas da pintura. É aí que a obra de Snyder cresce em retrospectiva, aliando atuações boas num cenário de batalha devastador que não faz o espectador esquecer daquilo pelo qual esses homens estão lutando, colocando em questão diálogos sobre honra, traição, fidelidade e amor cercado pela morte.

300, EUA, 2006 Diretor: Zack Snyder Elenco: Gerard Butler, Lena Headey, David Wenham, Dominic West Roteiro: Zack Snyde, Kurt Johnstad, Michael B. Gordon Fotografia: Larry Fong Trilha Sonora: Tyler Bates Produção: Gianni Nunnari, Mark Canton, Bernie Goldman Jeffrey Silver Duração: 116 in. Estúdio: Legendary Pictures, Virtual Studios, Atmosphere Pictures, Hollywood Gang Productions
Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Encontros e desencontros (2003)

Por André Dick

No seu segundo filme, Encontros e desencontros, Sofia Coppola tenta fazer uma comédia agridoce depois de seu vital As virgens suicidas – que consegue contrabalançar as estranhezas com magníficas atuações de Kirsten Dunst e James Woods – e consegue, tornando-se uma referência, que manteria com Maria Antonieta e Um lugar qualquer (que se parece com este em sua estrutura de tédio). Enquanto o casal do filme combina, mesmo bastante diferente (Bill Murray e Scarlett Johansson), o roteiro, também escrito por Sofia, em grande parte, encadeia uma sucessão de momentos soltos da vida de ambos. O filme parece entrar na onda de seu título original (“Perdido na tradução”) e tenta dar a impressão apenas do deslocamento de um ator de Hollywood, Bob Harris (Bill Murray), que está no Japão para rodar um comercial de uísque por 2 milhões de dólares, e Charlotte (Scarlott Johansson), que faz pós-graduação em Filosofia pela Yale e é abandonada no hotel por seu marido, John (Giovanni Ribisi), fotógrafo de moda.

A realização tenta ser contemporânea: nunca vemos os personagens em situações forçadas e a trilha (com elementos indie e dos anos 80) remete a um sentimento de existência solitária numa cidade grande. Esta grande qualidade do filme acaba sendo também seu lado menos atrativo: o espectador não é atraído por nenhum conflito; pelo contrário, a experiência de assisti-lo parece ser a mesma dos personagens que perambulam por ele, em busca de uma razão para entender o outro e o diferente. Murray tem grande tendência para atuações patéticas, e neste filme ele tenta sublimá-las com seu melhor momento, sobretudo num momento em que tenta correr na esteira. As cenas em que filma a propaganda sem entender japonês é divertida e constrangedora por causa dele (embora saibamos que um astro como ele andaria com um tradutor, ou seja, há buracos substanciais no roteiro, que, no entanto, conseguem fornecer um certo aspecto indeterminado).

Bob conhece Charlotte no bar do hotel e logo fazem amizade. Quando voltam a se encontrar nas noites seguintes, ela o convida para participar de uma festa com outros jovens. Em clima de melancolia e de crise da meia idade, Bob Harris cria um interesse platônico por Charlotte. Isso se costura mais por meio de imagens do que palavras, e certamente é esta saída que deu a Sofia o Oscar de melhor roteiro original.
No seu livro referencial sobre o Japão, O império dos signos, e entendo que Sofia o leu antes de escrever o roteiro, Roland Barthes escreve – e poderia servir para o casal formado por Bob e Charlotte e suas peregrinações: “A cidade de que falo (Tóquio) apresenta este paradoxo precioso: possui certamente um centro, mas esse centro é vazio. A cidade toda gira em torno de um lugar ao mesmo tempo proibido e indiferente, morada escondida pela vegetação, protegida por fossos de água, habitada por um imperador que nunca se vê, isto é, literalmente, por não se sabe quem. Diariamente, em sua circulação rápida, enérgica, expeditiva como a linha de um tiro, os táxis evitam esse círculo, cuja crista baixa, forma visível da invisibilidade, oculta o ‘nada’ sagrado. Uma das duas cidades mais poderosas da modernidade é, portanto, construída em torno de um anel opaco de muralhas, de águas, de tetos e de árvores, cujo centro nada mais é do que uma ideia evaporada, subsistindo ali não para irradiar algum poder, mas para dar a todo o movimento urbano o apoio de sue vazio central, obrigando a circulação a um perpétuo desvio. Dessa maneira, dizem-nos, o imaginário se abre circularmente, por voltas e rodeios, ao longo de um sujeito vazio” (Tradução de Leyla Perrone-Moisés, p. 46)

É em meio a esse “anel opaco de muralhas, de águas, de tetos e de árvores” que transcorre o filme de Sofia. A distância que Bob sente da jovem pelo qual é atraído, de qualquer modo, é a mesma que ele tem por esse país distante: a vontade de tocá-la é a mesma de esquecer que está distante, mas que quer voltar, pela liberdade que ele concede. O casal vai a um karaokê, anda por Tóquio animado (num momento indie), a uma boate, com seus neons, volta ao quarto de hotel, apanhando um elevador e dorme abraçado, introspectivamente. O que importa a eles é a companhia, nada mais, por isso tanta densidade nessa aproximação. Mesmo a amiga de Bob, a atriz de Hollywood Kelly (Anna Faris), não a traz para um interesse do cenário.
São belas, também as cenas em que Charlotte, solitária – e sua personagem é o alter ego de Sofia –, caminha pelo parque Hyatt. Como escreve Barthes: “Da encosta das montanhas ao canto do bairro, tudo aqui é habitat, e estou sempre no cômodo mais luxuoso desse habitat: esse luxo (que é alhures o dos quiosques, dos corredores, das casas de prazer, dos gabinetes de pintura, das bibliotecas privadas) vem do fato de esse lugar não ter outro limite senão seu tapete de sensações vivas, de signos resplandecentes (flores, janelas, folhagens, quadros, livros); não é mais o grande muro contínuo que define o espaço, é a própria abstração dos pedaços vistos (de ‘vistas’) que me cercam: o muro está destruído sob a inscrição, o jardim é uma tapeçaria mineral de pequenos volumes (pedras, rastros do ancinho sobre a areia), o local público é uma série de acontecimentos instantâneos, que chegam ao notável num brilho tão vivo, tão tênue, que o signo se abole antes de qualquer significado ter tido o tempo de ‘pegar’”.

O filme trata da imersão desses personagens num cenário estranho, do qual não fazem parte, porém que, aos poucos, começa a impregná-los. Os letreiros em movimento da cidade e as longas ruas e passarelas lembram uma efusão constante de pessoas, muitas sem uma direção definida. Sofia consegue desenhar, com isso, um elemento de reflexão sobre aquilo que parece não permanecer em meio a uma paisagem grandiosa, que é exatamente o da reflexão sobre os pequenos gestos – e adormecer no ombro alheio passa a carregar toda uma mudança de percepção cultural.
Na verdade, Encontros e desencontros é um produto acabado dos anos 2000, com sua espécie de síntese entre o sentimento de vazio do indivíduo e sua tentativa de compreendera paisagem que o cerca – e a cidade de Tóquio se presta com perfeição a isso. Não há dúvida de que Sofia, com sua sensibilidade particular, anuncia aqui o que expandiria ainda mais em Maria Antonieta.

Lost in translation, EUA, 2003 Diretor: Sofia Coppola Elenco: Bill Murray, Scarlett Johansson, Giovanni Ribisi, Anna Faris, Fumihiro Hayashi Roteiro: Sofia Coppola Fotografia: Lance Acord Produção: Sofia Coppola, Ross Katz Duração: 105 min. Estúdio: American Zoetrope e Elemental Films Distribuidora: Focus Features (Estados Unidos), Tohokushinsha Film (Japão)

Star Wars: A ameaça fantasma (1999), Ataque dos clones (2002) e A vingança dos Sith (2005)

Por André Dick

Seria difícil que George Lucas, após 22 anos afastado das câmeras, como diretor, conseguisse criar uma obra equivalente à primeira trilogia, no primeiro episódio da segunda franquia de Guerra nas estrelas, intitulado A ameaça fantasma. Não querendo oferecer seu novo projeto a outros diretores, como fez com O império contra-ataca e O retorno de Jedi, ele tentou evitar aquilo que os fãs mais fiéis temiam: que o estilo e magia da saga se perdessem pelos corredores de sua empresa ILM. O mais interessante nesse filme é, dessa maneira, a maneira como Lucas não chega a congelar os personagens, que, mesmo não substituindo o carisma dos originais, conseguem, num primeiro momento, agradar.
Iniciando por uma retrospectiva da série, o que mais chama a atenção em A ameaça fantasma é que Lucas apresenta personagens interessantes, mesmo não substituindo o carisma dos originais. Na pele do mestre Jedi Qui-Gon Jinn, Liam Neeson consegue mostrar novamente que é um bom ator, substituindo o estilo sábio de Alec Guiness do primeiro Guerra nas estrelas. Parece ser de Ewan McGregor, na pele de Obi-Wan Kenobi, a atuação menos convincente (se alguém esquecer outro personagem do filme), levemente deslocado, sendo, no período, um ator de produções independentes, como Cova rasa e Trainspotting.

A história do primeiro episódio da nova trilogia é simples como todas as outras da saga, embora aqui com peso maior político. A fim de realizar um acordo com a Federação Comercial, sobre rotas do comércio intergaláctico, a rainha Padmé Amidala (Natalie Portman), do planeta Naboo, envia os dois cavaleiros Jedi, Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi. Eles, no entanto, caem numa armadilha e descobrem que há uma invasão planejada ao planeta Naboo. Acabam voltando a ele em naves invasoras e, ao se depararem com Jar Jar Binks, conhecem os Gungans, que vivem submersos num lago (a melhor criação de Lucas para o filme, embora com elementos de O segredo do abismo, de Cameron), com o objetivo de pedir ajuda para salvar Amidala (não nos percamos nos nomes). A rainha, mesmo sem a ajuda dos Gungans, acaba sendo salva, mas a nave de fuga de Naboo acaba tendo problemas – sendo salva por um droide, chamado R2-D2 (Kenny Baker) – e é obrigada a pousar no planeta desértico de Tatooine, palco de sequências em Guerra nas estrelas e O retorno de Jedi. Ali, Qui-Gon Jinn acaba descobrindo Anakin Skywalker (Jake Lloyd), criador do robô C-3PO (Anthony Daniels) e escravo do estranho alienígena voador Watto, que, para conseguir as peças que consertem a nave da rainha, precisa entrar numa corrida de miniespaçonaves (pods) no deserto, patrocinada por Jabba (o monstrengo da reedição de Guerra nas estrelas e de O retorno de Jedi). Anakin combaterá Darth Anakin vive com a mãe Shmi (Pernilla August).

É visível como Lucas, neste reingresso em seu universo, optou por um direcionamento infantojuvenil, tanto  no desenho dos personagens quanto na sucessão de batalhas que parecem mais parte de um video game. Porém, ainda assim, ele consegue desenvolver certa mitologia dos Jedi, por meio do encontro de Qui-Gon Jinn e Obi-Wan Kenobi com Anakin. Resulta, por vezes, em certo material expositivo, e ainda assim se contrapõe às discussões sobre política no espaço sideral. Algumas cenas são verdadeiramente bem feitas, como a corrida de Anakin no deserto, proporcionando um visual notável, outras insistem demasiadamente num humor que se mostra deslocado. Lucas tenta mesclar o material mais sério da primeira trilogia, por meio de frases de sabedoria, e insere uma origem enigmática para o jovem Anakin, porém sem aliviar o peso de mostrá-lo como um escravo, em busca de libertação, o que concede uma complexidade ao que acontecerá depois a ele.

A ameaça fantasma não anuncia o estilo do segundo, Ataque dos clones, cujo tom interno é de mais melancolia e romance, contrariando o primeiro desta trilogia, mesmo com a habitual trilha sonora animada de John Williams. Os atores estão um tanto engessados pelo roteiro, e Hayden Christensen é uma escolha não tão acertada para Anakin Skywalker: ainda assim, quem faria melhor com os diálogos entregues, de uma simplicidade visível e que Harrison Ford certamente não seguiria? Bem, até Christensen não está tão mal numa revisão. O romance de Anakin com Padmé Amidala (Natalie Portman), que se transformou em senadora da República, acontece repentinamente; por outro lado, ele não desaquece a parte mais interessante, que é a perseguição de Obi-Wan Kenobi (Ewan McGregor) a quem ameaça Amidala, chegando a Jango Fett (Temuera Morrison), pai do pequeno Boba (Daniel Logan) – um dos vilões da primeira trilogia. Yoda e Mace Windu (Samuel L. Jackson) estão preocupados com a revolta crescente de Anakin e entregam a ele a tarefa de vigiar Amidala. Anakin tem pesadelos com a mãe que não vê há dez anos, precisando regressar a Tatooine, num momento que remete à primeira trilogia. E há Christopher Lee como o Conde Dooku, trazendo intrigas aos jedi. A questão política envolvendo a princesa, por quem Anakin se apaixona, continua presente, e Palpatine (Ian McDiarmid) tenta organizar o jogo.

O filme inicia com uma perseguição fantástica em cenários que remetem a Blade Runner e segue em planetas oceânicos (Kamino, que possui uma estação com interiores evocando THX 1138, obra que projetou Lucas) ou desérticos, com fugas fantásticas em meio a meteoros. O desenho de produção deste episódio, vendo anos depois e com uma imagem melhor do que a do digital no cinema, destacando a fotografia de David Tattersall (e justificando por que as irmãs Wachowski o chamaram depois para fazer o trabalho em Speed Racer), é muito bom, escolhendo cores acertadas para cada ambiente – e isso é metade da fantasia. E a trama, se não tem grandes diálogos, nunca interrompe o fluxo: Lucas não é um grande diretor de atores, e ainda assim ele sabe dar uma cadência de aventura a suas histórias, baseando-se numa sensível melhora na atuação de McGregor em relação ao primeiro. Os últimos 40 minutos passados em Geonosis, uma espécie de Tatooine, reservam alguns momentos memoráveis, tanto em termos de efeitos especiais quanto de design, além das lutas. Lucas havia sido pego na metade do cainho pela onda O senhor dos anéis e tenta inserir um pouco desse universo em cenários de cavernas com inúmeras criaturas, antecipando igualmente John Carter, muito presentes no trabalho de Peter Jackson. A fascinação de Lucas pelo CGI e pelo digital também transforma alguns momentos muito próximos de uma animação, trazendo, por um lado, um trabalho interessante de cores e, por outro, uma certa artificialidade. E o filme, sem dúvida, cresce como uma antecipação de A vingança dos Sith, em razão de uma escalada rumo a um desfecho mais grandioso e que cria certo impacto e interessante para o melhor episódio da segunda trilogia.

As cenas de ação ininterruptas e o excesso de acontecimentos de A vingança dos Sith não chegam a cansar, e Lucas entrega uma obra verdadeiramente à altura da saga original, embora sempre sem o mesmo humor e sem os mesmos personagens expressivos (apesar de Yoda e da reaparição, por momentos, de Chewbacca). O cineasta, na verdade, não quis abrir a concessão de que a tecnologia da nova trilogia não substitui um elenco interessante e interessado. Embora Lucas ainda continue um diretor com dificuldades para lidar com atores, Christensen, McGregor e Portman, desperdiçada em diálogos sem muito vigor nos filmes anteriores, passam por acontecimentos que merecem destaque e conseguem diminuir a distância emocional que havia entre eles. Na pele da rainha Padmé Amidala, especialmente Portman, alguns anos depois da atuação em O profissional, sem sinais do futuro Cisne negro, não desaponta, apresentando uma atuação conflitante. Parece ser de Ewan McGregor, como Obi-Wan Kenobi, a atuação mais dedicada, fazendo um bom contraponto a Christensen, que consegue fugir um pouco ao estilo consagrado em Jumper – mas o final surpreende quando finalmente ele adquire uma ressonância que faltou um pouco à trilogia.
A vitalidade também resulta dos efeitos especiais, porém pertence muito mais a uma montagem que não deixa de amarrar a história da traição de Palpatine (McDiarmid) e a transformação consequente em mestre de Anakin (e Andersen, que parecia apático no segundo, transmite uma expressão pessoal de desespero), a um passo de se tornar Darth Vader. E o jedi Mace Windu (Jackson) finalmente tem uma participação decisiva na história.

A revolta de Anakin tem um lado bastante obscuro, aqui, pela primeira vez, aliada a um grande sentimento de perda, em relação a seu próprio futuro; mais do que uma fantasia, o comportamento dele decisivamente é perturbador. Anakin, portanto, quando viaja para outro planeta, a fim de deflagrar o domínio da galáxia, leva todos os personagens ao que seria a antiga trilogia, com figuras estranhas, robôs mais inovadores do que os dois primeiros episódios da nova trilogia e cenas de batalha realmente notáveis, sobretudo no início do filme e na investida contra os jedis da República. Existe, no personagem, um conflito com a imagem da infância, e é esta torna o olhar de Lucas mais compenetrado e negativo. Ao contrário da primeira trilogia, Ataque dos clones já tinha uma melancolia, mas este, sem negá-la, consegue inseri-la numa narração, tornando alguns dos momentos interessantes e de significado para a ligação com a primeira trilogia, e a sensação é uma mescla de perda e nostalgia. Há um trabalho elaborado de fotografia tanto no que diz respeitado ao jogo de luzes (a chegada de Anakin à Terra e o reencontro com Padmé Amidala ganha um tratamento específico de Lucas) quanto ao uso de cores (a primeira batalha antecipa boa parte dos efeitos usados hoje em produções recentes) e de movimentação de câmeras que remetem ao talento inicial de Lucas para uma visão futurista, entregue em THX 1138, seu filme ainda mais experimental.
A vingança dos Sith ganha elementos próprios mesmo em relação aos outros da série, com uma certa ambiguidade na ação dos personagens, tornando-o talvez o mais denso. Com desenho de produção impressionante, figurino rebuscado, lutas com certo impacto – quase ausentes no segundo, por exemplo –, o episódio faz esquecer, em parte, o desapontamento visível na comparação com a primeira trilogia. Uma das poucas ficções clássicas deste início de século. Lucas realmente demonstra interesse em finalizar a trilogia e nos guarda uma peça a ser revista, forte o suficiente para não ter o impacto reduzido dez anos depois.

Star Wars: episode I – The phantom menace, EUA, 1999 Diretor: George Lucas Elenco: Liam Neeson, Ewan McGregor, Natalie Portman, Jake Lloyd, Ian McDiarmid, Anthony Daniels, Kenny Baker, Pernilla August, Frank Oz Roteiro: George Lucas Fotografia: David Tattersall Trilha Sonora: John Williams Produção: Rick McCallum Duração: 138 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: 20th Century Fox


Star Wars: episode II – Attack of the clones, EUA, 2002 Diretor: George Lucas Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Ian McDiarmid, Samuel L. Jackson, Christopher Lee, Anthony Daniels, Kenny Baker, Frank Oz Roteiro: George Lucas e Jonathan Hales Fotografia: David Tattersall Trilha Sonora: John Williams Produção: Rick McCallum Duração: 142 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: 20th Century Fox

 

Star Wars: episode III – Revenge of the Sith, EUA, 2005 Diretor: George Lucas Elenco: Ewan McGregor, Natalie Portman, Hayden Christensen, Ian McDiarmid, Samuel L. Jackson, Jimmy Smits, Frank Oz, Anthony Daniels, Christopher Lee, Keisha Castle-Hughes, Silas Carson, Jay Laga’aia, Bruce Spence, Wayne Pygram, Temuera Morrison, David Bowers, Oliver Ford Davies  Roteiro: George Lucas Fotografia: David Tattersall Trilha Sonora: John Williams Produção: Rick McCallum Duração: 140 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd Distribuidora: Fox Film

Série Indiana Jones (1981, 1984, 1989, 2008)

Por André Dick

Os caçadores da arca perdida, como se sabe, é a aventura que consagrou Indiana Jones como o herói da década de 1980, um arqueólogo que dá aulas de História, graças, em grande parte, à atuação de Harrison Ford. Na primeira jornada, já começa em plena ação, sendo perseguido por uma tribo indígena depois de apanhar uma relíquia numa caverna cheia de pistas falsas no Peru e traído pelo companheiro de viagem (um jovem Alfred Molina) – essa introdução é memorável. Logo em seguida, procurado pelo governo dos Estados Unidos na universidade onde dá aula e é amigo do dono de museu Marcus Brody (Denholm Elliott), ele vai em busca da Arca da Aliança, no Poço das Almas, no Egito, onde Moisés teria deixado a Tábua dos Dez Mandamentos. Enfrentando uma trupe de nazistas, que tem como arqueólogo o francês René Belloq (Paul Freeman). e Major Toht. (Ronald Lacey) como líder imediato, ele reencontra uma antiga namorada, Marion Ravenwood (Karen Allen), num bar do Nepal, com mau destino depois de uma sequência de lutas divertidas e violentas.
A passagem dele pelo Cairo, Egito, em busca do objeto divino, é a melhor parte do filme, mostrando como Spielberg está em busca não apenas da aventura, mas do mistério de relíquias históricas e inserindo o ótimo personagem Sallah (John Rhys-Davies).

As idas e vindas do roteiro (não sabemos se a mocinha escapou de uma explosão, por exemplo) são exploradas ao limite, entretanto sem menosprezar a inteligência do espectador. Mais do que um professor e aventureiro, Indiana Jones encarna a tentativa de encontrar a história na rotina. Ele possui medo mortal de cobra, sobretudo. Seu visual (um arqueólogo de chapéu e chicote) remete aos filmes de infância, ainda que não sabemos bem a quais. E alguém que precisa se deparar não só com o roubo histórico, como também com o próprio nazismo e a obsessão de Hitler em tomar contato com o que, em sua visão, é capaz de deixá-lo com mais poder ainda. Os caçadores… recebeu cinco Oscars (montagem, direção de arte, som, efeitos sonoros, efeitos especiais), tendo sido ainda indicado nas categorias de melhor filme, direção e roteiro (de Lawrence Kasdan, baseando-se em história de George Lucas e Phillip Kaufman, diretor de A insustentável leveza de ser), fotografia e trilha sonora (mais um trabalho marcante de John Williams, na sua melhor fase). E Spielberg já insere aqui a presença dos nazistas, o que trataria de modo histórico em A lista de Schindler. São eles que desejam a Arca da Aliança, com o objetivo de possuírem ter um acesso ao desconhecido. No entanto, deparam-se com Indiana Jones e com o fato de a Arca não poder ser aberta, pois, antes de mais nada, seria um veículo de “comunicação com Deus”, o que não seria propenso aos alemães seguidores de Hitler.

Indiana Jones e o templo da perdição segue Os caçadores da arca perdida, e, como o terceiro ato do filme de 1981, procura a ação incessante. Com roteiro de Gloria Katz e Williard Huyck (autores de Loucuras de verão com George Lucas), mostra o arqueólogo inicialmente em uma de suas jornadas por Shangai, China (em 1935, um ano antes do filme original), acompanhado por um ajudante mirim, Short Round (o ótimo Ke Huy Quan, de Os Goonies) e da cantora brega Willie Scott (Kate Capshaw). Sim, são dois estereótipos, mas nem por isso menos divertidos. Depois de um acidente de avião no Himalaia, eles caem perto da vila Mayapore, no norte da Índia, que teve suas plantações queimadas e as crianças levadas por uma entidade chamada Shiva, depois de uma pedra sagrada ter sido roubada.
Já se percebe que, mesmo com a ação fantasiosa de Os caçadores da arca perdida, Spielberg exerce seu poder sobre imagens que atraem pela inverossimilhança – é nisso o personagem sobrevive, cercado de personagens que parecem saídos de um musical dos anos 30 (não à toa, o filme começa exatamente com um número musical). Todo o modo com que Spielberg relata a primeira parte faz parte de outro imaginário, de produções B, ao contrário da classe atingida em Os caçadores da arca perdida.
Indiana chega com os amigos ao Palácio Pankot, onde, além de encontrar uma seita de fanáticos (com rituais macabros, como arrancar o coração de uma pessoa viva e afundá-la no fogo) liderada involuntariamente pelo marajá Zalim Singh (Raj Singh), descobre as crianças do vilarejo trabalhando feito escravas para procurar outras pedras sagradas, enterradas em catacumbas, onde existe uma mina. Já sabemos de início que ele não tem a seriedade de parte de Os caçadores da arca perdida, com suas referências religiosas, mas mesmo assim é um passeio curioso. Extremamente bem feito, a parte técnica tem achados (figurino e design de produção) e a direção de Spielberg em cenas como a do banquete ou do momento no qual Willie espera uma declaração amorosa de Indiana é particularmente inspirada. Às vezes, Spielberg se excede na violência, em oposição a um tratamento quase juvenil de determinadas situações e, em outras ele prefere a fantasia de modo preponderante, para aliviar alguma saída que soa um pouco realista demais para seu objetivo. De modo geral, ele conecta os personagens por meio da ação e o seu humor tenta equilibrar a narrativa.

Repleto de ação e talvez mais bem-humorado do que os dois primeiros, com a mesma trilha musical de John Williams, e roteiro elaborado por Jeffrey Boam (Máquina mortífera II). Indiana Jones e a última cruzada inicia mostrando a juventude de Indiana Jones (em atuação de River Phoenix) em 1912, fugindo de ladrões com uma relíquia em Utah. Revela-se, de forma convincente, como surgiram o chapéu, o chicote e o medo de cobras do herói. Num salto no tempo, já adulto, luta contra os mesmos bandidos, atrás da mesma relíquia. A ação não para nunca, e talvez Spielberg esteja disfarçando um pouco que o filme é uma reedição de Os caçadores da arca perdida sob um ponto de vista da paternidade. Indiana entra no plano de reencontrar seu pai, desaparecido enquanto procurava o cálice do Santo Graal.
Seu pai, Henry Jones (Connery), foi capturado pelos nazistas e Indiana é contratado pelo milionário Walter Donovan (JUlian Glover) para encontrá-lo. Nesse meio tempo, ele tem um caso com Elsa Schneider (Alisson Doody), foge de ratos, há uma perseguição eletrizante de lanchas em Veneza, outra em motos, e se encaminha para a caverna onde está o Cálice do Graal. Bastante parecido com o primeiro também no que se refere ao aspecto religioso e o interesse nazista por peças religiosas, este Indiana é, com todo seu aspecto de filme de aventuras descompromissado, antológico. É impressionante como Spielberg consegue efetuar transições por meio de uma edição ágil e nunca torna a violência impactante em excesso, preferindo vê-la mais como numa espécie de animação. A ligação entre pai e filho também funciona não apenas por Ford e Connery, mas porque Boam consegue inserir elementos de melancolia e lembrança juvenil e de como uma relação passada não tão resolvida pode se manifestar melhor numa situação de alto risco, assim como o regresso dos personagens de Marcus Brody e Sallah adicionam elementos cômicos imprevistos e a fotografia de Douglas Slocombe, responsável pela dos dois filmes anteriores também, é exímia em captar dias ensolarados ou nublados, criando uma atmosfera imersiva. Também talvez seja interessante apontar como Quentin Tarantino se inspirou, aqui e ali, para compor seu roteiro de Bastardos inglórios.

Em Indiana Jones e o reino da caveira de cristal, Harrison Ford decidiu regressar ao personagem de Indiana Jones depois de George Lucas e Steven Spielberg retomarem uma série que já era dada como finalizada. Neste episódio, os elementos lembram, principalmente, do início de Os caçadores da arca perdida, no qual Indiana está no mesmo depósito do desfecho no primeiro filme, desta vez em 1957. Ele é capturado por agentes soviéticos liderado por uma agente russa, da KGB, Irina Spalko (Cate Blanchett), que deseja chegar a uma misteriosa caveira de cristal, capaz de dar acesso a um universo paralelo – e nesse caso já sabemos que, em se tratando de Spielberg, deve ser algo parecido com Contatos imediatos do terceiro grau. Toda essa parte termina com uma explosão bastante exagerada, mostrando que, se os outros tinham sequências inverossímeis, este se aprimora em fazê-las ainda mais inverossímeis.
Quando consegue fugir do grupo de soviéticos, Indy volta à universidade para lecionar história, mas é procurado por um jovem, Mutt Williams (Shia LaBeouf), que tem uma carta de Harold Oxley (John Hurt), passada por sua mãe, Marion (Karen Allen), da obra original. Este é o motivo para Indiana vir à América do Sul, investigar onde se encontram as pistas dadas por Oxley. O país é o Peru, fechando um círculo em relação ao primeiro filme, onde vai à noite a um cemitério, sendo atacado por várias crianças assustadoras, até chegar à caveira de cristal. Em seguida, ele é novamente capturado pelo grupo chefiado por Irina. Reencontra Marion e a ação incessante começa, para não parar mais, em meio a perseguições na Amazônia (obviamente impossíveis de acontecer).

O humor fica a cargo do quarteto Ford-LaBeouf-Allen-Hurt, explorando, de modo inteligente, um roteiro um tanto limitado de David Koepp (Jurassic Park) para o tempo que durou o hiato entre Indiana Jones e a última cruzada e este, de quase 20 anos, inserindo pelo menos um personagem dispensável: George “Mac” McHale (Ray Winstone). No entanto, é um referencial no que diz respeito a lances sobre os anos 50, desde os mistérios escondidos numa sede secreta dos militares até uma cidade com manequins para experimentos com a bomba atômica (e até esquecemos os momentos com as marmotas saindo de buracos na terra que aproximam Spielberg de uma tentativa de reproduzir a Disney). Trata-se de uma sátira, em alguns momentos, à Guerra Fria, no entanto sem se entregar a um revisionismo histórico previsível. As dicas estão lá e são muito bem inseridas em meio à história, com uma coerência por vezes não encontrada no mais elogiado Indiana Jones e o templo da perdição. .O interessante aqui também é a parte técnica: a fotografia de Janusz Kamiński evocando os anos 70 é excelente, e a trilha sonora de John Williams mais uma vez marca boa presença. O mais engraçado é, sem dúvida, Ford, sempre oferecendo uma boa interpretação, desta vez em estilo mais ranzinza, que viria a adotar a partir de então. Entre efeitos visuais baseados em CGI ou locações de estúdio em alguns instantes, evocando as aventuras dos anos 50, Indiana Jones e o reino da caveira de cristal parece ser, por enquanto, o penúltimo dessa série antológica, pois ainda se anuncia um quinto para 2022.

Raiders of the lost ark, Diretor: Steven Spielberg Elenco: Harrison Ford, Karen Allen, Paul Freeman, Ronald Lacey, John Rhys-Davies, Denholm Elliott Roteiro: Lawrence Kasdan Fotografia: Douglas Slocombe Trilha Sonora: John Williams Produção: Frank Marshall Duração: 115 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Indiana Jones and the temple of doom, EUA, 1984 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Harrison Ford, Kate Capshaw, Amrish Puri, Roshan Seth, Philip Stone, Ke Huy Quan Roteiro: Willard Huyck e Gloria Katz Fotografia: Douglas Slocombe Trilha Sonora: John Williams Produção: Robert Watts Duração: 118 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Indiana Jones and the last crusade, EUA, 1989 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Harrison Ford, Denholm Elliott, Alison Doody, John Rhys-Davies, Julian Glover,Sean Connery Roteiro: Jeffrey Boam Fotografia: Douglas Slocombe Trilha Sonora: John Williams Produção: Robert Watts Duração: 126 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull, EUA, 2008 Diretor: Steven Spielberg Elenco: Harrison Ford, Cate Blanchett, Karen Allen, Ray Winstone, John Hurt, Jim Broadbent, Shia LaBeouf Roteiro: David Koepp Fotografia: Janusz Kamiński Trilha Sonora: John Williams Produção: Frank Marshall Duração: 122 min. Estúdio: Lucasfilm Ltd. Distribuidora: Paramount Pictures