Por André Dick
Este artigo traz 25 melhores filmes brasileiros dos anos 2000, uma das décadas mais fortes para o cinema brasileiro de modo geral. Com o talento de cineastas como Fernando Meirelles, Jorge Furtado (até então diretor de curtas), Sandra Werneck, Laís Bodansky, Bruno Barreto, Jorge Padilha, Walter Salles, Anna Muylaert, Luiz Fernando Carvalho, entre outros, o cinema brasileiro adentrou o século com uma intensa criatividade no campo cinematográfico. Antes da lista, as menções honrosas.
Era uma vez… (2008, Breno Silveira)
Cazuza – O tempo não para (2004, Sandra Werneck e Walter Carvalho)
A mulher invisível (2009, Cláudio Torres)
Meu tio matou um cara (2004, Jorge Furtado)
O casamento de Romeu e Julieta (Bruno Barreto, 2005)
Redentor (Cláudio Torres, 2004)
Loki – Arnaldo Batista (2009, Paulo Henrique Fontenelle)
Entreatos (2004, João Moreira Salles)
Salve geral (2009, Sérgio Rezende)
Se eu fosse você (2006, Daniel Filho)
Jean Charles (2009, Henrique Goldman)
Durval Discos (2002, Anna Muylaert)
Estômago (2008, Marcos Jorge)
Amarelo manga (2003, Cláudio Assis)
Ônibus 174 (2002, José Padilha e Felipe Lacerda)
O cheiro do ralo (2007, Heitor Dhalia)
O xangô de Baker Street (2001, Miguel Faria Jr.)
Bellini e a esfinge (2002, Roberto Santucci)
A partilha (2001, Daniel Filho)
Dom (2003, Moacyr Góes)
Mutum (2007, Sandra Kogut)
O céu de Suely (2006, Karim Aïnouz)
Com Marcos Palmeiras interpretando Villa-Lobos mais jovem e Antônio Fagundes como o músico já mais velho, este filme de Zelito Viana é uma obra importante por conseguir trabalhar uma das figuras mais surpreendentes e geniais da arte brasileira de todos os tempos, com uma obra impecável. Letícia Spiller aparece bem no papel de Arminda Neves d’Almeida em uma narrativa montada a partir de flashbacks de modo eficiente e algumas referências curiosas à história do Brasil.
Neste filme de Sandra Werneck, Carlos (Murilo Benício) e Júlia (Carolina Ferraz) combinam de ir ao cinema. Ela acaba faltando ao encontro e, a partir isso, Werneck expõe três possíveis histórias de amor, ou seja, versões diferentes da mesma história. Com um olhar sensível e romântico sobre a realidade, Werneck extrai boas atuações do elenco e desenvolve de forma interessante os personagens. Na base da narrativa, a aceitação dos amores, de histórias diferentes e que podem se encontrar.
Dirigido por Nando Olival e Fernando Meirelles, Domésticas é um panorama muito bem executado sobre uma das profissões com temática mais interessante do cinema brasileiro, a julgar pelo sucesso do posterior Que horas ela volta? Aqui o tom bem-humorado, as situações reveladas sob uma ótica bastante particular, faz uma narrativa brilhar por si só. Ao mostrar uma visão multifacetada sobre o trabalho das personagens principais, Meirelles já revela a eficiência na condução e edição que se tornariam exímias em Cidade de Deus.
Estreia de Jorge Furtado na longa-metragem, Houve uma vez dois verões é um retrato autêntico e divertido da adolescência, mostrando um menino, Chico (André Arteche) que se apaixona por uma garota, Roza (Ana Maria Mainieri) na praia onde vai veranear. Com uma trilha sonora impecável, Furtado mostra esses personagens com uma certa ingenuidade e bom-humor sem nunca cair para a grosseria ou superficialidade, ao lado do amigo Juca (um Pedro Furtado muito inspirado). O próprio título homenageando um clássico dos anos 70 desperta certa nostalgia, assim como as paisagens solitárias parecem conduzir as ações de modo único.
A direção de Oscar Rodrigues Alves e Branco Mello, com uma reunião extraordinária de imagens dos Titãs, torna este documentário sobre a grande banda de rock brasileiro num dos referenciais para o gênero. Sem perder um minuto, o filme consegue focar o movimento e a explosão de um grupo com artistas multifacetados (Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Tony Belloto, Sérgio Britto, Charles Gavin, Nando Reis e Paulo Miklos), com sua combinação entre poesia e explosão sonora, que consegue marcar sua época por meio de apresentações inesquecíveis, em festivais ou programas de auditório. O filme tem uma parte sonora impressionante, assim como consegue elaborar as características de cada músico nas viagens pelo Brasil ou no exterior.
Bossa Nova tem direção de Bruno Barreto, com roteiro a partir de Miss Simpson, de Sérgio Sant’Anna, e traz roteiro assinado por este, Alexandre Machado e Fernanda Young. Mary Ann Simpson (Amy Irving) é uma professora que vive no Rio de Janeiro ensinando inglês. Seus estudantes vão de um jogador, Acácio (Alexandre Borges), passando por uma mulher obcecada por computadores, Nadine (Drica Moraes), que não parecem interessados em desenhar laços de ligação, até Pedro Paulo (Antônio Fagundes), um advogado que recém se separou. Como boa parte da obra de Barreto, Bossa Nova é agradável e bem-humorado, parecendo uma comédia romântica um pouco agridoce.
Dirigido por José Henrique Fonseca, O homem do ano se baseia no romance O matador, de Patrícia Melo, e foi adaptado para o cinema por Rubem Fonseca. Com filtros de fotografia, curiosos, O homem do ano mostra dois amigos que fazem uma aposta, a partir da qual há a transformação de Máiquel (Murilo Benício), que aparece ao lado de Cledir (Cláudia Abreu). Essa transformação leva o personagem central a um extremo, levado de maneira eficaz por Benício, com uma atuação interessante e com nuances.
O filme de Bruno Barreto tem uma qualidade indiscutível: não é exagerado nem demagógico. O diretor, que vinha alternando obras faladas em inglês (como Voando alto) e em português (O casamento de Romeu e Julieta), ou com a mistura entre os dois idiomas (como é o caso da comédia romântica Bossa Nova, com Antônio Fagundes e Amy Irving), sabe como filmar uma história depois de muitos anos de experiência atrás da câmera. Ou seja, Barreto sabe como tornar, por exemplo, o cenário que foca num elemento tão importante da narrativa que parece um personagem à parte. Desta vez, ele volta suas lentes para o Rio de Janeiro, filmando a cidade como poucos cineastas. Se havia uma certa melancolia nas praias e ruas de seu filme Bossa Nova, menos ensolarado do que a cidade em que se passa, com personagens situados em meio a um mundo de executivos, em Última parada 174, Barreto reproduz a carga de uma cidade situada entre o centro, carregado de meninos de rua, e as favelas, onde se situa o tráfico de drogas, que parece movimentar toda a cidade. O movimento de câmera, no início, da favela para a cidade representa bem isso.
Depois de quase 20 anos em relação a O beijo da mulher-aranha, Hector Babenco regressa ao universo prisional nesta adaptação do livro de Drauzio Varella, mostrando vários tipos no famoso presídio de São Paulo onde aconteceu a trágica chacina. Com grande elenco, incluindo Wagner Moura e Rodrigo Santoro, o filme consegue desenhar um panorama amplo sobre vários personagens e o que os levou à prisão, vendo muitas motivações em cada um para tentar explicar o retrato de uma tragédia. Se a parte final é o instante mais forte, as tramas que conduzem até lá são sempre interessantes.
Dirigido por Anna Muylaert, É proibido fumar mostra a história da aproximação entre Baby (Glória Pires), professora de violão e viciada em cigarros, interpretada por Glória Pires, e um músico, Max (Paulo Miklos), que não se recuperou ainda de seu relacionamento. Na mudança para o apartamento ao seu lado, Baby se interessa por Max e considera que podem dar certo. A fotografia de Jacob Solitrenick consegue capturar a imensidão de São Paulo e a solidão desses personagens, com breves momentos da Paulista. De forma atenta e orgânica, este filme consegue mostrar como se dá um relacionamento entre pessoas maduras e que tentam se aceitar, compreendendo os defeitos de cada um. Miklos e Pires formam um dueto poderoso nesse sentido, com grande empatia pelo espectador.
Este filme dirigido por Carlos Gerbase não chegou a se tornar uma referência para a crítica, mas, com o passar dos anos, parece que sua trama sobre um casal, Júlio (Roberto Boitempo) e Márcia (Maitê Proença), uma advogada, envelheceu bem. O roteiro se desenrola a partir de uma viagem deles com a filha Guida (Ana Maria Mainieri) e sua amiga Ana Maria (Maria Ribeiro) para uma cidade no interior. Júlio é fotógrafo e se apaixona pela amiga da filha. Parecendo às vezes um conflito entre a cidade grande e o interior, um semifaroeste urbano, Tolerância tem uma trilha que remete ao rock gaúcho e algumas cenas interessantes ligadas a uma edição. Tem até certas reviravoltas para estabelecer um suspense eficaz e um clima meio argentino nas passagens do interior, em contraste com as imagens da cidade grande.
Comédia de Jorge Furtado que retoma a qualidade de O homem que copiava, mostra um grupo de amigos que decide fazer um filme numa cidade do interior gaúcho a fim de exibi-lo junto à comunidade. Com atuações divertidas de Wagner Moura, Fernanda Torres, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e Bruno Garcia, Saneamento Básico – O filme tem ainda o grande Paulo José. Com paisagens da serra gaúcha, tem belos momentos, mostrando um grupo de descendentes italianos querendo ajudar a encontrar condições, na pequena cidade de Linha Cristal, para construir uma fossa na cidade para o tratamento de esgoto. A prefeitura diz não ter condições, mas disponibiliza quase R$ 10.000 para a realização de um filme. Alguns moradores decidem se unir para fazer um filme barato para contar história de um monstro que surge na fossa. Isso é motivo para Furtado trabalhar com algumas das melhores gags em sua trajetória, sempre com o auxílio do elenco em grande performance geral.
Dirigido por Beto Brant, O invasor mostra a revelação de Paulo Miklos na pele de Anísio, um matador contratado por dois homens, Ivan (Marco Ricca) e Gilberto (Alexandre Borges), para matar seu sócio, Estevão (George Freire). Anísio executa o serviço, mas quer se tornar respeitado na sociedade, recorrendo aos dois para isso. A situação acaba gerando um clima de perseguição e pesadelo, levando dois homens a princípio comuns por uma jornada inesperada.
Na mesma linha do sucesso O Auto da Compadecida, Lisbela e o prisioneiro é dirigido por Guel Arraes, adaptado de uma peça de teatro homônima de Osman Lins. Com a companhia de Pedro Cardoso e Jorge Furtado no roteiro com uma sequência incrível de gags, Arraes mostra um malandro (Selton Mello), que se apaixona por Lisbela (Débora Falabella); no entanto, ela está noiva. Outras personagens, como Inaura (Virginia Cavendish), Frederico Evandro (Marco Nanini), Tenente Guedes (André Mattos); e um valentão, Douglas (Bruno Garcia), além de Cabo Citonho (Tadeu Mello), fazem essa trama se mover, com uma metalinguagem muito interessante em alguns momentos.
Inevitável pensar por que Walter Salles escolheu o mesmo menino, Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil neste seu novo retrato sobre o Brasil. O que se percebe ao longo do filme é que ninguém poderia estabelecer um eixo melhor entre Linha de passe e Central do Brasil: o salto de um país que poderia dar certo – sobretudo, em Central, na fuga para o interior, em que o folclore é respeito, ao contrário da cidade grande, em que as culturas se perdem e se tornam em certa medida anódinas – para um país que, em grande parte, evidentemente fracassou na sua tentativa de mudança mais ampla, no filme mais recente. A figura de Dario, um jogador de futebol talentoso que tenta a sorte em várias “peneiras”, é significativa porque ele acaba sempre acusado, em campo, de ser individualista. A pergunta: seria diferente diante da condição em que vive? Esse personagem acaba estabelecendo a ponte com o sonho mais forte visto na trama: o de ajudar a mãe. Contudo, o que chama atenção, sob esse ponto de vista, é que Salles e Daniela Thomas, codiretora, ainda procuram imprimir a mudança em cada um dos personagens. Todos, por meio desse sonho, querem se libertar da sua condição atual. O filho mais novo, Reginaldo (vivido com talento impressionante por Kaique de Jesus Santos), é, por exemplo, talvez mais do que os outros, o retrato dessa procura. Desconfiado de que o pai é o motorista de ônibus que costuma levá-lo à sua escola, ele sonha em aprender a dirigir na Kombi que enferruja no pátio da casa onde vive. A história poderia soar previsível, mas foge ao estereótipo, pois o sonho do menino está ligado diretamente à vida da mãe.
Vencedor do Festival de Berlim em 2008, Tropa de elite quer mostrar a realidade crua. Em relação especificamente à violência – bem menor, por exemplo, do que a apresentada em Cidade de Deus –, o filme não revela mais do que o espectador que acompanha telejornais já imagina acontecer: agressões a “testemunhas”, tiros a esmo, violação de direitos humanos, embora as ditas cenas de tortura devam, infelizmente, ser muito piores na realidade. Mas Padilha quer dar ao personagem principal – com uma presença da voz em off, como em Cidade de Deus, para tentar costurar uma trama fragmentada – o caráter de justiceiro, a começar pela epígrafe que abre o longa-metragem. Ou seja, o policial tem esse caráter que tem – agressivo, impulsivo – porque seria fruto do meio em que vive. Ele também é um homem com transtorno psiquiátrico e sua mulher espera um filho. Com isso, o filme acaba tirando a carga negativa que ele apresenta, tentando humanizá-lo no bom sentido. No entanto, o personagem não tem passado, como não tem futuro: não se sabe por que ele age dessa maneira, quais suas origens. Se Padilha quis mostrar um homem em conflito, acertou em cheio. A questão é se só pode se encontrar um homem incorruptível em quem se revolta literalmente contra o sistema.
O ator Selton Mello talvez tenha a atuação de sua trajetória como o rapaz de classe média alta que cresce em meio a uma visão conturbada de mundo e acaba se transformando num traficante de drogas, mas interessado em aproveitar a vida que o dinheiro oferece do que se tornar um bandido temido. Esta figura, João Guilherme Estrella, ou Johnny, tem relacionamentos dispersos, com amigos e com a própria mulher (Cléo Pires). Baseado num romance de Guilherme Fiuza, mostra as ações desse personagem entre 1982 e 1995, com uma transição muito eficiente do universo barra pesada das drogas para uma tentativa de real alegria na passagem pela Europa. Perseguido pela polícia, Johnny é o retrato do jovem que não quer se desvencilhar da eterna juventude.
Este grande sucesso de bilheteria e crítica dirigido por Marcelo Gomes segue a linha tradicional no cinema brasileira do road movie, inclusive com referências a Vidas secas e a Central do Brasil, no entanto com elementos nostálgicos de um Cinema Paradiso. Passado em 1942, mostra o alemão Johann (Peter Ketnath), que foge da Segunda Guerra Mundial para o Brasil, onde vende aspiras em um caminhão no interior do Nordeste, atraindo os compradores por meio de filmes promocionais. Nas suas jornadas, ele conhece Ranulpho (João Miguel), nordestino que pretende ir para o Rio de Janeiro. Ambos se tornam amigos. Esta história incomum é levada por Gomes de maneira sensível, com personagens interessantes e diálogos eficientes, além das boas atuações principais.
Filme que seguiu Central do Brasil na trajetória de Walter Salles e por isso foi tão contestado. Realmente, é difícil equivaler o talento que vemos em Central do Brasil, entretanto Abril consegue ser um projeto humano, bem interpretado e fotografado de maneira exata (por Walter Carvalho). Em certo sentido, é bem mais universal do que Central. Com base num romance de Ismail Kadere, adaptado por Karim Aïnouz, mostra o conflito entre duas famílias no Sertão, em 1910, sobretudo após a morte do filho de uma delas cometido por Tonho (Rodrigo Santoro), a mando do pai, após a morte de um de seus irmãos. São duas famílias que brigam por território e poder na região. Ele tem um irmão pequeno e se apaixona pelo mundo do circo quando ele passa pela cidade, sobretudo por uma de suas integrantes, Clara (Flávia Marco Antônio). Walter Salles dirige com bastante sensibilidade, mostrando a descoberta dessa criança e desse jovem de um mundo violento.
Talvez seja o primeiro projeto a mostrar o talento de Rodrigo Santoro como ator. Ele faz Neto, um jovem de periferia que tem pais bastante rígidos (Cássia Kiss e Othon Bastos, ambos muito bem), fuma maconha numa construção abandonada com os amigos e passa as suas noites em festas. Certo dia, o pai descobre um baseado em seu quarto e decide, achando também que o seu comportamento é estranho, interná-lo. No entanto, o interna num manicômio. Neto, então, depara-se com uma realidade que desconhecia. Laís Bodansky mostra grande talento ao contar a história, sem cair em maniqueísmos e ao mesmo tempo sendo contundente, sem grande orçamento (visível), mas agilidade na fotografia e na direção de arte, assustadora. A trilha tem canções excepcionais do poeta Arnaldo Antunes, que se encaixam de maneira orgânica na narrativa, a exemplo de “O buraco do espelho”, lido na parede do hospício, ou “Fora de si”, com seus versos quebrados e modernos. É a trilha sonora de Arnaldo que torna o filme tão contemporâneo e, ao mesmo tempo, para gerações diferentes. O momento em que Neto vai a uma festa e se apaixona por uma garota que o menospreza mais adiante mostra a saída da adolescência para a vida adulta, como poucas obras. E os coadjuvantes que contracenam com ele no manicômio são verdadeiramente ótimos, assim como quem faz seus médicos.
Logo depois do nostálgico Houve uma vez dois verões, Jorge Furtado trouxe esta história interessante sobre um rapaz que trabalhava com uma fotocopiadora e se interessa por uma menina que conhece num ônibus. Por meio de um roteiro muito eficiente e ágil, Jorge Furtado vai costurando a relação dos dois e mostrando as inter-relações que os personagens que cercam a trama, interpretados por Luana Piovani e Pedro Cardoso. Trata-se de uma trama labiríntica, com idas e vindas, explorando as motivações do personagem central de modo atrativo, inclusive visualmente.
Com rara sensibilidade, Serras da desordem trata da trajetória do índio Carapiru, que sobrevive ao massacre de famílias de guajás em 1977, colocando o próprio para reproduzir sua trajetória. Há imagens documentadas (sobretudo de jornais televisivos da Globo), mas na maior parte do filme o índio reencena sua peregrinação. Durante os 40 minutos iniciais, não há nenhum diálogo compreensível, ou seja, é mostrada a vida em sua tribo numa das serras do Maranhão, com crianças brincando em meio aos animais, homens e mulheres tomando banho num riacho. De repente, o primeiro sinal de outra civilização: um avião sobrevoa as árvores da floresta. Em seguida, o ataque de alguns fazendeiros com espingardas, com o objetivo de exterminar os indígenas e ocupar suas terras. A cena que segue à fuga de Carapiru do local de extermínio é emblemática: ele corre até os trilhos de trem que cortam a serra onde habitava e espera, com um olhar perdido, o que seria o símbolo da modernidade passar. Nesses primeiros passos, delineia-se o que será Serras da desordem: um filme reflexivo interrompido por uma música que lembra o barulho de trens e aviões. Depois dos minutos iniciais sem diálogos, entra uma música carnavalesca, mostrando imagens do país no fim dos anos 1970, com centenas de garimpeiros na Serra Pelada, os militares no poder, as hidrelétricas – representando o crescimento do país – e o Maracanã lotado. É interessante como Tonacci mostra esse salto do extermínio indígena para o que é considerado “moderno e avançado”. O diretor parece perguntar ao espectador o que seria o Brasil. Pois ele coloca o índio no extremo da modernidade em que o país está ingressando, ou seja, o índio registraria uma mística inadequada à busca incessante pelo poder e pelo dinheiro. A calmaria com que ele retrata a tribo cria um contraponto com a velocidade exigida pelo mundo capitalista, o que pareceria até simplista, não fosse retratado com bastante eficácia.
Esta fabulosa adaptação da peça teatral de Ariano Suassuna, mostrando a amizade entre Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele), originou-se na TV, em formato de minissérie. Em seguida, recebeu uma edição e tratamento para ser lançado nos cinemas. Com roteiro excepcional do diretor Guel Arraes com João Falcão e Adriana Falcão, a narrativa se encontra em Taperoá, na Paraíba, e mostra a interação dessa dupla com alguns habitantes da cidade, entre os quais Eurico (Diogo Vilela) e sua esposa Dora (Denise Fraga). Chicó se apaixona por uma menina rica, mas não imagina o que vem depois: a cidade pode ser invadida por cangaceiros (liderados por Marco Nanini). Guel Arraes consegue costurar a miséria em que vivem os personagens principais com a criatividade deles para sobreviver, e todas as suas ações para não criar ainda mais celeuma na verdade acabam retratando um universo cômico fora de série.
Adaptado do romance experimental de Raduam Nassar, Lavoura arcaica é a estreia no cinema de Luiz Fernando Carvalho, mais conhecido como diretor de telenovelas. Com uma fotografia exuberante e flashes existenciais que remetem a Tarkosvky, este filme se movimenta sobre uma paixão incestuosa do personagem feito por Selton Mello pela irmã (vivenciada por Simone Spoladore). Com longa duração, raridade no cinema brasileiro, nunca deixa de interessar ao acompanhar a vida de um jovem que foge das tradições patriarcais sintetizadas na figura do pai (Raul Cortez) e é encontrado na cidade, depois de fugir, pelo irmão Pedro (Leonardo Medeiros), a quem relata flashes de sua existência até então, mostrando, principalmente, o conflito dele com a religião católica da família. O filme possui uma atmosfera um pouco onírica, sempre que o personagem central se mantém como observador de costumes e danças. Também há uma sensação de gerações se encontrando no tempo, o que remete ao melhor cinema de Malick.
Baseado num romance de Paulo Lins, este segundo filme de Fernando Meirelles (codirigido por Kátia Lund) foi um acontecimento não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Se o filme tinha um estilo de filmagem que lembrava o melhor de Tarantino filtrado por Guy Ritchie, também havia uma naturalidade que não havia nesses filmes. Esta naturalidade se deve à força em mostrar a origem da favela no Rio de Janeiro conhecida pelo nome de Cidade de Deus. A história relata sua criação e os grupos de traficantes que foram se formando nela, com trocas de comando e muita violência para atingir esse objetivo. É contada pela lente de um menino que almeja ser fotógrafo e vive na favela, porém não quer o mesmo destino daqueles personagens que testemunha. Assim, é um relato memorialístico também de um personagem que deseja uma vida contrária àquela que vivencia. Meirelles tem necessidade de mostrar em detalhes a violência, o uso de drogas, os bailes funks, as traições e os reencontros de personagens que achavam ser bons, no entanto acabam sendo maus, sobretudo para si mesmos. Com uma fotografia quase sempre na mão, ou seja, com imagens trêmulas, Cidade de Deus emula um cidade estrangeiro que deu certo, mas oferece uma aceleração visual e de montagem de cenas digna de um mestre jovem como Daniel Rezende (que ajudou a montar A árvore da vida). As sequências passadas no presente, alternadas com o passado, fazem com que Cidade de Deus adquira uma dimensão desconhecida para o cinema brasileiro, e dá a Meirelles o status de grande diretor com uma obra-prima particularmente definitiva.