Vidro (2019)

Por André Dick

O universo do cineasta M. Night Shyamalan sempre teve como base uma mistura entre realidade e fábula. Isso fica claro não apenas em A dama na água e O último mestre do ar, mas, principalmente, A vila, filme campestre de suspense e terror, com grande elenco. Trata-se de uma vila, da qual as pessoas que nela moram não podem sair, cercada por grandes cercas e sempre com um vigia à noite, pois monstros podem atacar. Já é possível ver que a história  lida com o imprevisível, mas William Hurt e Sigourney Weaver, como os mandantes desta vila, concedem credibilidade aos diálogos. Um dos jovens (Joaquin Phoenix) acaba ferido por um rapaz excepcional (Adrian Brody), que está apaixonado por uma jovem cega (Bryce Dallas Howard). Ela se disponibiliza a sair da vila para buscar remédios, embrenhando-se na floresta assustadora. O figurino é adequado para isso (todo amarelo) e é interessante imaginar que estejamos em algum século passado para vermos o modo como essas pessoas agiam.

De certo modo, essa captura de uma realidade sob a camada fantasiosa já se encontrava em Corpo fechado, no qual Bruce Willis agia como um homem com um poder: ao tocar nas pessoas, consegue ver imagens capazes de identificar se são boas ou más. Em Fragmentado (a partir daqui, spoilers ligando os filmes), uma inesperada sequência de Corpo fechado, o personagem feito por James McAvoy, Kevin Wendell Crumb, se dividia em múltiplas personalidades, principalmente “a besta”. O foco era no sequestro que ele fazia de três jovens, Claire (Haley Lu Richardson), Marcia (Jessica Sula) e Casey (Anya Taylor-Joy). Crumb está de volta em Vidro, assim como o personagem David Dunn (Bruce Willis) e seu rival Elijah Price, o Sr. Glass (Samuel L. Jackson), rivais em Corpo fechado, uma espécie de estudo cinematográfico sobre as HQs antes de elas virem ajudar a coordenar a forma como se organiza a indústria contemporânea.
Inicialmente, Shyamalan mostra Dunn procurando Crumb depois que este escapou do zoológico, sob vigia do filho, Joseph (Spencer Trate Clark). Antes guarda na Filadélfia, agora ele é dono de uma loja de equipamentos de segurança e vai encontrar novas vítimas da “besta” quando o carrega preso. No entanto, acabam parando no Hospital Psiquiátrico Ravenhill, sob investigação de Ellie Stapple (Sarah Paulson), onde se encontra internado Glass. De maneira inesperada, Shyamalan estabelece contatos entre personagens de filmes diferentes, construindo uma trilogia jamais esperada, considerando-se que Stapple dialoga com a psiquiatra Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley), do filme anterior.

Do mesmo modo, quando coloca Casey (novamente Taylor-Joy) querendo ajudar Crumb, mostra uma interessante aproximação da mulher do universo dos quadrinhos enfocado principalmente em Corpo fechado e expandido aqui de modo ágil, também por meio da mãe de Price (Charlayne Woodard). Vidro consegue ser o estudo sobre três personagens, ligados por imagens de infância definidoras para seu comportamento, mesclando suspense e elementos de terror, sem nunca parecer uma obra derivada – mesmo que a visão de infância de Glass remeta ao parque de diversões de A fúria, de De Palma, uma clara influência aqui, e aos flashbacks de Casey em Fragmentado, quando os animais a serem abatidos numa caçada não eram tão ameaçadores quanto um determinado familiar. E que a infância é o mote de boa parte da filmografia de Shyamalan basta ver O sexto sentido e A visita.
Talvez seja surpreendente que Shyamalan consiga fazer, inclusive, o melhor episódio de sua trilogia, uma vez que os outros sofriam de quedas abruptas de ritmo, principalmente Fragmentado, e o primeiro possuía um final em aberto nunca satisfatório. Shyamalan adota uma variação de cenários dentro do Hospital Psiquiátrico, que acabam dialogando com os impulsos da narrativa: veja-se por exemplo a grande sala com pintura rosa, quase onírica, semi-iluminada, em que os personagens recebem perguntas da Dra. Stapple. Do mesmo modo, cada personagem adota uma cor: Glass, a roxa; Dunn, o branco; e Crumb, o amarelo, servindo como figurinos de heróis ou vilões de quadrinhos.

Shyamalan também tenta visualizar Casey como aquela que compreende a “besta” quase como Clarice na continuação de O silêncio dos inocentes em relação a Hannibal Lecter. O lugar onde Crumb prendia as jovens em Fragmentado não deixava de lembrar não apenas um labirinto humano, como também a falta de passagens para um lado equilibrado. Aqui os corredores do hospital e os quartos contrastam: os primeiros são escuros, nebulosos, e os segundos, iluminados. Nesse sentido, o trabalho de fotografia de Mike Gioulakis, o mesmo do anterior, é superior e com mais sutilezas.
Do mesmo modo, as luzes que disparam no rosto de Crumb criam uma sensação de claustrofobia e McAvoy é realmente bom aqui, sem precisar concentrar sua atuação como um destaque e sim como complemento aos demais personagens. Alternando uma estranha humanidade com uma violência de serial killer, Crumb tem um significado mais trabalhado do que no anterior e faz com que o terceiro ato se desenhe como uma espécie de mescla entre fantasia e ecos do 11 de setembro, que ocorreu um ano após o lançamento de Corpo fechado e que já se expressava na obra de Shyamalan em obras como Sinais e Fim dos tempos. A sequência em que Crumb corre como um animal contra policiais tendo ao fundo edifícios que remetem ao World Trade Center (representando, ao mesmo tempo, um ataque bestial de humanos contra humanos), é uma das melhores da trajetória o diretor. Os demais do elenco, principalmente Paulson, Willis, Taylor-Joy e Jackson, são muito competentes e ligados a um desespero humano por saber onde estamos. Eis que, para o diretor de origem indiana, os verdadeiros heróis estão concentrados todos os dias em enfrentar seus problemas de rotina. Num movimento incomum em seus filmes, Shyamalan se permite mesmo a se emocionar.

Glass, EUA, 2019 Diretor: M. Night Shyamalan Elenco: James McAvoy, Bruce Willis, Anya Taylor-Joy, Sarah Paulson, Samuel L. Jackson, Charlayne Woodard, Spencer Trate Clark Roteiro: M. Night Shyamalan Fotografia: Mike Gioulakis Trilha Sonora: West Dylan Thordson Produção: M. Night Shyamalan, Jason Blum, Marc Bienstock, Ashwin Rajan Duração: 129 min. Estúdio: Blinding Edge Pictures, Blumhouse Productions Distribuidora: Universal Pictures (Estados Unidos) e Buena Vista International (Internacional)

 

Rock em Cabul (2015)

Por André Dick

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Comédia dirigida por Barry Levinson, que fez filmes como O enigma da pirâmide, Rain Man, Avalon e Mera coincidência, além do recente (e inédito no Brasil) A baía, Rock em Cabul é um veículo para o talento de Bill Murray, capaz de sustentar uma trajetória desde o Saturday Night Live nos anos 70, com obras referenciais nos anos 80 (Os caça-fantasmas, Tootsie), 90 (Nosso querido Bob, Feitiço do tempo) e anos 2000 (Encontros e desencontros, Flores partidas), além de ter se tornado, desde Rushmore, no ator predileto de Wes Anderson. É um ator com potencial tanto de humor quanto dramático e caminha nesse meio-termo com raro talento, podendo até mesmo transformar uma participação especial (em Zumbilândia) no melhor momento de um filme. Poderíamos dizer como Woody Harrelson que é, afinal, o grande Bill Murray. Com uma bilheteria de 3 milhões para um custo modesto de 15, Rock em Cabul ingressou na lista de decepções do ano. Mais decepcionantes foram as críticas, certamente orientadas pelo politicamente correto e pela necessidade de os próprios norte-americanos criticarem a sua cultura quando ela aparece como influente em outro país, como se caracterizasse algo comercial ou desrespeitoso, em razão de a guerra já se constituir num assunto polêmico o bastante para dividir a população. Como fazer graça com temas que envolvem conflitos e militares em ação? Isto nunca poderia ser Timbuktu.

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No roteiro, Richie Lanz (Bill Murray) é um pretenso agente de novos músicos e trabalha no quarto de um motel em Van Nuys, na Califórnia. Depois de uma proposta, ele leva Ronnie (Zooey Deschanel, certamente brincando com seu personagem de Sim, senhor) para um turnê no Afeganistão em instâncias militares. Seu personagem é claramente um malandro, mas cuja humanidade e simpatia se sobressai à sua parcela menos confiável. Além de tudo, carrega a complicação de não poder ver sua filha, o que rende uma boa cena logo no início, depois de sua separação. O grande problema é que Ronnie foge com seu passaporte e dinheiro, deixando-o desesperado em Cabul. Determinada noite, ele conhece uma prostituta, Merci (Kate Hudson, um tanto subaproveitada, embora uma presença agradável), de quem fica amigo, assim como um motorista de táxi (o ótimo Arian Moayed), mas logo é ameaçado por Bombaim Brian (Bruce Willis, um pouco deslocado, mas atuando bem), enquanto conhece dois americanos com negócios suspeitos, Nick (Danny McBride) e Jack (Scott Caan). Interessado no que pode lhe ajudar para sair dessa enrascada, antes de tudo, ele descobre uma jovem afegã com talento, Salima (Leem Lubany). Repetindo a parceria de Moonrise Kingdom com Bruce Willis, Richie aproveita sua estadia em Cabul não apenas como forma de arrecadar dinheiro como de passar a ser o que tanto fala, um agente de música.

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A história foi adaptada de um documentário chamado Afghan Star, e se faz homenagem à protagonista dele, Setara Hussainzada. Com uma bela fotografia de Sean Bobbitt, parceiro de Steve McQueen, Rock em Cabul utiliza o cenário como uma espécie de sátira à própria procura de ídolos dos Estados Unidos. No entanto, como ver isso se é mais fácil ver que há uma exploração de uma cultura pela cultura ianque? É mais difícil ver que os americanos estão interessados em ficar dentro do quarto ou circulando pelas ruas enquanto explode uma guerra étnica do lado de fora. O personagem de Murray quer trocar ideias em vez de balas de metralhadora, então isso pode indicar que o americano simboliza a paz numa cultura em guerra? O que faz Merci, a prostituta, trabalhando num trailer dentro de uma base militar no Afeganistão? É preciso pensar em muitas coisas para negar que a narrativa tenha qualidade e uma sátira corrosiva por trás de sua linha fina e aparentemente simples (e é difícil negar que alguns personagens surgem e desaparecem sem dizer ao certo a que vieram). A mais fácil é realmente indicar que os diálogos e situações não têm respeito pela cultura afegã (Por via das dúvidas, o The Clash proibiu a música que dá título ao filme original ao longo da narrativa.) O personagem do agente feito por Murray tendo de aceitar o convite de uma tribo de afegãos e levar a eles um pouco de rock é o que marca esta obra de Barry Levinson.

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Barry Levinson já havia conseguido fazer uma comédia num cenário de guerra muito interessante nos anos 80, Bom dia, Vietnã, com Robin Williams. Aqui ele opta por uma visão mais distante dos acontecimentos e ainda assim tem uma certa coragem de fazer uma abordagem em que os países podem se unir por algum gosto, mesmo que isso pareça às vezes improvável ou açucarado para o espectador. Seu olhar não é menos profundo do que o Clint Eastwood em Sniper americano ao focalizar uma cultura estrangeira e um cenário em guerra, mas Rock em Cabul não é de Eastwood, e por isso precisa vir junto, nas críticas a ele, uma espécie de lição de moral embutida.
De qualquer modo, encontra no personagem de Murray uma figura empática, que diz a todos ter descoberto Madonna, e o ator está num bom momento, como recentemente também em Um santo vizinho. Sob determinado ângulo, o roteiro lembra Ishtar, comédia dos anos 80 com Warren Beatty e Dustin Hoffman, e é assinado por Mitch Glazer (que fez também o de Os fantasmas contra-atacam e A very Murray Christmas, com Murray), que se encarrega de não colocar uma ênfase desnecessária nos momentos de conflito, dosando a ironia nos momentos certos. Como um dos melhores filmes recentes de Levinson, A baía, Rock em Cabul é terrivelmente ignorado, como já o foi no ano passado Sob o mesmo céu, com o mesmo Murray em grande momento. Sinal de que as comédias de real qualidade não estão sendo prestigiadas como poderiam.

Rock the Kasbah, EUA, 2015 Diretor: Barry Levinson Elenco: Bill Murray, Kate Hudson, Bruce Willis, Zooey Deschanel, Danny McBride, Scott Caan, Kelly Lynch, Beejan Terra, Leem Lubany, Taylor Kinney, Fahim Fazli, Arian Moayed Roteiro: Mitch Glazer Fotografia: Sean Bobbitt Trilha Sonora: Marcelo Zarvos Produção: Bill Block, Ethan Smith, Mitch Glazer, Steve Bing Duração: 106 min. Distribuidora: Sony Pictures Estúdio: Dune Films / QED International / Shangri-La Entertainment / Venture Forth

Cotação 3 estrelas e meia

Moonrise Kingdom (2102)

Por André Dick

Moonrise Kingdom 7

Desde O fantástico Sr. Raposo, Wes Anderson é visto como um diretor que consegue contrabalançar o universo adulto diretamente com o infantojuvenil. Não que Os excêntricos Tenenbaums e A vida marinha com Steve Zissou não tivessem essa característica, mas tudo ficou mais claro com Sr. Raposo. Depois da partilha familiar de Viagem a Darjeeling, Anderson envereda de vez por esse universo, com os truques claros e evidentes de quem consegue, ao lado de Tim Burton, tornar a direção de arte num toque claro para que seus personagens e sua trama se esclareçam. Dificilmente se vê uma obra, nesse sentido, tão autossuficiente e interessante quanto Moonrise Kingdom, que estreou, em maio deste ano, no Festival de Cannes e fez uma trajetória de sucesso nos cinemas norte-americanos.
A história é simples como todos os filmes de Anderson: numa ilha, New Penzance, em 1965, um órfão, Sam Shakusky (Jared Gilman), decide abandonar seus amigos escoteiros, liderado pelo Mestre Ward (Edward Norton) para encontrar a menina por quem está apaixonado, Suzy Bishop (Kara Hayward). Nesse intervalo, os pais de Suzy, Walt (Bill Murray) e Laura (Frances McDormand) – que anda para cima e para baixo com um megafone –, o chefe da polícia local, Sharp (Bruce Willis) e Ward (Edward Norton), passam a percorrer a ilha, a fim de encontrá-los – mesmo que os pais adotivos de Sam pedem que ele não volte mais e lhe desejam “boa sorte”.

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Os diálogos, construídos em parceria com Roman Coppola (filho de Francis e mais conhecido como diretor de clipes de bandas como The Strokes), são afiados e exatos. Mas tudo, na verdade, é motivo para Anderson empregar seus movimentos de câmera baseados em Kubrick e lapidar os moldes visuais que vem insistindo ao longo de sua filmografia, tornando cada sequência uma espécie de quadro. Imagine-se que um artista que utiliza tais elementos pré-programados seja um artista previsível, no entanto Anderson sempre consegue destacar o cenário com que lida por meio da humanidade dos indivíduos que dispõe. Ou seja, seu estilo de artista plástico, combinando cores com uma pauta visual pronta para estabelecer o que o espectador deve pensar, não seria o mesmo sem sua sensibilidade autoral. Nesse sentido, Moonrise Kingdom é a realização plena como cineasta, equilibrando o humor nostálgico de Os excêntricos Tenenbaums com o teatro patético de A vida marinha com Steve Zissou, abrindo cortinas para uma trilha sonora sempre atraente de Alexandre Desplat (A árvore da vida) e uma fotografia de notável estética de Robert D. Yeoman, que tentam criar uma espécie de fábula visual única, com a direção de arte. Não há corte nenhum entre essas obras, sobretudo com o subestimado A vida marinha de Steve Zissou – inclusive os uniformes em amarelo utilizados e um aspecto ensolarado meio morno de Moonrise Kigdom dialogam diretamente com essa obra, em que os figurinos da tripulação de Zissou (feitos por Milena Canonero) eram de um azul celeste e todos usavam gorro vermelho. Os uniformes dos escoteiros combinam com o cenário real e irreal das árvores e dos campos; o vestido da menina, laranja, combina com a cor do farol, onde sua família mora, e é um contraponto ao azul do céu atrás dela e à parada de ônibus vermelha. O papel das cartas, assim como a cor das canetas usadas para a escrita, tem uma importância fundamental, como nos Tenenbaums e em Steve Zissou. Cada quadro é especialmente desenhado para que Anderson consiga obter o que pretende. Perceba-se, na disposição dos móveis da casa da família, na apresentação inicial (que lembra a apresentação do submarino de Steve Zissou com travellings horizontais), uma notória influência da cenografia de O iluminado (há, inclusive, quando se mostra a casa dos Bishop inicialmente, a pele de um urso com a boca aberta, igual àquela do saguão do filme de Kubrick), com seus tapetes hermeticamente colocados, assim como os sofás e a iluminação da escada ao fundo, e de Laranja mecânica (as cores dos quartos e dos cômodos da casa têm muito da casa e do quarto de Alex), como se neste pedaço Wes Anderson pudesse compensar o espectador com uma espécie de infância remota ou de algum resquício de história e descrição que conhecemos apenas de livros e fábulas. Ou aquela cena em que o casal de crianças está na praia, sobre a areia, evocando algum filme europeu perdido no tempo, tentando retratar uma certa melancolia.

De qualquer modo, nada seria o mesmo sem o elenco – destaque tanto em Os excêntricos Tenenbaums quanto A vida marinha com Steve Zissou, e ele se pronuncia aqui em ótimas interpretações de Murray e de McDormand. Mesmo atores menos acostumados a este tipo de filme (como Willis e Norton) saem-se bem, assim como Tilda Swanton na pele de uma agente social, Harvey Keitel como Pierce, líder principal dos escoteiros,  e todas as crianças – Anderson é especialista nato em selecionar talentos, como foi Spielberg em determinado período dos anos 80.
Na verdade, Anderson parece especialmente interessado – e em se tratando de um trabalho com características autorais as obsessões estão presentes sempre em larga escala – por um período situado entre a infância, a adolescência e a vida adulta. Se em Os excêntricos Tenenbaums os personagens de Richie (Luke Wilson) e Margot (Gwyneth Palthrow) tentavam resolver sua paixão recolhida numa barraca iluminada montada no meio de sala, como se fosse um refúgio da realidade, em Moonrise Kingdom esse afastamento se reproduz em vários elementos, desde o menino que joga usa pedrinhas para segurar um mapa no solo até o momento em que ele está numa enseada com Suzy, e numa casa construída por escoteiros numa árvore. E sobretudo nos momentos em que Suzy utiliza seus binóculos – segundo ela, com poderes mágicos – para ver o que seu olhar normalmente não alcançaria.
Toda a iluminação – de luzes no teto ou de abajures – parece concentrar uma beleza que reproduz o espaço no qual os personagens circulam. Para Anderson, o universo sempre pode ser comprimido numa sala ou numa cabana, ou num idealismo aventureiro – como o do chefe dos escoteiros, que lembra imediatamente Steve Zissou, principalmente por seu elemento patético. E, dentro desta compressão, para Anderson, a família tem um papel fundamental: é ao redor dela que sempre circulam os receios e as aventuras que podem denominar uma nova compreensão da realidade. As famílias de Anderson são desajustadas, não há dúvida: há sempre um pai indefinido entre ter responsabilidade ou assumir sua condição; uma mãe que tenta levar segurança aos filhos, às vezes sem uma certeza definitiva; as crianças estão sempre à espera de uma decisão que pode ser ou não de seu feitio; e os adultos são, em sua maioria, bastante confusos.
Suzy, em Moonrise Kingdom, tem o poder de concentrar todos os meninos ao redor. Se ela interpreta o corvo numa encenação da ópera “O dilúvio de Noé”, do britânico Benjamin Britten – quando conheceu Sam e que será uma analogia fundamental para o que acontecerá no filme –, sendo ela mesma vista como tal em sua família, também gosta de carregar os livros com histórias para poder contá-las aos outros. Num acampamento, ela, à noite, está para encerrar a história, mas todos dizem estarem escutando o relato e ela decide continuar. Quando encontra Sam para saírem em viagem pela floresta, deixando a casa para trás, incomoda-se ao mostrar que é tratada como problemática pela família e ser ironizada – Anderson sempre ironiza seus personagens, no bom sentido. Nesse sentido, parece bem claro que a menina, aqui, é um vínculo tanto para a maturidade e para o mundo fabulístico, e Anderson não torna nada muito efetivamente familiar, contudo mantém o tom de fábula, contrapondo a narração das histórias de Suzy com a de um historiador da ilha (Bob Balaban). Nessa jornada pela ilha, eles vão se deparar com a morte algumas vezes, e a ameaça dela é o que os coloca em movimento.

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Outras referências para Sam são o delegado e o chefe dos escoteiro. O primeiro quer realizar seu serviço da melhor maneira possível, mas não esquece de dizer, em determinado momento, que é menos inteligente do que Sam, e o outro se diz professor de matemática nas horas vagas de chefe de escoteiro. Ele idolatra o chefe total (Harvey Keitel), que o considera um panaca, porém mostra que é uma intersecção entre o universo infantil e a vida adulta, em suas tentativas contínuas de agradar a equipe e aos comandados. Há momentos excelentes dentro do grupo de escoteiros, principalmente aqueles em que Ward aparece (Norton tem sua melhor interpretação em muitos anos) e outro mais experiente, Ben (Jason Schwartzman), procura faturar uns trocados com os problemas de Sam e Suzy.
Outro elemento presente sempre na filmografia de Anderson – e não é diferente em Moonrise Kingdom – é a música. Os personagens circulam em torno dela. Era assim em Os excêntricos Tenenbaums, em que o melhor momento (o encontro de Margot com Richie) era embalado ao som de uma trilha sonora indie, assim como em A vida marinha com Steve Zissou o cantor brasileiro Seu Jorge dedilhava músicas de David Bowie em seu violão, tentando afastar a maresia da viagem.
Em Moonrise Kingdom, Sam e Suzy descobrem a sexualidade ao som de “Le temps de l’amour”, de Hardy – numa sequência feita com sensibilidade por Anderson, sem nenhuma espécie de exagero. Ainda assim, a melhor sequência me parece ser aquela em que Suzy e Sam acabam de se casar numa tenda do acampamento e saem, com os demais escoteiros, em câmera lenta. Tal estilo de cena é uma repetição dos encontros entre Richie e Margot – descendo do ônibus – em Os excêntricos Tenenbaums ou de Steve Zissou descendo uma rua de paralelepípedos com uma criança nos ombros, em seu épico marinho, mas parece ser aqui que Anderson a costura da melhor forma. Há, em Moonrise Kingdom, um elemento que parecia não haver nos demais: uma espécie de europeização das imagens, que se contrabalança com o estilo de Anderson. Se ele ainda mostra alguns momentos patéticos – como a vistoria matinal de Ward no acampamento ou Bishop segurando um machado, como Jack Torrance de O iluminado, e saindo “para procurar alguma árvore a fim de derrubar” –, parece que as crianças, aqui, transformam o que poderia ser interpretado como humor simplesmente contido em algo mais denso. Não me parece exatamente que Anderson, como diz em entrevistas, mostra que as crianças sabem lidar mais com os problemas, e sim que elas percebem muito mais a vertente patética das trajetórias humanas. Além disso, os seus personagens são, na verdade, adultos infantis, que dificilmente conseguem agir de maneira plausível e, quando o fazem, é sempre por alguma circunstância misteriosa. Não parece à toa que o núcleo seja o universo dos escoteiros: um universo em que o adulto parece estar numa volta à infância e à descoberta de valores mais específicos, além do colorido que proporciona para a estética de Anderson. É neste núcleo em que Sam circula com sua amada, tentando colocar sua vida nas mãos da responsabilidade, que pode ou não estar próxima. Não há exatamente nenhum humor nisso – como em seus outros fimes, sobretudo A vida marinha com Steve Zissou, Anderson emprega, aqui, um desalento que torna os personagens, em alguns momentos, dependentes da sua própria fuga.
Por todos esses elementos, Moonrise Kingdom é uma obra rara nos tempos atuais: ao mesmo tempo em que diverte, proporcionando uma experiência estética, de cores e descobertas, consegue lidar com os sentidos da morte e da experiência amorosa de modo realmente interessante. Sam e Suzy são representações claras de que Anderson não deseja exatamente fazer um cinema exclusivo apenas para adultos ou para crianças, e sim de que para chegar ao campo em que pretende precisa tentar definir a relação entre o que se chama de maturidade e a infância.

Moonrise Kingdom, EUA, 2012 Diretor: Wes Anderson Elenco: Bruce Willis, Edward Norton, Tilda Swinton, Bill Murray, Frances McDormand, Jason Schwartzman, Harvey Keitel, Kara Hayward, Jared Gilman, Bob Balaban Produção: Wes Anderson, Jeremy Dawson, Steven M. Rales, Scott Rudin Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola Fotografia: Robert D. Yeoman Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 95 min. Distribuidora: Universal Estúdio: American Empirical Pictures / Indian Paintbrush / Scott Rudin Productions

Cotação 5 estrelas

 

Publicado originalmente em 1º de novembro de 2012

Pulp Fiction – Tempo de violência (1994)

Por André Dick

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É  preciso ingressar no universo de Quentin Tarantino para gostar de seus filmes, feito a partir de referências cinematográficas, musicais e de quadrinhos, mas com um senso de espaço e tempo notáveis. Realizado quase ao mesmo tempo em que contribuiu com roteiros para Oliver Stone (Assassinados por natureza) e Tony Scott (Amor à queima-roupa), Pulp Fiction – filme que sucedeu Cães de aluguel – começa com Vincent Vega (Travolta) e Jules (Jackson) indo cobrar dívidas com um sujeito que não cumpriu acordo com o chefe deles, Marsellus Wallace (Ving Rhames), enquanto caminham tranquilamente por um corredor numa manhã que se anuncia como calma. Vincent está preocupado porque precisará fazer companhia à mulher do chefe, Mia (Uma Thurman), por uma noite. Tarantino leva o casal o casal para uma lanchonete estilizada, uma homenagem a Elvis Presley, também com sósias de James Dean e Marilyn Monroe, onde Vincent tenta demonstrar ou esconder interesse pela mulher do chefe, ao fazer comentários sobre o preço abusivo do milk-shake e comentar sobre o passado de outro capanga selecionado para cuidá-la. De acordo com o ambiente, a conversa desvia para o plano da atuação:  Mia participou de um piloto de série de TV, e Vincent, com suas pulp fictions de bolso, deseja participar desse universo paralelo. Trata-se de uma das sequências mais divertidas, com elementos de videoclipe, e referências a Os embalos de sábado à noite, ainda que vaga e estranha, pois não se sabe ao certo se termina em um episódio que não deve ser contado a Marcellus e envolve um casal suburbano (Eric Stoltz e Patricia Arquette), amigo de Vincent.

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Em outra história, temos Butch (Bruce Willis), boxeador que precisa perder uma luta e pensa, antes de tudo, viver tranquilamente com sua namorada (Maria de Medeiros). Quando criança, ele ganhou um relógio importante deixado por seu pai a um amigo (Cristopher Walken), escondido num lugar delicado durante um longo tempo, na II Guerra Mundial. A história de Butch se cruzará com as de Vincent e de Marcellus – desta vez num ambiente inesperado e filmado por Tarantino com requintes de crueldade e de histórias em quadrinhos perversas, mas também, e eis o diferencial do diretor, com um aspecto de humanidade (além de uma homenagem aos filmes dos anos 50, com a conversa de Butch com uma taxista, tendo um fundo externo acertadamente falso). E, por mais que os personagens se castiguem, a recompensa acaba sendo uma espécie de saída da rotina em que estão inseridas, mesmo que Tarantino nunca seja complacente nas imagens, tornando uma singela loja numa espécie de superfície do subterrâneo também do seu dono.
Pulp Fiction não deixa de ser o segundo passo, depois de Cães de aluguel, com sua conhecida sequência final, que trabalha com diferentes histórias a fim de compor um painel do submundo e de gângsteres que podem se arrepender e mesmo perdoar diante de uma situação extrema, ou se ajudarem quando se encontram com uma situação pior do que aquela que causam. Daí, Tarantino transitar por conversas sobre as drogas de Amsterdã e o Big Mac de Paris e pelos personagens de Samuel L. Jackson (que recita versículos da Bíblia para suas vítimas) e Travolta discutindo porque nenhum deles quer limpar o banco do carro ensanguentado depois de um acontecimento acidental; nesse caminho, é possível que haja a mudança completa para um deles e se passa a falar de redenção, capaz até mesmo de poder convencer dois assaltantes (Amanda Plummer e Tim Roth) que pretendem mudar sua vida passando a assaltar lanchonetes.

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São poucas as tramas, assim como mostraria em Kill Bill e Bastardos, mas Tarantino dá um tratamento especial a cada uma delas, e dar atenção significa transformar os diálogos em camadas, assim como lança mão de uma fotografia especial de Andrzej Sekula (contrastando as cenas que se passam à noite e de manhã cedo) e uma montagem com precisão rítmica de Sally Menke, que participou dos filmes de Tarantino até Bastardos inglórios e veio a falecer em 2010 (e é justamente a montagem que veio a prejudicar longas sequências de Django livre). Quando Vincent e Jules precisam buscar abrigo na casa de um conhecido (Tarantino) e necessitam da ajuda de um especialista para se livrar de um corpo, conhecido singelamente como Wolf (Harvey Keitel, em momento excelente), que sai de uma festa familiar diretamente para o serviço, o filme se encaminha como um quebra-cabeças que deve ser completado, pois podemos tanto estar no início do filme quanto em seu final. Mas esse detalhe não é brusco, ou seja, não se sente a quebra da narrativa. Como em poucos filmes, parece que, mesmo na antilinearidade, existe uma narrativa que se adianta e volta sem que haja sobressaltos. Tarantino filma grande parte das cenas de Pulp Fiction com câmera quase imóvel, e os travellings servem para dar velocidade à trama. Sua melhor característica está lá, desde o início: são os diálogos ditos com velocidade, e ainda assim calculados, um a um, apesar de muitas vezes parecerem dispersos, o que se revela também em suas trajetórias de vingança, Kill Bill, Bastardos inglórios e o recente Django livre. Ao mesmo tempo em que usa muitos diálogos, conserva uma narrativa limpa, sem excessos, à medida que a percepção de Tarantino da montagem de um filme (com a colaboração de Menke) consegue sempre transformá-lo numa peça que vai tomando mais força. E impressiona como as atitudes dos personagens vão mudando conforme a necessidade, como o intervalo que se dedica a Butch e a Marcellus, com um ato derradeiro impressionante e que antecipa Kill Bill, ou quando percebemos que Vincent e Jules podem estar no passado de uma história que já teve seu final.
Neste filme, que melhora muito com uma revisão – ao contrário, parece-me, que Cães de aluguel, ele ganha mais amplitude –, Tarantino também retoma atores improváveis (como Eric Stoltz no papel de um vendedor de drogas, que seria, a princípio, de Kurt Cobain; o próprio Willis como um boxeador; e Travolta, quase esquecido durante toda a década de 80, como o capanga), além de confirmar o talento de outras (Uma Thurman, Jackson, Keitel), tornando Pulp Fiction, que recebeu a Palma de Ouro, em Cannes, de melhor filme e o Oscar de roteiro original (tendo sido indicado a melhor filme, entre outros), uma espécie de retrato demarcado de um período, mas capaz de dialogar com outros e com uma visão própria do universo que Scorsese ajudou a dar uma definição derradeira, com Os bons companheiros.

Pulp Fiction, EUA, 1994 Diretor: Quentin Tarantino Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Tim Roth, Amanda Plummer, Eric Stoltz, Bruce Willis, Ving Rhames, Phil LaMarr, Maria de Medeiros, Rosanna Arquette, Peter Greene, Uma Thurman, Steve Buscemi, Christopher Walken, Quentin Tarantino, Harvey Keitel Produção: Lawrence Bender Roteiro: Quentin Tarantino, Roger Avary Fotografia: Andrzej Sekula Trilha Sonora: Karyn Rachtman Duração: 154 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Miramax Films / Jersey Films / A Band Apart

Cotação 5 estrelas

Vencedor.Palma de Ouro no Festival de Cannes

Moonrise Kingdom (2012)

Por André Dick

Desde O fantástico Sr. Raposo, Wes Anderson é visto como um diretor que consegue contrabalançar o universo adulto diretamente com o infantojuvenil. Não que Os excêntricos Tenenbaums e A vida marinha com Steve Zissou não tivessem essa característica, mas tudo ficou mais claro com Sr. Raposo. Depois da partilha familiar de Viagem a Darjeeling, Anderson envereda de vez por esse universo, com os truques claros e evidentes de quem consegue, ao lado de Tim Burton, tornar a direção de arte num toque claro para que seus personagens e sua trama se esclareçam. Dificilmente se vê uma obra, nesse sentido, tão autossuficiente e interessante quanto Moonrise Kingdom, que estreou, em maio deste ano, no Festival de Cannes e fez uma trajetória de sucesso nos cinemas norte-americanos, chegando ao Brasil com lamentável atraso (tanto que nos Estados Unidos ele já foi lançado em Blu-Ray).
A história é simples como todos os filmes de Anderson: numa ilha, New Penzance, em 1965, um órfão, Sam Shakusky (Jared Gilman), decide abandonar seus amigos escoteiros, liderado pelo Mestre Ward (Edward Norton) para encontrar a menina por quem está apaixonado, Suzy Bishop (Kara Hayward). Nesse intervalo, os pais de Suzy, Walt (Bill Murray) e Laura (Frances McDormand) – que anda para cima e para baixo com um megafone –, o chefe da polícia local, Sharp (Bruce Willis) e Ward (Edward Norton), passam a percorrer a ilha, a fim de encontrá-los – mesmo que os pais adotivos de Sam pedem que ele não volte mais e lhe desejam “boa sorte”.

Os diálogos, construídos em parceria com Roman Coppola (filho de Francis e mais conhecido como diretor de clipes de bandas como The Strokes), são afiados e exatos. Mas tudo, na verdade, é motivo para Anderson empregar seus movimentos de câmera baseados em Kubrick e lapidar os moldes visuais que vem insistindo ao longo de sua filmografia, tornando cada sequência uma espécie de quadro. Imagine-se que um artista que utiliza tais elementos pré-programados seja um artista previsível, no entanto Anderson sempre consegue destacar o cenário com que lida por meio da humanidade dos indivíduos que dispõe. Ou seja, seu estilo de artista plástico, combinando cores com uma pauta visual pronta para estabelecer o que o espectador deve pensar, não seria o mesmo sem sua sensibilidade autoral. Nesse sentido, Moonrise Kingdom é a realização plena como cineasta, equilibrando o humor nostálgico de Os excêntricos Tenenbaums com o teatro patético de A vida marinha com Steve Zissou, abrindo cortinas para uma trilha sonora sempre atraente de Alexandre Desplat (A árvore da vida) e uma fotografia de notável estética de Robert D. Yeoman, que tentam criar uma espécie de fábula visual única, com a direção de arte. Não há corte nenhum entre essas obras, sobretudo com o subestimado A vida marinha de Steve Zissou – inclusive os uniformes em amarelo utilizados e um aspecto ensolarado meio morno de Moonrise Kigdom dialogam diretamente com essa obra, em que os figurinos da tripulação de Zissou (feitos por Milena Canonero) eram de um azul celeste e todos usavam gorro vermelho. Os uniformes dos escoteiros combinam com o cenário real e irreal das árvores e dos campos; o vestido da menina, laranja, combina com a cor do farol, onde sua família mora, e é um contraponto ao azul do céu atrás dela e à parada de ônibus vermelha. O papel das cartas, assim como a cor das canetas usadas para a escrita, tem uma importância fundamental, como nos Tenenbaums e em Steve Zissou. Cada quadro é especialmente desenhado para que Anderson consiga obter o que pretende. Perceba-se, na disposição dos móveis da casa da família, na apresentação inicial (que lembra a apresentação do submarino de Steve Zissou com travellings horizontais), uma notória influência da cenografia de O iluminado (há, inclusive, quando se mostra a casa dos Bishop inicialmente, a pele de um urso com a boca aberta, igual àquela do saguão do filme de Kubrick), com seus tapetes hermeticamente colocados, assim como os sofás e a iluminação da escada ao fundo, e de Laranja mecânica (as cores dos quartos e dos cômodos da casa têm muito da casa e do quarto de Alex), como se neste pedaço Wes Anderson pudesse compensar o espectador com uma espécie de infância remota ou de algum resquício de história e descrição que conhecemos apenas de livros e fábulas. Ou aquela cena em que o casal de crianças está na praia, sobre a areia, evocando algum filme europeu perdido no tempo, tentando retratar uma certa melancolia.

De qualquer modo, nada seria o mesmo sem o elenco – destaque tanto em Os excêntricos Tenenbaums quanto A vida marinha com Steve Zissou, e ele se pronuncia aqui em ótimas interpretações de Murray e de McDormand. Mesmo atores menos acostumados a este tipo de filme (como Willis e Norton) saem-se bem, assim como Tilda Swanton na pele de uma agente social, Harvey Keitel como Pierce, líder principal dos escoteiros,  e todas as crianças – Anderson é especialista nato em selecionar talentos, como foi Spielberg em determinado período dos anos 80.
Na verdade, Anderson parece especialmente interessado – e em se tratando de um trabalho com características autorais as obsessões estão presentes sempre em larga escala – por um período situado entre a infância, a adolescência e a vida adulta. Se em Os excêntricos Tenenbaums os personagens de Richie (Luke Wilson) e Margot (Gwyneth Palthrow) tentavam resolver sua paixão recolhida numa barraca iluminada montada no meio de sala, como se fosse um refúgio da realidade, em Moonrise Kingdom esse afastamento se reproduz em vários elementos, desde o menino que joga usa pedrinhas para segurar um mapa no solo até o momento em que ele está numa enseada com Suzy, e numa casa construída por escoteiros numa árvore. E sobretudo nos momentos em que Suzy utiliza seus binóculos – segundo ela, com poderes mágicos – para ver o que seu olhar normalmente não alcançaria.
Toda a iluminação – de luzes no teto ou de abajures – parece concentrar uma beleza que reproduz o espaço no qual os personagens circulam. Para Anderson, o universo sempre pode ser comprimido numa sala ou numa cabana, ou num idealismo aventureiro – como o do chefe dos escoteiros, que lembra imediatamente Steve Zissou, principalmente por seu elemento patético. E, dentro desta compressão, para Anderson, a família tem um papel fundamental: é ao redor dela que sempre circulam os receios e as aventuras que podem denominar uma nova compreensão da realidade. As famílias de Anderson são desajustadas, não há dúvida: há sempre um pai indefinido entre ter responsabilidade ou assumir sua condição; uma mãe que tenta levar segurança aos filhos, às vezes sem uma certeza definitiva; as crianças estão sempre à espera de uma decisão que pode ser ou não de seu feitio; e os adultos são, em sua maioria, bastante confusos.
Suzy, em Moonrise Kingdom, tem o poder de concentrar todos os meninos ao redor. Se ela interpreta o corvo numa encenação da ópera “O dilúvio de Noé”, do britânico Benjamin Britten – quando conheceu Sam e que será uma analogia fundamental para o que acontecerá no filme –, sendo ela mesma vista como tal em sua família, também gosta de carregar os livros com histórias para poder contá-las aos outros. Num acampamento, ela, à noite, está para encerrar a história, mas todos dizem estarem escutando o relato e ela decide continuar. Quando encontra Sam para saírem em viagem pela floresta, deixando a casa para trás, incomoda-se ao mostrar que é tratada como problemática pela família e ser ironizada – Anderson sempre ironiza seus personagens, no bom sentido. Nesse sentido, parece bem claro que a menina, aqui, é um vínculo tanto para a maturidade e para o mundo fabulístico, e Anderson não torna nada muito efetivamente familiar, contudo mantém o tom de fábula, contrapondo a narração das histórias de Suzy com a de um historiador da ilha (Bob Balaban). Nessa jornada pela ilha, eles vão se deparar com a morte algumas vezes, e a ameaça dela é o que os coloca em movimento.

Outras referências para Sam são o delegado e o chefe dos escoteiro. O primeiro quer realizar seu serviço da melhor maneira possível, mas não esquece de dizer, em determinado momento, que é menos inteligente do que Sam, e o outro se diz professor de matemática nas horas vagas de chefe de escoteiro. Ele idolatra o chefe total (Harvey Keitel), que o considera um panaca, porém mostra que é uma intersecção entre o universo infantil e a vida adulta, em suas tentativas contínuas de agradar a equipe e aos comandados. Há momentos excelentes dentro do grupo de escoteiros, principalmente aqueles em que Ward aparece (Norton tem sua melhor interpretação em muitos anos) e outro mais experiente, Ben (Jason Schwartzman), procura faturar uns trocados com os problemas de Sam e Suzy.
Outro elemento presente sempre na filmografia de Anderson – e não é diferente em Moonrise Kingdom – é a música. Os personagens circulam em torno dela. Era assim em Os excêntricos Tenenbaums, em que o melhor momento (o encontro de Margot com Richie) era embalado ao som de uma trilha sonora indie, assim como em A vida marinha com Steve Zissou o cantor brasileiro Seu Jorge dedilhava músicas de David Bowie em seu violão, tentando afastar a maresia da viagem.
Em Moonrise Kingdom, Sam e Suzy descobrem a sexualidade ao som de “Le temps de l’amour”, de Hardy – numa sequência feita com sensibilidade por Anderson, sem nenhuma espécie de exagero. Ainda assim, a melhor sequência me parece ser aquela em que Suzy e Sam acabam de se casar numa tenda do acampamento e saem, com os demais escoteiros, em câmera lenta. Tal estilo de cena é uma repetição dos encontros entre Richie e Margot – descendo do ônibus – em Os excêntricos Tenenbaums ou de Steve Zissou descendo uma rua de paralelepípedos com uma criança nos ombros, em seu épico marinho, mas parece ser aqui que Anderson a costura da melhor forma. Há, em Moonrise Kingdom, um elemento que parecia não haver nos demais: uma espécie de europeização das imagens, que se contrabalança com o estilo de Anderson. Se ele ainda mostra alguns momentos patéticos – como a vistoria matinal de Ward no acampamento ou Bishop segurando um machado, como Jack Torrance de O iluminado, e saindo “para procurar alguma árvore a fim de derrubar” –, parece que as crianças, aqui, transformam o que poderia ser interpretado como humor simplesmente contido em algo mais denso. Não me parece exatamente que Anderson, como diz em entrevistas, mostra que as crianças sabem lidar mais com os problemas, e sim que elas percebem muito mais a vertente patética das trajetórias humanas. Além disso, os seus personagens são, na verdade, adultos infantis, que dificilmente conseguem agir de maneira plausível e, quando o fazem, é sempre por alguma circunstância misteriosa. Não parece à toa que o núcleo seja o universo dos escoteiros: um universo em que o adulto parece estar numa volta à infância e à descoberta de valores mais específicos, além do colorido que proporciona para a estética de Anderson. É neste núcleo em que Sam circula com sua amada, tentando colocar sua vida nas mãos da responsabilidade, que pode ou não estar próxima. Não há exatamente nenhum humor nisso – como em seus outros fimes, sobretudo A vida marinha com Steve Zissou, Anderson emprega, aqui, um desalento que torna os personagens, em alguns momentos, dependentes da sua própria fuga.
Por todos esses elementos, Moonrise Kingdom é uma obra rara nos tempos atuais: ao mesmo tempo em que diverte, proporcionando uma experiência estética, de cores e descobertas, consegue lidar com os sentidos da morte e da experiência amorosa de modo realmente interessante. Sam e Suzy são representações claras de que Anderson não deseja exatamente fazer um cinema exclusivo apenas para adultos ou para crianças, e sim de que para chegar ao campo em que pretende precisa tentar definir a relação entre o que se chama de maturidade e a infância.

Moonrise Kingdom, EUA, 2012 Diretor: Wes Anderson Elenco: Bruce Willis, Edward Norton, Tilda Swinton, Bill Murray, Frances McDormand, Jason Schwartzman, Harvey Keitel, Kara Hayward, Jared Gilman, Bob Balaban Produção: Wes Anderson, Jeremy Dawson, Steven M. Rales, Scott Rudin Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola Fotografia: Robert D. Yeoman Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 95 min. Distribuidora: Universal Estúdio: American Empirical Pictures / Indian Paintbrush / Scott Rudin Productions

Cotação 5 estrelas