Por André Dick
O diretor Ridley Scott tem se mostrado, com 84 anos, um dos nomes mais profícuos da história do cinema. Em 2017, ele já havia lançado dois filmes, Alien: Covenant e Todo o dinheiro do mundo, além de ter sido produtor de Blade Runner 2049. Agora, em 2021, volta a mostrar um par de projetos, O último duelo e Casa Gucci, ambos praticamente com a mesma equipe principal. Ambos os filmes mostram como se trata de um cineasta multifacetado. Se O último duelo apresenta elementos de sua fascinação pela história, a exemplo de Gladiador, Cruzada e Robin Hood, Casa Gucci tem mais elementos de sua aproximação com a cultura italiana, o que já se mostrava em Hannibal e Todo o dinheiro do mundo.
O último duelo traz roteiro de Ben Affleck e Matt Damon, repetindo a parceria de Gênio indomável, com o acréscimo de Nicole Holofcener. A narrativa mostra dois cavaleiros amigos, Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jacques Le Gris (Adam Driver), que servem ao conde Pierre d’Alençon (Ben Affleck, surpreendente), nomeado senhor supremo de Jean por seu primo, o rei Carlos VI, na França, por volta de 1386. Jacques, no entanto, comete um ato contra a mulher de Jean, Marguerite de Thibouville (Jodie Comer), o que vai acarretar o dilema moral da história, muito bem trabalhado sob determinados pontos de vista.
Scott extrai de Affleck e Damon duas atuações que estão entre as melhores dos dois – particularmente Damon tinha atuações precárias nos últimos anos. Do mesmo modo, Driver é muito enigmático, como o seu personagem requer, e Comer uma atriz excepcional na sua discrição. O filme tem uma história sob diferentes pontos de vista, o que remete a Rashomon, com grande qualidade nas suas intenções e apresenta um design de produção e figurino espetaculares, como era de se esperar num filme de Scott. Por meio desses olhares distintos, Scott estabelece sua tentativa de mostrar toda uma textura social de época e, apesar de conseguir na maior parte do tempo, há um certo excesso na duração, o que faz com que alguns momentos não se estabeleçam com tanta fluidez. Mesmo assim, os diálogos e a presença ambígua de Jacques e conde Pierre estabelecem uma segurança para a narrativa em todos os pontos desenvolvidos, assim como há uma visão crua desse embate dos homens.
Casa Gucci, por sua vez, mostra a paixão de Maurizio Gucci (novamente Adam Driver) e Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Ele é filho de Rodolfo (Jeremy Irons), responsável pela marca Gucci, ao lado do irmão Aldo (Al Pacino), e não quer ver o filho envolvido com uma mulher de outra classe social. No entanto, o filho gosta de Patrizia e decide se casar com ela. Com um toque de Todo o dinheiro do mundo nos cenários e nas situações, Scott traça um conflito familiar entre Maurizio e seu pai, e de Aldo com seu atrapalhado filho Paolo (Jared Leto). Driver emana bem um homem simples e que não quer se consagrar como o pai e Lady Gaga é efetivamente uma mulher ambiciosa, embora com toques de certa inocência e paixão irresolvível. A interação entre os dois é muito boa, assim como Irons é especial em conferir um toque de dramaticidade, e Pacino está num de seus melhores momentos. Mesmo o atacado Jared Leto, com uma excepcional maquiagem, atua de maneira que faz lembrar de certos filmes italianos dos anos 50 e 60, como Visconti e Fellini, com um personagem extremamente exagerado e que, estranhamente, pelo menos para mim, consegue ser a alma da obra, elevando as cenas em que aparece. É nesse sentido que Casa Gucci tem algo de Trapaça, de David O. Russell, com um exagero de época, mas é mais calibrado, por causa do roteiro acertado de Becky Johnston e Roberto Bentivegna, que não complica nem facilita demais a apresentação desse universo da moda.
Assim como O último duelo, Casa Gucci trabalha com personagens um pouco confusos e com dilemas morais a serem vividos. Se no primeiro Scott lança um tema existencial, de violação da inocência, em Casa Gucci ele trabalha com personagens que almejam o poder, no entanto não sabem bem o motivo nem como fazê-lo. Nesse sentido, Driver oferece nuances, assim como Gaga entrega falas de impacto e uma boa desenvoltura, embora não tão exitosa quanto a que mostrou em Nasce uma estrela. Scott consegue unir elenco e roteiro de modo que há um crescimento forte dessas figuras. A transformação de Maurizio é muito bem trabalhada, e seu envolvimento com Patrizia elaborado em minúcias, principalmente a partir da metade do filme, quando a relação entre eles é trabalhada de modo dúbio e eficiente e se insere outra personagem entre eles. A edição é ágil, com cenas compactas, tecendo uma espécie de miniépico nas relações entre esses personagens, remetendo a O siciliano, de Michael Cimino, e à trilogia dos Corleone de Coppola sobretudo em algumas paisagens e tons da espetacular fotografia de Dariusz Wolski, o mesmo de O último duelo. O filme também, pela trilha sonora, consegue uma atmosfera intensa de anos 70 e depois dos anos 80, remetendo, por vezes, a Wall Street, de Oliver Stone, sem nunca cansar em seus 158 minutos. É por isso um dos filmes mais subestimados de 2021, para mim superior a O último duelo e que continua mostrando o talento inesgotável de Scott em recriar seu estilo cinematográfico em cada detalhe, de verdadeiro amor ao cinema ainda baseado em imagens grandiosas, mesmo quando revela apenas a rotina de figuras que tentam se encontrar.
House of Gucci, EUA, 2021 Direção: Ridley Scott Elenco: Lady Gaga, Adam Driver, Jared Leto, Jeremy Irons, Salma Hayek, Al Pacino Roteiro: Becky Johnston e Roberto Bentivegna Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ridley Scott, Giannina Scott, Kevin J. Walsh, Mark Huffam Production Duração: 158 min. Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer, Bron Creative, Scott Free Productions Distribuidora: United Artists Releasing (Estados Unidos) e Universal Pictures (Internacional).
The last duel, EUA/ING, 2021 Direção: Ridley Scott Elenco: Matt Damon, Adam Driver, Jodie Comer, Ben Affleck Roteiro: Nicole Holofcener, Matt Damon, Ben Affleck Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ridley Scott, Kevin J. Walsh, Jennifer Fox, Nicole Holofcener, Matt Damon, Ben Affleck Duração: 153 min. Estúdio: Scott Free Productions, Pearl Street Films, TSG Entertainment Distribuidora: 20th Century Studios