Dias de paraíso (1978)

Por André Dick

Dias de paraíso.Cena 1

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

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Dias de paraíso.Cena 3

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

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Dias de paraíso.Malick.Cena 3A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Dias de paraíso.Malick.Cena

Dias de paraíso.Malick 2

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

Especial Terrence Malick

Terrence Malick.Especial.Diretor.Cinematographe

Terrence Malick nasceu em 30 de novembro de 1943 em Ottawa, Illinois, ou Waco, Texas, filho de Irene e Emil A. Malick, que trabalhava como geólogo. Ele estudou na St. Stephen’s Episcopal School em Austin, Texas, enquanto sua família morava em Tulsa, Oklahoma. Malick tinha dois irmãos mais novos: Chris e Larry.
Como Peter Biskind relata, em Como a geração sexo-drogas-rock’n’roll salvou Hollywood:

Ele (Malick) era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu a Terry que fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhode Escolar, e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso opressivo da culpa.

A árvore da vida.Música

A árvore da vida.Música 2

Parece o prenúncio de A árvore da vida: Malick parece ser o menino O’Brien que carrega a lembrança do irmão que gostava de música. A presença desta se dá em todos os filmes de Malick, mais diretamente pelo símbolo do piano. Desde aquele do pai de Holly, em Terra de ninguém, passando por aquele que o Sr. O’Brien utiliza para ensinar a seus filhos em A árvore da vida, até aqueles que tanto Neil quanto Marina se mostram próximos em Amor pleno, mais ainda pela utilização das composições de Carl Orff, George Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Nat King Cole e Erik Satie (em Terra de ninguém), de Wagner e Mozart (em O novo mundo) e de Zbigniew Preisner, Gustav Mahler, Ottorino Respighi, Johann Sebastian Bach e Mozart novamente (em A árvore da vida), Malick transforma a música quase numa referência para seus filmes.

A árvore da vida.Piano

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To the wonder.Piano

Malick estudou filosofia na Universidade de Harvard, e seguiu para a Magdalen College, Oxford. Depois de se desentender com seu tutor, Gilbert Ryle, a respeito do conceito de mundo em Heidegger, Wittgenstein e Kierkegaard, ele deixou Oxford sem o doutorado (em 1969, a Northwestern University Press chegou a publicar a tradução de Malick de Vom Wesen des Grundes, de Heidegger). De volta aos Estados Unidos, ensinou filosofia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, enquanto trabalhou independentemente como jornalista, escrevendo artigos para a Newsweek, The New Yorker e Life.
Malick foi iniciar a carreira de cineasta após receber um MFA do American Film Institute, em 1969, na direção de Lanton Mills. No AFI, ele conheceu, por exemplo, Jack Fisk, que seria seu colaborador de longa data, e o agente Mike Medavoy , que colocou Malick para revisar roteiros. Ele acabou sendo creditado pelas primeiras versões de Dirty Harry (1971), Deadhead Miles (1972) e Meu nome é Jim Kane (1972), além de ter feito uma das primeiras versões de Great balls of fire, sobre a trajetória de Jerry Lee Lewis.

Terra de ninguém.Filme 3

Depois do roteiro de Deadhead Miles, ele conseguiu realizar seu primeiro filme, Terra de ninguém, com a ajuda do produtor Ed Pressman:

“Malick havia escrito um roteiro chamado Terra de ninguém. Queria que Pressman financiasse o projeto. Brian estudou Pressmann com a intensidade de um zoólogo e lhe deu alguns conselhos. Desajeitado como era, Pressman parecia um convite aberto ao abuso, e De Palma sugeriu que Malick alternasse elogios com maus-tratos. Conta-se que Malick, que tinha o dobro do tamanho de Pressman, certa vez tinha se levantado de uma cadeira segurando a orelha de Pressman e fazendo força para se erguer.
Malick convenceu Pressman a financiar Terra de ninguém […] Foi filmado com minguados recursos próprios num total de 350 mil dólares, no Colorado. Não havia dinheiro suficiente nem para dailies. Era a primeira experiência de Malick como diretor, mas estava determinado a fazer tudo do seu jeito. Certa vez, disse a uma pessoa da equipe: ‘Vou colocar (o ator) na frente da janela, então, quando escurecer, você pode continuar a filmar, você vai ter mais luz’.

‘Terry, você pode colocá-lo onde  quiser, a gente ilumina.’

‘Não precisa me dizer isso. Já fiz dois filmes de 8mm.’

[…]

Malick estava obcecado pelo filme. Mesmo quando o dinheiro acabou, ele continuou filmando cenas de cobertura sozinho, com a ajuda de alguns locais”.

Elogiado no Festival de Cinema de Nova York, Terra de ninguém obteve inúmeros elogios, embora Pauline Kael considerasse (não sem nenhuma exatidão) um filme frio. Roger Ebert o colocou na sua galeria de grandes filmes, assim como Dias de paraíso (embora seja A árvore da vida que figure no seu Top 10 de todos os tempos). A Warner acabou por comprar o filme.
A Paramount produziria o seu filme seguinte, Dias de paraíso, que se passa na Fazenda de Panhandle, no Texas, no início do século passado.

Dias de paraíso.Casa

As filmagens foram extenuantes e complicadas:

“A produção começou no outono de 1976. Como De Palma, Malick era um diretor que trabalhava essencialmente dentro da sua cabeça. Os atores e a equipe achavam-no frio e distante, ele estava tendo dificuldades em conseguir desempenhos razoáveis. Com duas semanas de filmagem, bastava olhar para os dailies para ver que nada estava funcionando, parecia teleteatro ruim. Malick decidiu jogar fora o roteiro, ir na direção de Tolstoi em vez de Dostoievski, amplidão no lugar de profundidade, e filmou quilômetros de película na esperança de poder consertar os problemas na mesa de montagem.
A produção seguia a passo de cágado. As velhíssimas ceifadeiras mecânicas viviam quebrando, o que significava que as filmagens só começavam no final da tarde, com poucas horas até o fim do dia até que ficasse escuro demais para continuar; apesar disso, as imagens embebidas da luz dourada do poente, eram lindas, ainda que o diretor de fotografia Nestor Almendros estivesse ficando cego. Um de seus assistentes tirava polaroides da cena, que ele examinava usando óculos fortíssimos para fazer os ajustes necessários.

[…]

E depois ainda teve a montagem, que levou mais de dois anos – Malick era famoso por sua indecisão. Ou apenas meticuloso, dependendo de quem esteja pagando as contas.

[…]

À medida que mais e mais pedaços de diálogos iam para o lixo, a trama tornava-se incompreensível e Malick se debatia entre várias maneiras de trazer alguma lógica para a trama, finalmente optando por uma voz over”.

Após o lançamento de Dias de paraíso, Malick começou a desenvolver, também para a Paramount, o filme Q, que pretendia contar a origem da Terra, o que acabou servindo como projeto para a A árvore da vida. No entanto, nessa época, ele viajou para a Europa e refugiou-se em Paris, onde ficou recluso um bom período de sua vida, quando seu desaparecimento havia já se tornado conhecido. Em 1997, regressou com Além da linha vermelha.

Além da linha vermelha.Cena 2

O novo mundo.Cena 4

Antes de realmente filmar A árvore da vida, Malick chegou a se envolver com o filme sobre Che Guevara, que seria, afinal, feito por Steven Soderbergh. Em meio aos preparativos, ele teve a oportunidade de realizar O novo mundo.
Contando a história romântica entre o oficial inglês John Smith e Pocahontas, O novo mundo teve três versões de tamanhos variados e foi nomeado apenas ao Oscar de melhor fotografia. Embora interessante, ele não tem o magnetismo dos demais filmes de Malick.
Sob o ponto de vista do magnetismo, há uma notória influência da pintura de Edward Hopper em Malick, assim como em David Lynch. Vejamos, por exemplo, que a casa de Dias de paraíso (imagem acima) dialoga com Hopper, da pintura “House by the railroad”.

Edward Hopper.House-by-the-railroad

E os trilhos de trem, habituais em Hopper, tanto no quadro acima (em frente à casa) como em “Queensborough bridge”, como se Malick trabalhasse a ideia de travessia, de continuidade e dois pontos interligados, como seus personagens:

Edward Hopper.Queensborough Bridge 2

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Cena

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Malick

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 10

Em Amor pleno:

To the wonder.Trilhos

Malick também é influenciado pelo pintor Andrew Wyeth, sobretudo em Dias de paraíso e Amor pleno (abaixo as pinturas  “Christina’s world” e “Wind from the sea”, esta capturada em vários instantes de Amor pleno quando os personagens Neil e Marina ficam próximos às cortinas):

Andrew Wyeth.Christina's World.Pintura

Andrew Wyeth.Wind from the sea

A pintura, inclusive, é a profissão do pai de Holly, e uma cena-chave de Terra de ninguém é quando ele conversa com Kit enquanto faz um de seus trabalhos, num imenso outdoor com uma imagem tipicamente norte-americana em meio a uma planície.

Terra de ninguém.Cena 4

Um dos filhos da família O’Brien também pinta numa página em A árvore da vida, criando, em seguida, um conflito:

A árvore da vida.Pintura

Com essa influência pictórica, vem a simbologia do contato com a natureza, sobretudo, em todos seus filmes, com a água, elemento que revigora os personagens em uma determinada trajetória. Vejamos:

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Filme 7

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Água

Em Além da linha vermelha:

Além da linha vermelha.Filme 6

Em O novo mundo:

O novo mundo.Cena 1

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 11

Em Amor pleno:

To the wonder.Água

Junto com a presença da água, a filmografia de Malick compõe personagens envolvidos por incertezas e ligações metafísicas. Se o primeiro casal de sua carreira, em Terra de ninguém, cometia crimes pelo interior dos Estados Unidos, mergulhados numa espécie de vazio contínuo, diante das paisagens mais belas, em Dias de paraíso o Éden era ameaçado por gafanhotos, numa cena de origem bíblica. Em Além da linha vermelha, a natureza fazia o papel de Deus em meio à batalha, com suas árvores e rios, assim como em O novo mundo, com a figura de Pocahontas auxiliando neste contato. Em A árvore da vida e Amor pleno, a base religiosa é ainda mais forte, com as figuras do luto e do amor sendo compreendidos à luz da igreja, não ligando-se a uma determinada religião, mas, de forma mais ampla, à espiritualidade e à criação do mundo. Os personagens de Malick, ainda assim, não são porta-vozes de alguma ideia religiosa, mas sim vagam em meio à incerteza. É de se pensar que os casais de Malick (Kit e Holly em Terra de ninguém; Bill e Abby em Dias de paraíso; John Smith e Pocahontas em O novo mundo; o casal O’Brien de A árvore da vida; e Neil e Marina em Amor pleno) jamais conseguem desenhar, a partir de suas relações, uma verdade sobre o universo; pelo contrário, parecem sempre perseguir um horizonte inalcançável.

Terra de ninguém.Filme 4

Dias de paraíso.Cena 2

O novo mundo.Filme 3

A árvore da vida.Casal

To the wonder.Malick 16

A fotografia de seus filmes é extraordinária. Também com costume de trabalhar com fotógrafos diferentes a cada filme, tem repetido a parceria com Emmanuel Lubezki desde O novo mundo, e A árvore da vida e Amor pleno se constituem em dois dos mais belos filmes já feitos. Isso para não atestar que o trabalho de Brian Probyn, Tak Fujimoto e Stevan Larner para Terra de ninguém; de Nestor Almendros para Dias de paraíso; e de John Toll para Além da linha vermelha são irrepreensíveis.
As paisagens dos filmes de Malick são sempre familiares. Waco, onde teria nascido, foi utilizado em A árvore da vida, assim como Smithville. Seu raríssimo Amor pleno foi filmado em Tulsa, Oklahoma, onde morava sua família. Perceba-se nos filmes Terra de ninguém, Dias de paraíso, A árvore da vida e Amor pleno que Malick mostra a paisagem do Texas – e a própria obsessão de Malick por figuras do interior ou inseridas no interior. Mesmo em Além da linha vermelha, com a paisagem da II Guerra Mundial, a natureza cria uma redoma ao redor dos personagens, e os flashbacks sempre tentam alcançar o outro lado do oceano.
Sob esse ponto de vista, parece que as voice overs adotadas por Malick em seus filmes também existem para que não haja um excesso de diálogos que interfiram diretamente no ambiente, resguardando sempre uma aproximação à distância. Se essa voice over foi utilizada em Dias de paraíso, que ele julgava problemático, é de se pensar que constituiu, desde o início, uma referência original de sua obra, uma maneira de reelaborar a filosofia que existia em seus roteiros de modo mais transparente. O filme em que este elemento parece menos orgânico é O novo mundo.

A árvore da vida 8

A árvore da vida.Cena 13

Malick ganhou a Palma de Ouro de diretor por Dias de paraíso e a principal por A árvore da vida. Enquanto Além da linha vermelha e A árvore da vida foram indicados aos Oscars de melhor filme e direção, Dias de paraíso e A árvore da vida foram indicados nessas mesmas categorias ao Globo de Ouro. Recebeu o Urso de Ouro por Além da linha vermelha e o Prêmio Signis do 69º Festival Internacional de Cinema de Veneza por Amor pleno.
Ao contrário de David Lynch, com quem compartilha afinidades estéticas e está se dedicando apenas à carreira musical e de diretor de videoclipes no momento, Malick já tem três projetos em filmagem ou em processo de montagem. Um deles se chamava Lawless, com Ryan Gosling, Natalie Portman, Cate Blanchett e Rooney Mara, atualmente ainda sem título. O outro é Knight of cups, com Christian Bale. Há ainda o documentário Voyage of time, com imagens feitas para a A árvore da vida, sobre a criação da terra, com a narração de Brad Pitt, e que vem sofrendo alguns problemas de produção.
Conhecido por não conceder entrevistas, o que é estipulado em seus contratos, Malick também dificilmente se deixa fotografar, sendo raras suas aparições. Podemos vê-lo numa ponta de sua estreia, Terra de ninguém.

Terra de ninguém.Terrence MalickDe 1970 a 1976, Malick foi casado com Jill Jake; de 1985 a 1998, com Michele Morette; e é casado atualmente com Alexandra  “Eckie” Wallace.
A partir de amanhã, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por Terrence Malick.

Twin Peaks – Fire walk with me (1992)

Por André Dick

A série Twin Peaks foi um grande sucesso quando lançada nos Estados Unidos, criando uma verdadeira febre. Ao final da primeira temporada, em que o agente Cooper viajava à cidade de Twin Peaks para investigar a morte da rainha da escola Laura Palmer, envolvendo-se com inúmeros personagens, que mostravam a verdadeira face de um lugar tranquilo, havia muito interesse pela série, resultando mesmo em livros (com o diário de Laura e das gravações do agente Dale Cooper). O piloto foi um dos maiores acontecimentos da televisão: um thriller excepcionalmente dirigido e narrado, que teve uma versão internacional (com, em torno, de 20 minutos a mais, em que se revelava a imagem do assassino, mas sem explicá-lo totalmente). Com o início da segunda temporada, o interesse foi diminuindo, até a descoberta da identidade do assassino de Laura. Depois, a série se tornou mais uma investigação de Cooper e da polícia local para achar o Black Lodge, lugar na floresta de Twin Peaks com passagem para um universo negativo, e da caverna da coruja (símbolo do mal da série). A segunda temporada intensifica um humor negro próprio de Lynch, embora insira personagens e diálogos inferiores aos da primeira temporada. No entanto, o interesse se mantém e alguns episódios (sobretudo aqueles dirigidos por Lynch) são tão bons quanto alguns dos primeiros.
Quando a segunda temporada terminou, a série não teve sua renovação para a terceira temporada, deixando várias perguntas sem resposta. Não é o filme Twin Peaks – Fire walk with me (no Brasil, Os últimos dias de Laura Palmer) que solucionará todas as dúvidas, mas o objetivo, em parte, é este (a partir daqui há spoilers, caso não se queira saber de detalhes do filme). Lançado no Festival de Cannes de 1992, foi inicialmente muito criticado, entretanto, com o passar dos anos, foi sendo reavaliado de modo vital. É a melhor obra de Lynch e aquela que antecipa seus filmes mais recentes (como A estrada perdida, Cidade dos sonhos e Império dos sonhos), sendo menos hermético do que todos eles. É, no entanto, o cineasta em estado bruto, uma paranoia visual em vermelho, com contrastes de verde, amarelo e azul.

Começa com a viagem do detetive Chester Desmond (o cantor Chris Isaak) para Deer Meadow, com seu parceiro, Sam Stanley (Kiefer Sutherland), a fim de se investigar a morte de Teresa Banks. Ela foi morta com um taco de beisebol (o filme abre com uma televisão sendo quebrada) e o assassino deixou uma letra embaixo de uma de suas unhas, além de tê-la embrulhado num plástico (igual ao início da série de TV). Numa das sequências mais improváveis e divertidas de todos os filmes de Lynch – a dificuldade de dialogar com a políciade Deer Meadow, que não quer a presença do FBI, ou seja, é o contrário da de Twin Peaks –, depois de a moça vestida de vermelho, Lil (Kimberly Anne Cole) – contra um aeroplano amarelo –, acompanhada de Gordon Cole (David Lynch), dar informações codificadas sobre o que seria o caso e alertando que ele poderia pertencer aos casos da “rosa azul” (que traz em seu vestido), o filme se encaminha para uma lanchonete típica da região, Hap’s Diner – com a imagem em néon de um palhaço chorando -, em que os agentes ficam sabendo que, dias antes de sua morte, o braço de Teresa havia ficado imobilizado e que ela estava envolvida com drogas. Ambos vão ao lugar onde ela vivia, num trailer, tendo Harry Dean Stanton, ótimo, como o zelador Carl Rodd, do qual aceitam um café que os desperta – como se diz, um “Good morning, America” – em meio a retratos de Teresa com um anel verde e a uma senhora que se aproxima do trailer tampando o olho e sem saber aonde ir. Já sabemos, a partir daí, que Lynch vai esconder mais do que relevar, sobretudo quando Desmond, ao chegar ao trailer dos Tremond, e encontrar embaixo dele o mesmo anel que viu na foto de Teresa, passa para outro universo (outro simbolismo: o mesmo do final do filme e que carregava Teresa Banks, e uma referência também ao anel que pode representar o poder ou a morte do Duque Leto, de Duna, assim como o despertar do adormecido. Este é o anel da coruja, e todos que o seguram são, no filme de Twin Peaks, mortos, como vemos em parte da simbologia em relação a essa ave).
Os Tremond não existem: eles são uma velhinha (Frances Bay, de Veludo azul) e seu neto (interpretado na série pelo filho de Lynch, Austin Jack Lynch; no filme, por Jonathan  J. Leppell), que fazem parte também, como outros personagens de Twin Peaks (como o anão e o gigante), de um universo paralelo. Aparecem no segundo capítulo da segunda temporada, de forma meio displicente, quase sem chamar a atenção, quando Donna Hayward, que substitui Laura Palmer na entrega de refeições da lanchonete, leva comida à senhora Tremond, e ela pergunta se há cereal de milho em seu prato. Primeiro há; depois, não: o neto fez com que desaparecesse, reaparecendo em sua mão, pois seria um mágico.

Não surpreendentemente, depois de um encontro onírico com um agente desaparecido, Phillip Jeffries (um David Bowie  envolto em névoas de TV, numa participação verdadeiramente surreal), Dale Cooper surge para investigar o desaparecimento de Desmond e ele se depara, na volta do lugar onde desaparecera Chester, com uma inscrição em seu carro: “Let’s rock” (a frase dita pelo anão da série), e alerta que o crime se repetiria, pois é um personagem – sabemos pela série – que acredita sobretudo no imponderável.
O espectador é transportado para o ano seguinte, para a cidade de Twin Peaks, em que vemos a rainha Laura Palmer (Sheryl Fenn, em atuação vigorosa), indo com a amiga Donna (aqui Moira Kelly, substituindo Laura Flynn Boyle e trazendo um ar mais juvenil, puro, à personagem) para o colégio, em meio a uma calçada arborizada, na tentativa de mostrar um lado idílico da cidade (numa sequência igual àquela de Jeffrey Beaumont em Veludo azul, antes de se encontrar com Sandy). Logo se estabelece sua relação dupla com James Hurley (James Marshall) e Bobby Briggs (Danna Aschbrook). Depois, passamos a acompanhar, de forma substancial (pouquíssimo esclarecida na série), o relacionamento problemático de Laura com o pai, Leland (Ray Wise, em ótimo momento), sobretudo por causa da ausência de sua mãe. E as refeições são um pesadelo, afinal o pai precisa olhar suas unhas, para ver se elas estão sujas, antes das refeições – e o pai simboliza toda a perda de referências da personagem.

Há dois momentos que demarcam facetas diferentes de Laura. Em um resquício de inocência, ela entrega refeições da lanchonete. Num dos dias recebe um quadro, com uma fotografia, dos Tremond, que aparecem e desaparecem, lembrando antes que alguém está mexendo no diário dela. À noite, quando ela dorme, passa a sonhar que está dentro do quadro, onde encontra o anão do Red Room (o brilhante Michael Anderson) e o agente Cooper, que pede para que ela não segure o anel da coruja dado pelo anão (aquele que diz, ao contrário: “Let’s rock”). Ela sente o braço adormecer, como aconteceu com Teresa Banks e, quando acorda, vê Annie Blackburn ao seu lado (Annie é a namorada de Dale Cooper na série, a qual ele tenta resgatar do Black Lodge), assim como o anel em sua mão (num close exatamente igual, em sua mão ao que Lynch faz na mão de Paul Atreides quando este segura o anel deixado pelo pai em Duna). Toda essa parte simboliza, não há dúvida, numa tentativa de Lynch estabelecer uma ligação de Laura com esses personagens estranhos e com o agente que, no futuro, investigará sua morte – e, como a primeira parte, é uma pintura visual.

Em outro momento, na ida ao clube noturno de Twin Peaks, Laura encontra a Senhora do Tronco, que fala que a sua pureza está indo embora. Essa perda da pureza de Laura é simbolizada de forma impactante por Lynch, com ela entrando no clube e vendo, contra uma cortina vermelha, Julee Cruise cantando sob uma iluminação azul (remetendo à Isabella Rosselini em Veludo azul), criando um diálogo com o Jeffrey Beaumont de Veludo azul. Na verdade, se Laura gostaria de sair do universo estranho em que está inserido, Jeffrey gostaria de despertar nele – são opostos que se equivalem, também como em toda a filmografia de Lynch.

A sequência deste momento – a ida de Laura e Donna com caminhoneiros para uma boate do Canadá – é ainda mais impactante, pois Lynch a filma com um vermelho explosivo, das lâmpadas, do vermelho da rosa pendurada na porta do quarto de Laura, do coração na porta da casa dos Palmer, assim como dispõe um grupo de pessoas estranhas (algumas com chapéu de caubói, remetendo a Cidade dos sonhos). É uma viagem para a perdição, para onde Laura deseja ir com ansiedade, rompendo a ligação com Jeffrey – o emblema das marcas de cerveja se transformam em garrafas e cigarros espalhados pelo chão (numa aproximação que remete a Coração selvagem e Veludo azul) – e onde ela reencontra Ronette Pulaski (Phoebe Augustini) e Jacques Renault (Walter Olkewicz). No entanto, ela quer deixar Donna, sua melhor amiga, da porta para fora – e clarões de luz se pronunciam em seu rosto quando surge o arrependimento, pois Lynch preenche sua Laura desse sentimento. Trata-se de uma sequência, acima de tudo, extraordinária.
Deve-se destacar, também, nesse sentido, a cena em que Laura acompanha Donna até sua casa e mais tarde é buscada pelo pai, que relembra de um dia decisivo, cujo desfecho mostra o garoto Tremond, com sua máscara, pulando ao som de um barulho que remete ao anão do Red Room e que surge também quando Dale Cooper olha para o poste perto de onde morava Teresa Banks no início do filme. E Lynch mostra a paranoia de Laura sob os efeitos de drogas, mas sem nunca cair numa psicodelia visual ou forçada e passa a colocar o anel como o signo capaz de ameaçá-la. Igual à sua mãe, em determinado momento, ao tomar leite, tem uma visão que evoca “The blank shake”, pintura de Magritte, explorando ainda mais o aspecto pictórico do filme e sua ligação com a floresta.

Laura Palmer é o foco deste filme, ao contrário da série, em que havia inúmeros personagens, e talvez esta seja a principal distância que o filme mantém da série (já que a fotografia de Ron García e a música arrebatadora de Angelo Badalamenti continuam iguais, senão melhores). Não há o hotel Great Northern, ou seja, não há também cenas de humor ou de encontros de estrangeiros pelos corredores do hotel; os conflitos da madeireira, os discursos estranhos do prefeito, também não vemos os relacionamentos amorosos do xerife e do dono do hotel ou as inúmeras passagens na lanchonete, onde aconteciam alguns dos momentos mais divertidos da série; nem tanta presença de Dale Cooper, cujo bom humor certamente mantinha boa parte da série; ou seja, de certo modo, é outra coisa (cenas extras com alguns desses personagens foram cortadas, e comenta-se que teriam até uma hora, que há anos se promete serem lançadas).

Todavia, o clima da série está todo lá, com a inserção de jovens que tentam lidar com a proximidade de Laura com a morte (Bobby e James, seus amantes), o homem perturbado que guarda o diário de Laura (e que na série mora ao lado dos Tremond, suicidando-se em sua estufa); o cafetão Jaques Renault; a misteriosa casa de Laura Palmer; a dança do anão e a sala vermelha; os semáforos noturnos impedindo a passagem ou não dos motoqueiros; e mais: há um plano em negativo que conduz a outro universo, desencadeando um universo bom. O universo do filme se reduz especificamente à trajetória de Laura, à sua solidão; por isso, para uma série tão expansiva, cheia de personagens, fica um vazio, mas é o vazio a ser completado com a história dela, para que entendamos o que vem depois. Desse modo, o filme se sustenta sozinho, também pela qualidade da narrativa e a direção excepcionalmente concentrada de Lynch.
É importante dizer que o cineasta transforma vários símbolos (o anão, Bob, Mike) em figuras importantes para tentar esclarecer este filme. O sangue, ao final, transformando-se em cereal de milho mostra a “garmonbozia” (mistura de dor e sofrimento) do anão e toda a simbologia da série – do menino Tremond, passando pela cena do jantar e do café da manhã na casa dos Palmer, até o menino atrás da máscara (o mesmo menino Tremond), comendo o cereal.

É como se o mundo se alimentasse também dessa dor e através desse alimento nativo, de séculos. A floresta de Lynch representa séculos de simbologia – nela, esconde-se algo sempre estranho, uma ameaça. E os clarões na floresta, onde mora a velha com o tronco, iluminam, na verdade, os personagens do outro mundo, que não existem. A cena em que Laura e Bobby recebem drogas no meio do bosque – do mesmo policial de Deer Meadow, que tenta impedir o acesso do agente Chester Desmond ao xerife – representa esse prenúncio de perigo. Laura vê as árvores, a floresta, como uma representação deste subterfúgio e de seu desaparecimento.
Do mesmo modo, entrar num quadro ou num sonho pode ser um perigo iminente em um universo onde se busca os amigos para fugir de casa, do sonho de vida. Lynch quer desenhar esta pintura, porém não especifica as cores, deixando que façamos a própria mistura.
E, ao fazer reaparecer o anjo que some num quadro de Laura Palmer – com o qual ela sonha, como John Merrick sonhava em dormir normalmente, ao olhar pinturas de seu quarto, em O homem elefante –, ao final, Lynch encerra a série e o filme com uma nota otimista, do encontro da personagem com a luminosidade e uma divindade.

Ela alcança o White Lodge, o lugar investigado também por Cooper na série, em que estão as criaturas do bem (como o velho atendente do hotel, o gigante). Neste ponto, o final se diferencia daquele exibido na série. No último capítulo, Cooper entra no Black Lodge para resgatar sua namorada. Lá, ele encontra Window Earle, um ex-agente federal que enlouquece e cujo fogo é capturado por Bob. Encontra Laura e seu pai, e o lado ruim de Cooper. A série se encerra melancolicamente, com Bob possuindo o agente Cooper. No filme, esta ideia é suplantada, e Laura ganha a liberdade definitiva, após a punição do assassino (flutuando no ar, como o Barão Harkonnen de Duna). Seu corpo boia para ser descoberto pelos policiais da cidade, mas seu espírito está liberto. Na verdade, Twin Peaks se encerra com uma simbologia transcendental, própria de Lynch. Mais do que em Veludo azul ou no piloto da série e em seus melhores episódios, existe, aqui, uma trajetória em queda e, depois, em subida; existe o sonho de normalidade do personagem. Para ele, um personagem como Laura, com duas personalidades, aluna comportada de dia e que se prostitui à noite, que finge uma pureza, mas é viciada em drogas, quando se encontra com Cooper em sonho (também na série), é um encontro sobretudo com a normalidade, apesar de estar imersa na estranheza. E, ao não se render à figura de Bob, ou seja, ao Black Lodge, consegue escapar dessa floresta estranha e perturbadora. Na série, Cooper só se entrega a ele para salvar sua amada, ou seja, acima de tudo, a série e o filme de David Lynch tratam do amor mais intenso.

Twin Peaks – Fire walk with me, EUA/FRA, 1992 Diretor: David Lynch Elenco: Sheryl Lee, Ray Wise, Dana Ashbrook, Madchen Amick, James Marshall, Heather Graham, David Bowie, Chris Isaak, Kiefer Sutherland, Kyle MacLachlan Produção: Francis Bouygues, Gregg Fienberg Roteiro: David Lynch, Robert Engels Fotografia: Ronald Víctor García Trilha Sonora: Angelo Badalamenti Duração: 135 min Estúdio: CiBy 2000 / New Line Cinema

Cotação 5 estrelas

Especial David Lynch

Por André Dick

O cineasta David Keith Lynch nasceu em 20 de janeiro de 1946 em Missoula, Montana, filho de um cientista, Donald Walton Lynch, que servia o Departamento de Agricultura dos EUA, e de uma professora de inglês, Edwina “Sunny” Lynch. Depois de uma infância com várias mudanças de cidade, Lynch, em 1964, começou seus estudos na School of the Museum of Fine Arts, Boston. Voltando de uma viagem à Europa, foi estudar pintura, em 1965, na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, na Filadélfia, onde conheceu sua primeira esposa, Peggy Reavey, com quem teve Jennifer Lynch. Sua carreira teve início com a realização de dois curtas-metragens: Six figures getting sick (1966) e The Alphabet (1968), cuja protagonista era Peggy, o que lhe permitiu o ingresso no American Film Institute (AFI), fazendo com que ganhasse uma bolsa para rodar o curta de animação The grandmother, em 1970. Com ele, entrou, em 1971, no Centro de Estudos Avançados do Cinema de Los Angeles. Depois, novamente com a ajuda do AFI, iniciou a rodagem de seu primeiro longa, Eraserhead, em 1972. No meio do caminho, em 1974, rodou outro curta-metragem, The amputee, sobre uma mulher com as pernas amputadas (sua filha Jennifer estrearia na direção com Encaixotando Helena, um filme com ideia semelhante). Terminado em 1976 e lançado em 1977, Eraserhead, por sua vez, considerado uma de suas obras-primas e por Stanley Kubrick, seu filme favorito. Como ele surgiu? “Some years ago, I lived in a rotten house with twelve rooms in a poor quarter of  Philadelphia.  Degeneration – the streets filled with garbage and fear. Little girls crying, bringing home their drunk fathers, people being kidnapped out of driving cars, rats, three times my house broken into, permanent fear of being mugged. From this ‘paranoid beauty’, as one reviewer put it, ‘Eraserhead’ was born”(http://www.davidlynch.de/duneinttrans.html).
Foi por meio de Eraserhead que o produtor – e mais conhecido como comediante – Mel Brooks o escolheu para dirigir O homem elefante. Este chamou a atenção de Dino de Laurentiis, que estava querendo produzir o épico de ficção científica Duna.
Numa entrevista dada ao Roda Viva, em 2008, quando veio lançar no Brasil o livro Em águas profundas e falar sobre a meditação transcendental, Lynch afirmou, quando perguntado se poderíamos esperar um corte seu para o filme Duna, respondeu que não, pois “não havia naquelas imagens nada que pudesse transformá-las no filme que eu queria fazer”.

É curioso quando Lynch trata disso, pois se sabe – sobretudo em razão dos extras que vemos na edição não assinada por Lynch da superprodução – que ele participou ativamente da confecção de cenários e imagens do filme. Num certo momento, é como se o próprio Lynch acompanhasse a equivocada opinião de Roger Ebert, para quem o filme é feio. Duna é um dos filmes que mais evocam a pintura já realizados, e as imagens dele como se reproduzem na filmografia de Lynch: desde o anel do Duque Leto – que cria um diálogo com o anel de Laura Palmer no filme de Twin Peaks para o cinema –, até a caixa de Bene Gesserit – que cria um diálogo com a caixa de Cidade dos sonhos. A mão do adormecido é também a mão dormente de Laura Palmer, que segura o anel que a ameaça. E, se os personagens dos filmes de Lynch sonham ou parecem estar dentro de um sonho – conscientemente ou não –, o Paul Atreides de Duna muito mais. Na caixa da Bene Gesserit, também está o fogo, que queima a mão de Paul Atreides apenas em sua mente – sendo desafiado. Fogo que se espalha de Veludo azul – no romance entre Sailor e Lula em Coração selvagem, de Jeffrey com Dorothy em Veludo azul – nos cigarros – e em Twin Peaks – também nos cigarros e no próprio subtítulo: “fire walk with me”. E também nos filmes exclusivamente oníricos (Cidade dos sonhos e Império dos sonhos).

Ele quer fazer, como diz em entrevistas, “pinturas em motivos”. Em Lynch, e vale também para Duna, as imagens valem por si e se autoexplicam. Em The alphabet, ele se baseia em pinturas de René Magritte. Se em Veludo azul e Twin Peaks, as imagens evocam as pinturas de Edward Hopper; em O homem elefante e Império dos sonhos, podemos ver Francis Bacon. E a cortina é um elemento-chave, pictórico: para revelar a mulher misteriosa de Eraserhead, ou para revelar as apresentações de Isabela Rossellini, como a cantora Dorothy Vallens, em Veludo azul, de Julee Cruise, em Twin Peaks, e de Rebekha del Rio, em Cidade dos sonhos, por exemplo, no Club Silencio (Lynch, inclusive, projetou um lugar com este nome em Paris, inaugurado em 2011).

Há algumas tomadas de Twin Peaks, sobretudo da parte externa do Double R, quando passam caminhões com toras, que lembram pinturas em movimento de Edward Hopper.

Isso quando não são quase iguais: o posto de Big Ed (personagem de Twin Peaks) dialoga diretamente com a pintura “Gas”, de Hopper:

Além disso, entre 1982 e 1983, fez a história em quadrinhos intitulada O cão mais raivoso do mundo. Numa entrevista ao The Guardian, explica: “I always say Philadelphia, Pennsylvania is my biggest influence. But for painters, I like many, many painters but I love Francis Bacon the most, and Edward Hopper. Both really different, but Edward Hopper makes us all dream, take off from a painting. Magical stuff. And Bacon for a whole bunch of reasons, but those two are big, big, big inspirations”. Perguntado por Ana Maria Bahiana (em entrevista intitulada “David Lynch, diretor, roteirista e escoteiro”, Revista SET, ed. 41, nov. 1990) por que faz filmes, David Lynch respondeu: “Bom, eu queria ser pintor e cheguei aos filmes através das pinturas, porque eu queria que as pinturas se mexessem. E eu ouvia pequenos sons vindos da tela, enquanto pintava, daí resolvi fazer filmes, em vez de pintar”.
Especificamente de René Magritte, difícil não perceber que Lil, que vem explicar, por meio de Gordon Cole, o modo como o agente do FBI Chester Desmond deve se comportar na cidade em que investigará o assassinato de Teresa Banks, no filme de Twin Peaks, é uma pintura em movimento de “Le tombeau des lutteurs”.

E a conversa de Chester Desmond e Sam Stanley com Irene no Hap’s Diner Café remete à pintura “Nighthawks”, de Edward Hopper. Como Hopper, Lynch retrata aquilo que era seu objetivo no início da carreira: falar da vida do interior norte-americano e o que se esconde sob ela.

Na versão para o cinema de Twin Peaks, Laura sonha e entra no quadro dado de presente pelos Tremond. Dentro do quadro, surgem, exatamente, a velhinha Tremond e o neto Tremond, fazendo um passe de mágica. Ela, então, encontra o anão do Red Room e o agente Cooper, que pede para que ela não segure o anel da coruja dado pelo anão (aquele que diz, ao contrário: “Let’s rock”). Ela sente o braço adormecer, como aconteceu com Teresa Banks e, quando acorda, vê Annie Blackburn ao seu lado (Annie é a namorada de Dale Cooper na série, a qual ele tenta resgatar do Black Lodge), assim como o anel. Depois, ela acorda dentro do sonho e vai até a porta; virando-se para trás, vê sua própria imagem à porta dentro do quadro; em seguida, realmente acorda. Perceba-se que na primeira imagem há o cenário do quarto dela por trás, mas, na última imagem desta sequência, aparece a cortina vermelha do Red Room, do seu sonho. Toda essa parte simboliza uma tentativa de Lynch estabelecer uma ligação de Laura com esses personagens estranhos e com o agente que investigará sua morte – mas sobretudo com a pintura e com os sonhos.

Podemos estabelecer entre relação entre a representação existente na pintura e a realidade da pintura “La condition humaine”, de Magritte, em que a janela é ao mesmo tempo uma pintura:

Vejamos um link para a exposição de quadros de David Lynch que aconteceu entre 6 de março e 14 de abril deste ano na Tilton Gallery.
Inevitável ver nessas imagens alguns dos elementos de filmes como O homem elefante, no uso de figuras disformes em preto e branco (nas pinturas 4, 5, 6 e 7), e Twin Peaks, no vermelho, no fogo e no peixe emoldurado (nas pinturas 2 e 9). Este peixe lembra aquele que está emoldurado atrás do casal com quem Chris Isaak e Kiefer Sutherland conversam em Twin Peaks – Fire walk with me. Há também uma colagem, a partir de uma ideia de pop art, e alguns simbolismos e palavras em algumas telas, aproximando-se de versos rápidos.

Veludo azul, filme seguinte a Duna, estabelece os elementos da filmografia sua de modo geral. Segundo Benjamin Albagli Neto (Cinemin, n. 66, nov. 1990): “É nele que Lynch desenvolve suas ideias de amor, enquadramento, montagem, efeitos sonoros, música, interpretação dos atores, criando um estilo e temáticas bem pessoais, em que, se a presença de elementos pictóricos é relevante, também não faltam referências a mestres do cinema: Buñuel (o imaginário surrealista das imagens dentro da orelha), Hitchcock (a utilização da música lancinante que acompanha o ritual sexual de Frank Booth – Dennis Hooper – e Dorothy Vallens – Isabella Rossellini), Kubrick (o bando de Frank, no carro a toda velocidade, é reminiscente da gangue de Laranja mecânica)”.
Nesse sentido, entre os filmes e diretores preferidos de Lynch, por sua vez, estão Crepúsculo dos deuses (Billy Wilder), Persona (Ingmar Bergman), Lolita (Stanley Kubrick), As férias do sr. Hulot (de Jacques Tati), Oito e meio, Na estrada da vida e Os boas-vidas (Federico Fellini). Talvez seja interessante pensar como o John Merrick de O homem elefante tem uma trajetória como a de Gelsomina, em Na estrada da vida. Já Oito e meio e Crepúsculo dos deuses têm relação com os filmes Cidade dos sonhos e Império dos sonhos, pela metalinguagem, apesar de tons diferentes. Vemos o surrealismo de Persona em muitas imagens de Lynch. E o drama de Nabokov adaptado por Stanley Kubrick, que admirava Eraserhead, é, sem dúvida, uma referência para personagens de Twin Peaks.
Os personagens de David Lynch estão também colocados em desafio: precisam descobrir seu eu interior, subjetivo, psicológico e mental, assim como John Merrick, de O homem elefante; como Paul Atreides de Duna; Jeffrey Beaumont, de Veludo azul; Sailor e Lula, de Coração selvagem; Dale Cooper e Laura Palmer, de Twin Peaks; Alvin Straight, de História real; Betty e Rita, de Cidade dos sonhos; e a Nikki de Império dos sonhos. Os personagens não podem ficar como estavam: eles precisam viajar para dentro de si e descobrir no desconhecido uma fonte para sua própria compreensão.

Do mesmo modo, vivem uma dualidade, a começar pelos personagens de Twin Peaks e Veludo azul. Mas a personagem de Patricia Arquette em A estrada perdida certamente remete à dupla Betty e Rita, de Cidade dos sonhos, e aos elementos oníricos de Nikki de Império dos sonhos. Um personagem mudar de rosto também é especialidade de Lynch, como o Leland Palmer, de Twin Peaks, ou o Fred e Renee de A cidade perdida, a Nikki de Império dos sonhos; novamente a dupla de Cidade dos sonhos. E há mesmo imagens semelhantes como nos filmes Duna, Twin Peaks e A estrada perdida, em que os personagens centrais olham para algo que se revela acima delas (no caso de Paul Atreides, a lua que se corresponde com seu futuro; no caso de Laura, a ameaça; e no caso de Fred Madison, a eletricidade que irá definir uma mudança na narrativa):

Os projetos do diretor também surgem como que por imposição de suas escolhas pessoais, ao mesmo tempo que por parcerias. Se O homem elefante parece ter existido porque Mel Brooks havia visto Eraserhead e se Dino De Laurentiis, por sua vez, vira O homem elefante, a fim de chamá-lo para dirigir Duna. Veludo azul estava no contrato feito com De Laurentiis, de Lynch fazer um filme pessoal depois de Duna. Conseguiu realizá-lo podendo fazer o corte final na montagem, o que não foi possível em Duna, quando os produtores decidiram, em uma reunião perto do final das gravações, que o filme deveria ter até no máximo 2 horas (Lynch conseguiu alguns minutos a mais, o que não impediu a sua insatisfação e não escondeu o fato de que o filme precisaria ter pelo menos 3 horas de duração). Depois, fez para a TV Twin Peaks e American chronicles, surgidos da parceria de Lynch com Mark Frost – a primeira série teve uma primeira temporada de grande sucesso, enquanto Coração selvagem e A estrada perdida, de uma parceria com Barry Gifford. Não gostou, inicialmente, da ideia de realizar História real, mas o fez depois de se interessar profundamente pela história – de qualquer modo, com a possibilidade de colocar seu universo nela. Fez Cidade dos sonhos primeiro como piloto para uma nova série de TV, entretanto, quando viu o projeto cancelado, foi atrás dos direitos sobre o filme e convidado pelo Studio Canal, da França, a transformá-lo em filme. Anteriormente, já havia se decepcionado com o desfecho da série Twin Peaks, quando, obrigado pelos produtores, precisou revelar o assassino de Laura Palmer, o que tiraria audiência para os capítulos derradeiros – uma nova intromissão, como em Duna, sem impedimento de Lynch. O filme da série feito para o cinema não resultou num sucesso de bilheteria, mas estreou no Festival de Cannes, em 1992. Um dos integrantes do júri, Pedro Almodóvar, disse, em entrevista a Fabio Liporoni (Revista SET, ed. 62, ago. 1992), que teria dado a Palma de Ouro ou a Twin Peaks – Fire walk with me ou para L’oeil qui ment (de Raul Ruiz):  “O filme é fantástico. David Lynch é um diretor excepcional. E, ao contrário do que muitos disseram, totalmente independente da série de televisão”.

No início dos anos 1980, foi convidado por George Lucas para fazer O retorno de Jedi, porém não aceitou, pois não poderia acrescentar seu universo pessoal. Em todos os seus filmes, além disso, Lynch estabelece parcerias com determinados nomes que se repetem, de filme para filme, mesmo de atores que mais trabalham com ele do que com outros, como Grace Zabriskie (a mãe de Laura Palmer, também presente em Coração selvagem e Império dos sonhos), Laura Dern (presente em Veludo azul, Coração selvagem e Império dos sonhos), Harry Dean Stanton (Coração selvagem, Twin Peaks, História real, Império dos sonhos), Jack Nance (Eraserhead, Duna, Veludo azul, Coração selvagem, Twin Peaks, A estrada perdida), Sheryl Lee e Sherilyn Fenn (Coração selvagem e Twin Peaks) e Justin Theroux (Cidade dos sonhos e Império dos sonhos), além de Kyle MacLachlan, que aparece em Duna, Veludo azul e Twin Peaks, e depois desaparece da filmografia de Lynch (talvez por ter relutado em participar da versão para o cinema de Twin Peaks).

Se alguns críticos reconhecidos não apreciam a maior parte dos trabalhos de Lynch – como Roger Ebert, que criticou O homem elefante, Duna, Veludo azul e Coração selvagem, elogiando apenas História real e Cidade dos sonhos –, outros, desde seu início, como Pauline Kael, reconheciam seu talento. Sobre Eraserhead, escreve: “Parece ter reinventado o movimento do cinema experimental; vendo este filme de ousada irracionalidade, com seu interesse pela lógica dos sonhos, quase sentimos estar vendo um gótico vanguardista europeu da década de 20 ou do início de 30. Há imagens que lembram M de Fritz Lang, Sangue de um poeta de Cocteau e Um cão andaluz de Buñuel e, no entanto, vemos uma sensibilidade de todo nova em ação”. Sobre O homem elefante: “Cena por cena, não sabemos o que esperar; vemos uma coisa nova – material subconsciente mexendo-se dentro do formato de uma narrativa convencional”. E sobre Veludo azul: “A carregada atmosfera erótica faz da obra algo assim como um transe, mas também o humor de Lynch sempre irrompe. […] o uso de material irracional funciona como deve; em algum nível não de todo consciente, lemos suas imagens”. Seria redundante dizer o quanto Pauline Kael sintetizou em poucas palavras o universo de Lynch, sobretudo quando trata do material do subconsciente, a imprevisibilidade e uma sensibilidade nova em ação – mesmo às vezes dentro de uma narrativa mais convencional, como a de O homem elefante.
Lynch recebeu três indicações ao Oscar de melhor diretor, por O homem elefante, Veludo azul e Cidade dos sonhos, além de ter recebido a Palma de Ouro de melhor filme por Coração selvagem e de melhor diretor por Cidade dos sonhos. Por sua vez, O homem elefante concorreu ao Globo de Ouro de melhor filme dramático, de diretor, ator e roteiro; Cidade dos sonhos concorreu ao Globo de Ouro também de melhor filme dramático, diretor e de roteiro, e Veludo azul, de melhor diretor.

A partir de hoje, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por David Lynch.

* Não foi possível abarcar todas as facetas de Lynch, aqui, digamos algumas mais pop: como a de idealizador do Club Silencio, em Paris, o mesmo nome do clube de Cidade dos sonhos, ou a de músico em Crazy Clown Time – levando adiante as experiências sonoras da trilha para o cinema de Twin Peaks, da qual participou diretamente com Angelo Badalamenti –, ou a de diretor de filmagem de shows de Duran Duran. Mas é bom dizer que, em se tratando de parte do design do Club Silencio, não iríamos muito longe – e talvez Lynch discordasse – da sala do trono do Imperador Shaddam IV, de Duna:

Referências bibliográficas

BEYLIE, Claude. As obras-primas do cinema. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FILHO, Rubens Ewald. Dicionário de cineastas. São Paulo: Companhia Nacional, 2002.
KAEL, Pauline. 1001 noites no cinema. Seleção de Sérgio Augusto. Tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MÜLLER, Jürgen (Ed.). Lo mejor del cine de los 70. Barcelona: Taschen, 2003.
_______. Los mejor del cine de los 80. Barcelona: Taschen, 2005.
_______. Los mejor del cine de los 90. Barcelona: Taschen, 2005.

Site de David Lynch

www.davidlynch.com/

Indicações de textos em sites

LynchNet
35 years of David Lynch

Na estrada (2012)

Por André Dick

O novo filme de Walter Salles parece sintetizar toda sua trajetória como cineasta, ao mesmo tempo em que aponta novos rumos. Baseando-se na célebre obra de Jack Kerouac, o diretor brasileiro – o que é ainda mais interessante, pois tentou-se levar o projeto adiante anteriormente com outros cineastas dos Estados Unidos, a exemplo de Gus Van Sant, sem nunca ter dado certo – mostra um período importante da cultura – sobretudo literatura – norte-americana. Kerouac é, até hoje, uma espécie de escritor (romancista e poeta) que ajudou a trazer novos autores à cena, e sua trajetória ajuda a contar um pouco da história da América.
Em “Notas sobre a geração beat” (Re-habitar, Azougue Editorial, 2005), o excelente poeta Gary Snyder escreve sobre o autor: “Quando seu romance On the road foi publicado em 1957, a palavra beat se tornou famosa da noite pro dia, e a América se deu conta de que tinha nas mãos uma geração de escritores e intelectuais que estavam rompendo com todas as regras. Esta nova geração era educada, mas se recusava a seguir carreiras acadêmicas ou negócios ou o governo. Ela publicava seus poemas em suas próprias pequenas revistas, e nem mesmo se preocupava em submeter obras aos grandes jornais pseudointelectuais estabelecidos, que por tanto tempo retinham o monopólio sobre a escrita de vanguarda”.
Para Snyder, as pessoas que leram a obra de Kerouac ficaram “ou assustadas ou encantadas”. Muitos dos que gostaram se mudaram para São Francisco, mas, segundo Snyder, os intelectuais de esquerda e os editores de jornais falaram que os beats eram irresponsáveis, apontando o jazz como decadente (“ao passo que ele é”, atesta Snyder, “uma das coisas mais criativas e profundas da América”), além de escrevem sobre “a imoralidade sexual e a delinquência e o uso de drogas pelos escritores jovens de São Francisco e de Nova York”.
Poetas como Snyder e Allen Ginsberg, autor do notável Uivo, e de muitos livros que influenciaram a tradição poética norte-americana, além de Michael McClure, Gregory Corso e Lawrence Ferlinghetti (autor de Um parque de diversões da cabeça, traduzido no Brasil tanto por Eduardo Bueno quanto por Paulo Leminski), reafirmam a importância da literatura beat, pois investem numa recriação da linguagem sem desperdiçar o que foi feito antes.
Portanto, diante de todo esse quadro, não era fácil a empreitada de Walter Salles. Livros como Duna e a trilogia de O senhor dos anéis foram adaptados, com muita expectativa gerada por fãs,  com recepção boa ou não por parte de público e críticas. Mas nenhum deles representa tanto para a cultura norte-americana quanto Na estrada – e talvez ele represente, para a literatura sobre jovens, a imagem que James Dean tem para o cinema. Pode-se dizer que Salles, com o apoio e a escolha do produtor Francis Ford Coppola (que detinha os direitos sobre o livro há décadas e tem interesse especial pelo cenário da juventude, a julgar por Vidas sem rumo e Peggy Sue), sai-se muito bem e, mesmo não tendo nascido dentro dessa cultura, tem um olhar universal. O primeiro elemento em que Walter se sai bem é não considerar esses personagens como gênios românticos. Mostrando a trajetória de Sal Paradise (Sam Riley) e Dean Moriarty (Garrett Hedlund), que são pseudônimos para Jack Kerouac e Neal Cassidy, da vida real, eles não  mostram nenhum elemento espetacular em sua trajetória. Pode-se ter a impressão de que esses personagens deveriam ser incríveis, pois antecipavam um movimento de grandes proporções culturais. Mas, na realidade, nenhum deles imaginava fazer parte do início de um movimento, ou seja, até certa medida, não havia nenhum tipo de ilusão de um sucesso posterior – caso contrário, essa experiência seria mecânica, não verdadeira. Deste modo, Walter Salles respeita esses personagens como respeitava Josué e a escrevedora de cartas Dora, de Central do Brasil. Para ele, não é porque esses personagens de Na estrada tinham aspirações culturais que eram melhores ou mais interessantes do que os de Central do Brasil.

Sal, que acabou de perder o pai e se encontra melancólico e sem inspiração para escrever – a escrita, no filme, representa uma etapa difícil, de crescimento, e sempre é preciso recolher os pedaços de texto espalhados ao longo da estrada –, conhece Moriarty, ex-presidiário, por meio do poeta Carlo Marx (pseudônimo de Allen Ginsberg, interpretado por Tom Sturridge), que ainda espera escrever um grande poema. Moriarty está em Nova York, recém-casado com Marylou (Kristen Stewart) e logo os dois se transformam em amigos: gostam ambos de jazz, e Moriarty quer aprender a escrever como Paradise, além de, afora suas aventuras sexuais, ter a expectativa de reencontrar o pai. Não por acaso, esses jovens pensam continuamente naqueles que chamam de “velhos”.
Carlo – apaixonado por Moriarty – sai em viagem com o casal e, quando Sal – querendo desbravar o Oeste – os reencontra, Moriarty já está com outra mulher, Camille (Kirsten Dunst). É o início de uma série de idas e vindas e reencontros, entre São Francisco, Nova York e outras cidades menores. Talvez a melhor parada seja na casa de Old Bull Lee (pseudônimo de William S. Burroughs, interpretado por Viggo Mortensen) e de sua mulher (Amy Adams). Mas o foco é sempre em Sal Paradise e suas mudanças de rumo ao longo da trajetória, precisando trabalhar em lugares diferentes – inclusive colhendo algodão, com uma jovem mexicana, Terry (interpretada por Alice Braga) com quem se envolve. E há as experiências sexuais, sobretudo a partir de Moriarty (e Walter Salles consegue, ao mesmo tempo, apresentar cenas mais fortes, até mesmo fora do padrão que vemos atualmente no cinema, sem em momento algum vulgarizar as imagens; a cena em que Moriarty está com outro personagem, feito por Steve Buscemi, é um trunfo de direção).
Como o poeta Snyder assinala, os “participantes [da geração Beat] viajavam livremente, vadiando de Nova York até a Cidade do México e até São Francisco – o grande triângulo – e viajavam ligeiro. Eles ficavam com amigos em North Beach, São Francisco, ou no East Side, em Nova York (a Greenwich Village dos beats, realmente uma favela) – e ganhavam seu dinheiro com quase qualquer tipo de trabalho. Carpintaria, trabalhos na via férrea, cortando madeira, serviços em fazendas, lavando pratos, controle de cargas – qualquer coisa servia”.
Nesse ponto, de ser fiel a todo um contexto (fazendo referências à economia americana do presidente Truman e ao comunismo, como no momento em que Sal para em frente a uma vitrine com televisões), Walter Salles acaba comprometendo em certa parte a narrativa, repetindo alguns cenários e algumas situações (sem desenvolver personagens, como o da mãe de Sal), o que não afeta a qualidade final de Na estrada.
Isso porque as viagens retratam, além da perda inicial, a perda da juventude, que se dá por meio da urgência e da constante insatisfação. É notório que Salles quer mostrar esse registro do que deve ser mantido pelo romantismo das ações, pelo ímpeto de mudança, em alternância com o que escapa da vida desses personagens. O que eles deixam para trás não será recuperado, e se isso já foi desenvolvido de forma interessante pelo cineasta em sua filmografia, ganha aqui uma amplitude ainda maior. Pois parece que esses personagens não estão na estrada para modificar especificamente suas vidas – tampouco, reitera-se, para constituir um movimento –, mas para entenderem que, em sua tentativa de esquecimento, do que deixam, a princípio, para trás, existe aquilo que mais permanece e os acompanha. Como a própria figura mítica do Oeste, que Sal Paradise, no início, quer conquistar – mas mítica não porque represente uma conquista de terras, por meio da violência, de combate a imigrantes e índios, e sim porque envolve o desenvolvimento da maturidade do personagem.
Ao longo do filme, Sal não se vê como grande escritor e, em determinado momento, quando Moriarty o visita, pedindo para que ele o ensine a escrever, acaba datilografando em sua máquina: “O caubói acha que sou gênio”. Não há – e ele sabe disso – genialidade: há, como mostra sua escrivaninha, muito mais leituras de Proust (de No caminho de Swann, o primeiro volume de Em busca do tempo perdido), de Joyce e de Rimbaud. Pois, para Walter Salles, que capta esse movimento beat de maneira exemplar, a criação conjuga experiência e leitura – e quem a coloca em prática não está afastado da estrada. Esses são personagens autocentrados, pouco complacentes e emotivos apenas por alguma circunstância que desconhecem. No entanto, provam que não há nenhuma espécie de literatura que não nasça da experiência.

Um exemplo é o de Carlo Marx/Allen Ginsberg, que deseja fazer a trajetória de Rimbaud pela África, enquanto o amigo Sal tem consciência de que a aventura de sua geração está em descobrir seu próprio país, querendo, na verdade, entender a perda de seu pai. No início, com o intuito de ter epifanias joycianas e paixões amorosas, Carlo ainda não sabe que esta estrada está de passagem. E, quando Sal vai para o México com Moriarty, talvez nos perguntemos se ele vai atrás de novas experiências ou se quer, inonscientemente, encontrar o resquício de Terry, a qual abandona. De qualquer modo, se para os personagens, parar é se estabelecer, apenas no caso de Moriarty ela significa o desespero de saber que a juventude está passando e que o compromisso se estabelecerá. Não é possível, como Moriarty observa desde o encontro com Walter, um saxofonista (Terrence Howard), no início, parar o tempo, mesmo com a música – o próprio ciclo das estações na estrada denuncia isso. Pois a Geração Beat, mais do que sua ligação com as drogas, a música e a liberdade sexual (“sexo, drogas e jazz”), esclarece o que realmente está por trás de uma pretensa irresponsabilidade, filtrada pelo tempo, pela dança – de Moriarty com Marylou e com Sal, no México – e a fúria do jazz, captada de modo poético e realista, em ambientes noturnos. Na ida para a Cidade do México, em 1950, Kerouac lia bastante Os cantos, poema épico de Ezra Pound, e fez um longo poema, intitulado “Mexico City Blues”. Em sua contracapa, quando o publicou, escreveu: “Quero ser considerado um poeta de jazz soprando um longo blues numa jam session de domingo. Faço 242 refrões; minhas ideias variam e às vezes passam de refrão em refrão ou da metade de um refrão para a metade do seguinte”. No primeiro deles, diz: “Cume Mágico da Ignorância / Cume Mágico / É o mesmo que não-Cume / Tudo uma luz / Velhas estradas esburacadas / Uma Estrada de Ferro / Linha Principal” (A nova visão: de Blake aos beats, Azougue Editorial, 2005).
Com uma direção de arte exemplar, reproduzindo fielmente o período em que se passa a história, figurinos notáveis e uma trilha sonora de impacto, assinada por Gustavo Santaolalla (também de Diários e de 21 gramas), Na estrada tem um estilo que, por vezes, lembra o de Na natureza selvagem, de Sean Penn, emulando, ao mesmo tempo, imagens captadas por Edward Hopper (em plantações à beira de estradas desertas; em trilhos de trem; em casas perdidas no campo; em postos de gasolina quase abandonados). Não é por acaso: o fotógrafo é o mesmo Eric Gautier (que trabalhou com Walter em Diários de motocicleta). Foi no filme de Penn que Walter viu Kristen Stewart e a convidou para o fime, e talvez seja com aquele  que Na estrada tente se parecer em determinados momentos, sobretudo em seu tom crescente de melancolia (também existente no livro). Havia, em Na natureza selvagem, um sentimento de Jack Kerouac e de Henry David Thoreau, mas ainda mais radical – o combate era contra a estrutura da sociedade, entretanto num ponto em que ela já não é mais aceitável sob nenhum aspecto, o que não acontece em Na estrada, que é um encontro com a própria cultura que desperta ao redor. Ainda assim, Gautier apresenta uma textura de imagens ainda mais impressionante do que em Na natureza selvagem e Diários de motocicleta: as estradas e paisagens do interior norte-americano nunca foram tão bem fotografadas – registrando, inclusive, a mudança das estações – do que aqui (talvez David Lynch tenha chegado próximo em História real).
E o elenco escolhido por Walter Salles, mesmo aquele que aparece em pontas, é de grande qualidade, a começar por Garrett Hedlund (que atuou de forma inexpressiva em Tron – O legado, ou seja, aqui parece outro ator), num desempenho sensível e extraordinário – sobretudo pela mudança de tom em diversas cenas, passando da alegria e do descompromisso à gravidade e preocupação, e pela cena final –, mas Sam Riley (como Sal Paradise) não faz por menos, sobretudo com seu olhar de complacência. Kristen Stewart se arrisca num papel difícil, sobretudo pelas cenas de sexo, das quais mesmo atrizes experientes fogem, mostrando que é uma atriz com condições de crescer (seus desempenhos em O quarto do pânico, Na natureza selvagem e The runaways já mostravam isso) – o momento em que ela reflete sobre as viagens olhando para um cantor country é memorável. Tom Sturridge, como Carlo Marx, é preciso, mesmo que com pouca participação, e Kirsten Dunst, cada vez melhor atriz (acentuando o tom dramático já visto em Maria Antonieta e Melancolia). Viggo Mortensen parece um tanto exagerado, forçando o sotaque interiorano, no papel de Old Bull Lee, numa participação inferior à de Amy Adams – porém, não chega a destoar e tem uma última participação em cena antológica.
Diante do que vemos, vale a pena lembrar o que diz o poeta Gary Snyder sobre a geração beat: ela seria “particularmente interessante porque não é um movimento intelectual, mas um movimento criativo: pessoas que cortam seus laços com a sociedade respeitável para viver um modo independente de vida, escrevendo poemas e pintando quadros, cometendo erros e se arriscando – mas não encontrando nenhum motivo para apatia ou desânimo”. De certo modo, como em toda transgressão, os autores beats viajavam (em todos os sentidos) porque também fugiam – o que Walter Salles sutilmente apresenta ao longo de todo Na estrada – e acabaram sendo inseridos também no universo que combatiam, por exemplo, o universitário, sendo, em certa medida, institucionalizados – como o foi Rimbaud, poeta recorrente no filme, em menções ou fotografias, que terminou a vida traficando armas e escravos na África e com a perna gangrenada. Mas eles são inseridos já com o significado de que algo entre as idas e vindas se modificou e de que o corte completo com a sociedade não é necessário quando por trás de um gesto existe um senso de mudança. Não é preciso concordar com suas atitudes para perceber que em qualquer fuga ou reencontro existe toda uma transformação. Mesmo que seja imperceptível para a maioria, é ela que realmente move.

On the road, EUA/BRA/FRA, 2012 Diretor: Walter Salles Elenco: Garrett Hedlund, Kristen Stewart, Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams, Steve Buscemi, Elisabeth Moss, Terrence Howard, Alice Braga, Tom Sturridge Produção: Charles Gillibert, Nathanaël Karmitz, Jerry Leider, Rebecca Yeldham, Walter Salles Roteiro: Jose Rivera Fotografia: Eric Gautier Trilha Sonora: Gustavo Santaolalla Duração: 137 min. Estúdio: American Zoetrope / Film4 / MK2 Productions / Video Filmes

Cotação 4 estrelas e meia

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