Fargo (1996)

Por André Dick

Os Oscars de melhor atriz (Frances McDormand) e roteiro original, além do prêmio de melhor direção em Cannes, fizeram de Fargo o filme mais bem-sucedido dos Coen antes de Onde os fracos não têm vez. Donos de um estilo próprio no cinema independente americano, Joel, que até então (quando não se podia assinar em parceria) assinava a direção, e seu irmão Ethan, com quem escreve o roteiro e produz, formam, desde Gosto de sangue, uma referência, e, depois de duas obras particularmente estranhas – o instigante Ajuste final e Barton Fink –, eles tratam, aqui, dentro do mesmo limite a que se propõem, de um faroeste contemporâneo.
Este faroeste (daqui em diante spoilers), em que não se sabe ao certo quem são os heróis e quem são os vilões, mas sempre com um personagem que traz uma espécie de indicação moral, um vendedor de carros, Jerry Lundegaard (William H. Macy), contrata dois bandidos, Carl Showalter (Steve Buscemi), e Grimsrud (Peter Stormare), apresentados por seu mecânico Shep Proudfoot (Steve Reevis), para cometer um crime: o sequestro de sua própria esposa, Jean (Kristin Rudrüd). O encontro é num bar de Fargo, Dakota do Norte, e pretende pagar suas dívidas com o dinheiro do resgate, pedido ao sogro, Wade Gustafson (Presnell), o qual promete repartir com os sequestradores.

Estamos perto de uma situação surreal dentro do cotidiano, parecida com aquelas que movimentam Arizona nunca mais e Barton Fink, dois dos melhores filmes dos Coen. Há não apenas uma falta de equilíbrio para os personagens, como ela acaba tendo acesso a todos os meandros da narrativa. Contudo, é interessante que enquanto nesses dois filmes, assim como em outros dos Coen, a exemplo de E aí, meu irmão, cadê você?, o clima aqui não é quente: os personagens estão num cenário glacial e com aparência longínqua, afastada de toda a civilização. Eles não chegam a se comportar, sob esse ponto de vista, de maneira comum, e sim parecem estar sempre sob uma pressão externa, que faz o ambiente esquentar consideravelmente. Esta situação se desenha pela necessidade de cada personagem de extravasar sua própria loucura – e enquanto os bandidos parecem, a princípio, ágeis, com o passar do tempo, eles lembram mais a dupla de assaltantes atrapalhada de Arizona nunca mais;. Sim, os Coen não conseguem fugir a uma espécie de tragédia cômica em seus melhores momentos, que os transformaram em referências. Obras como Onde os fracos não têm vez e Bravura indômita também iriam adquirir este espaço em que o heroísmo costuma ser visto como uma extensão da humanidade.

Depois de iniciarem a trajetória para Minneapolis, os marginais, sem ligarem para o fato de que Jerry muda de ideia no último minuto a respeito do sequestro, ou seja, sem antecedência o suficiente para matá-lo, matam um policial em Minessota, quando são parados na ida para o cativeiro.
A delegada Marge Gunderson (Frances McDormand, ótima, num papel incomum) chega à cena do crime, fotografada com uma tristeza desoladora por Roger Deakins (habitual colaborador dos Coen, quase parte de sua identidade visual) e começa a investigar o caso, indo parar na concessionária onde Jerry trabalha. Casada com um pintor de selos, Norm (John Carroll Lynch), a delegada esbanja bondade: almoça com velhos amigos, aguarda o marido preparar o café antes de ir trabalhar, não liga para a incompetência de seus policiais, tudo a fim de garantir uma gestão tranquila para seu bebê. Marge é a única personagem no filme que tem um posicionamento de alegria e mesmo esperança diante do mundo, mas ela apenas aparenta ser ingênua. Quando soa o sotaque caipira, e quando se parece debochar dela, nesse instante ele consegue observar todos os detalhes e seguir as pistas mais elaboradas.

É ela o símbolo desse cinema dos Coen, em que o personagem menos talhado para as definições se torna a referência para que o mundo se transforme, nem que seja circunscrito a um pedaço que parece insignificante da América. Todas as situações provocadas pelo erro do sequestro acabam retornando como peças desastradas de um panorama mais amplo desta sociedade, em que há, por um lado, uma certa falta de vigor explícita no que toca a humanidade e uma extrema aridez quando se precisa chegar a temas mais delicados. O mundo do crime se contrapõe decisivamente àquele café da manhã de Maggie com o marido e a tranquilidade da gravidez. Maggie parece suportar a investigação porque, assim como as camadas de roupa, ela guarda sempre uma camada de recolhimento, que nunca sai dos limites de sua casa e das pinturas do marido. Por isso, de certo modo, ela acaba sendo o esteio da obra.
As outras figuras são dominadas pela paranoia do dinheiro: o marido traidor, seu sogro que quer ser valente, os bandidos covardes (um deles sanguinário). Os irmãos Coen dão um tratamento a cada personagem, ressaltando suas características emocionais, mesmo que sejam mostradas com violência. Algumas cenas podem assustar pelo banho de sangue, característica dos Coen, no entanto a trama é conduzida de maneira tão competente que é difícil não se render ao brilhantismo do filme.

Fargo, EUA, 1996 Diretor: Joel Coen Elenco: William H. Macy, Steve Buscemi, Frances McDormand, Peter Stormare, Kristin Rudrüd, Harve Presnell, John Carroll Lynch, Steve Reevis Roteiro: Ethan Coen Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: Carter Burwell Produção: John Cameron Duração: 98 min. Estúdio: Company PolyGram Filmed Entertainment, Working Title Films Distribuidora: Gramercy Pictures

John Wick – Um novo dia para matar (2017)

Por André Dick

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Em 2014, foi lançado o personagem de John Wick em De volta ao jogo, com Keanu Reeves, que se caracterizava pelo visual potencialmente distinto e com violência extrema. A crítica e o público o elegeram como um destaque, fazendo com que houvesse logo essa continuação. John Wick – Um novo dia para matar já começa apenas quatro dias depois dos acontecimentos do original, com o personagem indo atrás de seu Mustang 1969 totalmente escuro, que se encontra com Abram Tarasov (Peter Stormare), irmão dos principais antagonistas da primeira história.
Achando que voltou à tranquilidade, com um novo cão e a ajuda de Aurelio (John Leguizamo), para arrumar seu carro, John recebe a visita do italiano Santino D’Antonio (Riccardo Scamarcio), que lhe apresenta um medalhão que obrigaria John a lhe prestar serviços. No entanto, é o que ele menos quer: seu desejo é ficar recolhido em sua casa, recordando da esposa. O roteiro de Derek Kolstad tem a qualidade de apresentar os personagens com agilidade e, mesmo que não saibamos muito sobre eles, as principais características estão desenhadas e se pode focá-las com evidência.

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Winston (Ian McShane), que é o dono do hotel Continental em Nova York, onde o primeiro filme tinha cenas substanciais, lembra a Wick que ele não pode rejeitar o medalhão, pois senão estará colocando em risco sua figura no submundo. D’Antonio quer que Wick mate sua irmã Gianna (Claudia Gerini), em Roma, para que possa ingressar numa espécie de alto conselho da criminalidade. Ares (Ruby Rose) é uma guarda-costas de D’Antonio que segue o assassino profissional, e Cassian (Common) também segue em seu encalço, sem a princípio o espectador entender o motivo. Gianna é uma das personagens mais marcantes num filme de ação, apesar da breve presença, porque parece retratar todo o mistério desse submundo que persegue o personagem central, do qual ele não consegue se desvencilhar em nenhum momento, precisando estar sempre preparado para o combate. Gerini contribui com uma cena verdadeiramente impactante.
Desta vez, o diretor Chad Stahelski mostra um personagem envolvente e cenas de ação que parecem saídas de um filme de arthouse de ação. Se eu imaginasse um Wong Kar-Wai ou um Nicolas Winding Refn fazendo uma obra urbana com uma sequência impressionante de mortes seria esta (e Refn de certo modo já fez uma de forma mais simbólica, Apenas Deus perdoa, em que Stahelski busca claramente inspiração, principalmente no uso de cenários com neons). E, mais do que trazer uma influência de Johnnie To – uma referência para filmes de máfia oriental e que se liga a um certo exagero cênico –, John Wick – Um novo dia para matar parece envolver mais bom humor embutido na tragédia.

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Desde o início, quando o personagem sai com seu carro capenga do confronto com os inimigos, isso fica bastante claro, mas se acentua ainda mais na ida para Roma, onde vira uma espécie de perseguido pelas ruas. Há algo de engraçado e trágico, ao mesmo tempo, na figura do personagem central, e Keanu Reeves consegue desenvolvê-lo com rara perspicácia. As cenas são coreografadas de maneira espetacular e talvez aqui estejam algumas das melhores cenas de embate filmadas neste século.
O primeiro filme ficou conhecido como aquele em que um homem se vingava daqueles que mataram seu cão, e aqui John Wick parece estar mais associado a uma espécie de linhagem da qual não consegue se livrar e, ao contrário do original, cada cena segue outra com grande naturalidade.
E, naturalmente, surge uma aproximação com James Bond num encontro num museu de Wick com D’Agostino, que remete a uma conversa entre o agente inglês e Q (Ben Widshaw) em 007 – Operação Skyfall. Com isso, há uma tentativa de tornar o personagem praticamente invencível, uma espécie de Matrix.

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Não são poucas vezes que se lembra da trilogia das hoje irmãs Wachowski, não apenas porque Reeves está à frente em cada cena, e sim porque o jogo que se desenha por trás de sua presença perturbadora é bastante focada numa mitologia, embora aqui, claro, mais real, em locações de Roma. Também há uma longa sequência numa estação de trem que recorda tanto elementos de Brian De Palma em O pagamento final e Um tiro na noite, como, exatamente, Neo em Matrix reloaded e Matrix revolutions, quando ficava preso entre mundos diferentes.
Nisso, há uma espécie de lembrança da saga O poderoso chefão, com seu punhado de personagens envolvidos em tragédias passadas em escadarias. É natural, ao longo da narrativa, o jogo de espelhos do filme, pelo visual extraordinário, com um jogo de luzes primoroso, concedido por Dan Laustsen (que trabalhou para Del Toro no fantástico A colina escarlate), e pela maneira que o próprio personagem se vê, sempre preso dentro de si mesmo, do seu próprio labirinto. Reeves, ator que se sente muito bem nesses papéis, faz de maneira exata seu John Wick. Seu semblante entre a passividade e a fúria joga com o duplo que seu personagem desempenha: em nenhum momento o espectador se pergunta por que ele age dessa maneira; ele apenas se pergunta por que querem tanto que ele aja assim. Isso é um dos mistérios de John Wick e, pelo que se percebe, com sua recepção, dessa franquia.

John Wick – Chapter 2, EUA, 2017 Diretor: Chad Stahelski Elenco: Keanu Reeves, Common, Laurence Fishburne, Riccardo Scamarcio, Ruby Rose, John Leguizamo, Ian McShane, Bridget Moynahan, Lance Reddick, Thomas Sadoski, David Patrick Kelly, Peter Stormare Roteiro: Derek Kolstad Fotografia: Dan Laustsen Trilha Sonora: Joel J. Richard, Tyler Bates Produção: Basil Iwanyk Duração: 110 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Lionsgate Films / PalmStar Media / Thunder Road Pictures

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