Duna (2021)

Por André Dick

O diretor Denis Villeneuve encerrou a década passada como um dos grandes nomes da Ficção Científica por causa de dois filmes: A chegada e Blade Runner 2049. Embora tenha construído sua trajetória com filmes variando temas, da tragédia escolar de Polytechnique, passando pelo policial em Os suspeitos e Sicario – Terra de ninguém, ou pela psicologia em O homem duplicado, ele conseguiu mesclar seu estilo à fantasia e ao futurismo. Na virada de década, não por acaso seu nome se associa novamente a um universo fantástico, desta vez baseado no fascinante romance de Frank Herbert.
Depois da versão de 1984 de David Lynch, houve algumas tentativas para levar novamente os personagens de Herbert à grande tela, mas sem efetivo sucesso. Desta vez, no entanto, com o apoio da Warner, Villeneuve foi chamado para movimentar um projeto que é arriscado em todos os pontos.
Superprodução de 165 milhões de dólares, o novo Duna obviamente tem a tarefa de tentar abrir uma nova franquia, sendo lançado em streaming e nos cinemas (no Brasil, deve chegar à HBO Max no fim de novembro).

Cheguei ao romance por meio do filme de David Lynch e é comum se dizer que este não conseguiu explicar direito o romance de Herbert por meio de seu roteiro. Trata-se de uma injustiça, que é confirmada pela tentativa de Villeneuve  facilitar para o grande público, nunca tentando inserir muito os nomes mais herméticos do universo do livro.
A história se passa em 10.191 e começa mostrando Paul Atreides (Timothée Chalamet), no planeta Caladan, tomado de mares, que se prepara para ir com sua família para o planeta desértico de Arrakis, do qual os Harkonnen, inimigos de sua família, foram expulsos pelo Imperador Shaddam IV, aqui invisível. Paul vem tendo sonhos com os fremen, habitantes de Arrakis, principalmente com uma moça, Chani (Zendaya). O pai de Paul, Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), possui um anel de poder cobiçado, e Lady Jessica (Rebecca Ferguson), sua mulher, é da linhagem de sacerdotistas Bene Gesserit, que tenta impedir a chegada de um messias a Arrakis, querendo sempre resguardar uma magia estranha. Gaius Helen Mohiam (Charlote Rampling), que serve ao Imperador, lembra que Jessica não podia ter gerado um filho, pois ele pode ser o Kwisatz Haderach, aquele que pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ao lado de Paul, estão Gurney Halleck (Josh Brolin), Wellington Yueh (Chang Chen) e Thufir Hawat (Stephen Henderson).

O vilão é o Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgård), que tem Rabban (Dave Bautista) a seu lado e outros ajudantes estranhos, como Piter de Vries (David Dastmalchian), todos interessados na especiaria existente em Arrakis, que ajuda na locomoção das naves no espaço e pode representar o domínio do universo.
Comenta-se que o filme de Lynch nos anos 80 era confuso por já começar explicando o que aconteceria dali em diante, o que trouxe ao filme uma aura de inadaptável (o que já acontecera com a versão sonhada de Alejandro Jodorowsky). Cria-se o movimento de que entende mais o filme quem leu o livro, o que não confere nas versões para o cinema – ambos até didáticos. O curioso é que o Duna original é mais interessante, mesmo com sua exposição. A nova versão, desde o início, faz uma exposição, mas mais por meio de imagens, procurando se desvencilhar do texto de Herbert, como já referido, em termos de nomes – como na entrega que faz desde o início dos fremen, sem desenvolver nenhum tipo de mistério. É evidente que Villeneuve viu o filme de Lynch várias vezes e extraiu boa parte da visão que Lynch trouxe desses personagens, fazendo até uma referência inicial aos “sonhos”. Nesse sentido, é um pouco decepcionante que um dos roteiristas seja Eric Roth, que fez um trabalho tão apurado no desenvolvimento de personagens em Forrest Gump e O curioso caso de Benjamin Button. Ainda assim, a maneira como consegue sintetizar uma trama complexa tem seus méritos, antes de tudo porque Villeneuve sempre consegue traduzir palavras por meio de imagens de maneira muito conveniente e particular nos seus tons. Apenas se lamenta que ele conte até a metade do primeiro romance deste universo de Herbert, quando poderia ter contado mais (ou talvez por cause de decisões que fugiram a seu controle). Com isso, ele aplica seu estilo lento e minucioso em muitas passagens, o que, como em suas outras obras, tem eficácia surpreendente.

Villeneuve tem a necessidade, em sua versão, o que funciona porque dá uma noção de continuidade de sua obra, num escopo mais abrangente, de imprimir imagens que remetam a Blade Runner 2049, principalmente, com o uso de maquetes, quando os Atreides estão chegando a Arrakis, lembrando também a entrada dos policiais no México em Sicario. Ao mesmo tempo, quando surge uma nave gigantesca saindo do fundo do oceano de Caladan, remete imediatamente ao seu filme A chegada, assim como aquela nave que aterrissa antes do aviso aos Atreides de que eles irão para Arrakis. E, em determinado momento, surge uma aranha que remete a O homem duplicado.
Como o filme de Lynch, o de Villeneuve quase não há ação ou humor – costuma-se comparar O senhor dos anéis com Duna, porém são, afora o universo mitológico, muito distintos, cada um possuindo qualidades específicas –, embora tragam diálogos sobre intrigas de poder e política. O livro tem até um viés ecológico e religioso, que é evitado por Lynch e agora por Villeneuve.
Já  alguns personagens têm suas características acentuadas, como o do próprio Barão, que no livro não parece ter toda a perversidade imaginada por Lynch e Villeneuve. No Duna atual, o ator Stellan Skarsgård tem uma grande atuação, mas quase sem nenhum roteiro à mão para trabalhar. E Villeneuve utiliza bem Jason Momoa como Duncan Idaho, personagem que pouco aparecia no filme de Lynch. Ele serve como uma ponte de Paul Atreides com o universo adulto e seu bom humor funciona como um elemento humano numa história mais densa. Ao lado dele, também é um destaque Sharon Duncan-Brewster como a Dra. Liet-Kynes, com uma presença vibrante.

É interessante, aliás, como Villeneuve faz uma ficção científica por meio quase apenas de imagens, remetendo, no início, a Tarkovsky, de Solaris, sendo sob certo aspecto até experimental. No entanto, sua maior influência é, sem dúvida, o estilo adotado por Zack Snyder desde Batman vs Superman, e incrivelmente os Atreides têm muitos elementos dos Wayne de Snyder, com um certo tom soturno familiar. A caminhada que Paul e Duque Leto fazem numa colina à beira-mar lembra muito o Wayne de Affleck caminhando ao redor da mansão. Também a estética das naves remete ao que Snyder apresenta principalmente em sua versão finalizada de Liga da Justiça. Em termos de design de produção e figurinos, o filme não tem a inventividade do filme de Lynch, lembrando um pouco, em termos de iluminação, os filmes mais soturnos da saga Harry Potter, mas compensa com efeitos visuais notáveis e uma boa noção de naves espaciais inovadoras. Visualmente, porém, é monocromático, desértico mesmo, fazendo às vezes ecoar um A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, sobretudo com a analogia entre Arrakis e um país do oriente médio, sendo que o diretor de fotografia Greig Fraser é o mesmo. E, se a versão dos anos 80 tinha a trilha de Toto, aqui Villeneuve conta com a de Hans Zimmer, com acordes que remetem à de Alexandre Desplat, igualmente do filme de Bigelow.
O novo Duna, como o antigo, é em grande parte fascinante, com um estilo europeu muito bem dosado numa plataforma blockbuster. É assim mesmo onde é falho: nos diálogos dispersos e reduzidos, no pouco desenvolvimento de qualquer personagem, nas atuações competentes, no entanto com raros diálogos, como as de Isaac, Brolin e Ferguson. Chalamet continua se mostrando em parte uma incógnita, embora se revele carismático, depois de se mostrar um ator incrível em Querido menino. Ele não é exatamente verossímil num filme de ação, como já havia se mostrado em O rei, mas o roteiro também não o ajuda. Ainda assim, os 155 minutos de Duna passam voando, criando uma estranha sensação de material que poderia ser melhor aproveitado e, ao mesmo tempo, encanta com a condução de Villeneuve, diretor de raro talento. A própria maneira como ele filma os vermes gigantes de Arrakis, com um senso de realismo, mostra essa percepção. Nesse sentido, pela expectativa criada, Duna talvez não corresponda a tudo que se esperava dele. Mesmo assim, é um dos grandes filmes lançados este ano, e isso conta muito.

Dune, EUA, 2021 Direção: Denis Villeneuve Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Dave Bautista, Stephen McKinley Henderson, Zendaya, David Dastmalchian, Chang Chen, Sharon Duncan-Brewster, Charlotte Rampling, Jason Momoa, Javier Bardem Roteiro: Eric Roth, Jon Spaihts, Denis Villeneuve Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Hans Zimmer Produção: Mary Parent, Cale Boyter, Joe Caracciolo Jr., Denis Villeneuve Duração: 155 min. Estúdio: Legendary Entertainment, Villeneuve Films Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Duna – Trailer (2020)

Por André Dick

Um dos filmes mais aguardados de 2020, a versão de Demis Villeneuve para Duna certamente enriquece uma temporada com tão poucos lançamentos, pelo motivo que todos sabem, e recebeu o seu primeiro trailer hoje.
Em se tratando de um filme com lançamento programado para dezembro, o primeiro trailer surge um pouco tarde, talvez também devido à refilmagem de algumas cenas. Mas com impacto e precedido de grande expectativa. Este artigo segue a linha das postagens no Twitter do Cinematographe sobre as primeiras imagens do filme, traçando comparações entre as do filme de 1984 e do atual, em paralelo, para que o espectador pudesse traçar paralelos. Desta vez, aproximo cenas do trailer que remetem às do filme de Lynch ou outras obras.
Villeneuve é um dos cineastas que mais cresceram na década passada. Depois de um início de carreira promissor, ele encadeou quatro filmes muito interessantes, Incêndios, Os suspeitos, O homem duplicado e Sicario – Terra de ninguém, e no fim da década duas das maiores ficções científicas dos últimos anos, A chegada e Blade Rjnner 2049; Nesse momento, era o diretor mais adequado para estar à frente da refilmagem de Duna, cuja primeira versão foi lançada em 1984, com direção de David Lynch, uma superprodução de 40 milhões de dólares recebida com problemas pela crítica e bilheteria fraca. Lynch, até hoje, não considera o filme como vital em sua carreira, principalmente porque os De Laurentiis (Dino e sua filha Rafaella) fizeram a edição final de sua versão sem chegar a um acordo em comum. Lynch depositou os problemas de seu filme – de forma destacada a narrativa apressada da metade para o final – nessa edição.

O Duna de Villenueve tem um grande elenco como o filme de Lynch. A história se passa em 10.191, predominantemente no planeta desértico Arrakis. Nele vive um povo chamado Fremen, que aguarda a chegada de um Messias. Este seria Paul Atreides (Kyle MacLachlan na versão de Lynch, Timothée Chalamet na de Villeneuve, conforme as duas primeiras imagens acima), cuja origem é o planeta Caladan, repleto de mares, o que pode ser visto no trailer do novo filme.

Ele é filho do Duque Leto Atreides (Jürgen Prochnowe na versão original, Oscar Isaac na de Villenueve) e Lady Jessica (Francesca Annis antes, agora Rebecca Ferguson, conforme imagens acima), esta uma Bene Gesserit, que inclui sacerdotistas com o objetivo de controlar a chegada desse messias. Essa família real é enviada para Arrakis para cuidar da especiaria – um tempero do deserto. Mas antes Atreides passa pelo Teste Gom Jabbar por meio da madre Reverenda  dessa linhagem, que serve ao Imperador, e esta cena aparece no trailer do filme de Villeneuve.

Ela quer descobrir se Paul é o Kwisatz Haderach, aquele que pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, pedindo que ele coloque sua mão numa caixa em que apenas o messias conseguiria suportar a dor. No trailer do filme de Villenueve, também aparece Gurney Halleck treinando Paul Atreides com um escudo de proteção. O novo intérprete é Josh Brolin, num papel que era de Patrick Stewart.. Abaixo, há uma comparação com a cena da versão de Lynch.

O trailer de Duna também mostra a chegada dos Atreides a Duna (mais abaixo três imagens da versão de Lynch).

Em contato mais adiante com o povo Fremen, Paul Atreides se apaixona por Chani (na versão dos anos 80 Sean Yorung, agora Zendaya), que aparece antes em seus sonhos (o que se vê no início do trailer da nova versão). Villenueve dá a impressão de homenagear o filme de 1984 na imagem de um beijo entre os dois, cujo romance era acentuado pela trilha sonora do grupo Toto (a trilha da versão atual é de Hans Zimmer).

No deserto de Arrakis, Paul e sua mãe recebem a ajuda de Stilgar (Javier Bardem fazendo agora o papel que antes era de Everet McGill, muito presente na obra de Lynch).

O vilão é o Barão Vladimir Harkonnen (Kenneth McMillan, na versão de Villeneuve Stellan Skarsgård), que recebe a ajuda de Rabban (Dave Bautista no papel que na versão dos anos 80 era de Paul Smith, mais abaixo ao lado de Sting, que fazia Feyd Rautha). No trailer, o Barão Harkonnen parece emergir de uma piscina de lama remetendo à clássica imagem de Martin Sheen em Apocalypse now.

Comenta-se que o filme de Lynch é confuso por já começar explicando o que acontecerá dali em diante. No livro de Frank Herbert, aparecem fragmentos do diário da Princesa Irulan, que conta o que acontece com os personagens. Na narrativa, quase não há ação ou humor – costuma-se comparar J.R. R. Tolklein com Herbert, mas são, afora o universo mitológico, muito distintos, cada um possui qualidades próprias –, e sim muitas intrigas políticas, com um tom, ao mesmo tempo, ecológico e religioso, quase teatral e profético.
O Duna de Lynch tinha alguns efeitos especiais mais precários (não se sabe se as naves são mais estáticas para ser uma contraposição à movimentação de Star Wars, pois Lynch pediu a todos que não queria um ar de ficção científica em sua obra, preferindo um futurismo passadista). Nesse sentido, o filme consegue retratar melhor os vermes do que revelar imagens de naves espaciais, ainda mais diante das ficções científicas de destaque feitas anteriormente (como 2001Star wars e Blade Runner) e, sobretudo, posteriormente – embora sua direção de arte de Anthony Masters (de Lawrence da Arábia e 2001), as maquetes de Emilio Ruiz del Río, e as imagens dos vermes (criados por Carlos Rambaldi, o mesmo responsável pela concepção de E.T. e do King Kong de 1976) compensem isso, criando um universo muito mais amplo do que 2001 e Blade Runner, situados em lugares definidos (a seguir nas versões de Villeneuvve e de Lynch).

A fotografia da versão dos anos 80 é do mesmo Freddie Francis de O homem elefante e o figurino de Bob Ringwood, misturando Idade Média e futurismo, é feito de forma notável por Bob Ringwood (de ExcaliburImpério do sol e Batman). No novo Duna, o figurino dos Fremen lembra o da versão de Lynch, enquanto o dos demais personagens é mais clássico ou ligado à filmes de ficção científica deste século, e especificamente o do exército do Barão Harkonnen remete ao da Liga das Sombras de Batman begins.

Impressiona como Lynch, reunindo uma grande equipe em estúdios do México, em 1983, conseguiu reproduzir o universo imaginado por Herbert, sobretudo nas cavernas e palácios, inclusive porque o romance não descreve detalhadamente os cenários. Lynch foi o autor do roteiro de adaptação da obra de Herbert, papel que agora cabe a Jon Spaihts (Prometheus, Doutor Estranho), Eric Roth (O curioso caso de Benjamin Button, Nasce uma estrela e Forrest Gump) e ao próprio Villeneuve.

Ainda com participações de Jason Momoa (como Duncan Idaho), no trailer do novo Duna, percebe-se que Villeneuve preferiu adotar um tom mais sóbrio, com um céu do deserto mais nublado e a paleta da fotografia de Greig Fraser remetendo a outro trabalho deste, em Rogue One – Uma história Star Wars. Algumas imagens são tão soturnas quanto aquelas que ele fez também para The Batman, cujo trailer saiu há poucas semanas. Em Blade Runner 2049, havia uma longa sequência com fotografia de Roger Deakins que remetia ao Duna de Lynch. Talvez essa proximidade tenha feito Villeneuve escolher  desta vez o oposto. Como sua obra, espera-se sempre o melhor.

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Duna tem estreia marcada para 18 de dezembro. Veja o trailer aqui.

mãe! (2017)

Por André Dick

Este texto apresenta spoilers

O diretor Darren Aronofsky nunca foi conhecido exatamente pela discrição à frente de seus projetos. Desde Réquiem para um sonho, com Jared Leto e Ellen Burstyn, ele flertava com imagens de alucinação, que se intensificariam não em O lutador, com uma das melhores atuações de Mickey Rourke, mas em Fonte da vida, uma tentativa de compreensão do universo, e Cisne negro, com a personagem central inserida num ambiente de dança. Noé, sua maior produção até o momento, com gastos milionários, tem esse efeito quase surreal das imagens do cineasta, que iniciou a carreira com Pi, mesmo que se possa entender que é seu filme menos autoral.
Quando se fala em autoria, certamente lembra-se do fato de que Aronofsky é um diretor e roteirista que tem alguns temas prediletos. A religião estava subentendida em cada momento de Pi Fonte da vida, mas nunca chegou a ser preponderante – e talvez não o seja também em Noé, que, pela escala de movimentação, pode lembrar mais um filme fantástico baseado num relato bíblico a que todos temos acesso. Pertencente ao Gênesis, a história da Arca de Noé sintetiza a ideia de como o mundo pode ter passado por um acontecimento divisor. Desta vez, em mãe!, considera-se que ele faz uma releitura bíblica novamente, mas seu diálogo parece ser mais com o processo de criação de um artista, como em Cisne negro.

Neste filme, o diretor da adaptação da peça musical de Tchaikovsky deseja extrair o que não vê em Nina: exatamente o cisne negro. Seu poder de sedução é obscuro e Aronofsky procura essa amplitude por meio de reflexos de espelhos, e na imaginação dela luzes são desligadas antes de se terminar o ensaio para prejudicar seu ensaio. Esses reflexos podem estar presentes em frente ao espelho de uma festa, ou no metrô, ou mesmo na passagem, por uma passarela, ao lado de alguém que parece uma réplica. Ao mesmo tempo, a fotografia de Matthew Libatique mostra uma Nova York tenebrosa, sempre acompanhando os passos de Nina, seja à sua frente, seja pelas costas, revelando a opressão do mundo no qual ela se insere (difícil imaginar outro desconforto maior do que a escolha de Thomas de suas bailarinas, como se elas precisassem ser tocadas para ganhar o reconhecimento da existência). Nina não conhece sua sexualidade e por isso não consegue desenvolver seu lado mais obscuro. É uma jovem entrando na vida adulta, o que, para alguns, significa a morte – e o sexo, o prazer, está sempre associado a algo mórbido ou que pode afastar da visão idílica que se tenta ter das coisas. Não se trata exatamente de uma abordagem sutil, e Aronofsky não a tem como objetivo. Sua meta é, por meio da figura da bailarina, suscitar uma coleção de metáforas. Há quem não goste, certamente. Aronofksy não parece muito preocupado com isso.

Em mãe! não é diferente (e a interpretação daqui em diante é tão livre como para outros filmes também ousados em sua temática, a exemplo de O homem duplicado, de Villeneuve). Por meio da figura de uma mulher, referida como mãe (Jennifer Lawrence), que vive com um poeta, referido como ele (Javier Bardem), numa casa de campo, isolados de tudo, Aronofsky desenha novamente uma mulher que tem problemas com o companheiro. Ela não consegue convencê-lo a ter filhos com ela, enquanto ele, como poeta, só pensa em escrever a grande obra. A casa passou por um incêndio e está sendo reconstruída. Enquanto isso, ele começa a receber pessoas em sua casa, sem a autorização da esposa: o casal feito por Ed Harris e Michelle Pfeiffer, um mais assustador do que o outro sem fazer força para isso. Esse casal representa exatamente o que ele não deseja: repartir sua vida com os filhos. Por isso, pode-se entender, o homem feito por Harris é doente, e seus filhos buscam a mútua destruição. Muito se fala que haveria um fundo religioso nessa cena construída por Aronofsky, e compreende-se isso apenas sob o ponto de vista de que, se o poeta for Deus, ele justamente não quis o pecado no Éden, representado por esse casal. Porém, não há a queda nem o castigo, nesse sentido: o poeta aceita muito bem a escolha do casal (o que me leva a acreditar que, se há um deus por trás de tudo, não é ele). Como em Cisne negro, mais literal do que se imagina, Aronofksy deseja esconder a leitura mais discreta. A mulher é a musa do poeta, e quando ela pode criar algo que rivalize com a obra dele – ou seja, a maior criação, dando vida a um ser –, a reação dele é necessariamente colocá-la em segundo plano. O fato de se comportar como um deus faz parte da atitude desse poeta, considerando-se acima de tudo. Sem interesse não é no jantar preparado pela esposa, mas nos seguidores e em sua editora (Kristen Wiig). Para ele, o objetivo é ter um séquito, composto pelas pessoas que invadem a casa e a tornam seu lar, para tirar fotografias e lhe pedir autógrafos.

O poeta, para Platão, a partir de Sócrates, no qual Aronofsky se baseia, lidava com mentiras e deveria ser expulso da cidade, pois nunca seria de fato um criador: um poeta não constrói uma mesa, por exemplo, e sim busca metáforas para descrevê-la. É exatamente o que acontece ao personagem de Bardem aqui. Ele vive isolado e mente para a mulher o tempo todo, buscando artifícios para não assumir sua relação e colocando as pessoas de fora como a verdadeira vida. Seu intuito é estar nos braços do povo – da cidade que o expulsou. Por sua vez, ela toma um água misturada com pó dourado que pode ser, independente de leituras externas (a cargo de cada espectador), uma espécie de remédio para suas crises de alucinação ou para se manter em meio a todas as dificuldades. Quando ela lida com a casa, ainda em construção, parece senti-la em sua pulsação (em momentos capazes de lembrar Videodrome, de Cronenberg, principalmente quando uma fenda na madeira do chão lembra o ato sexual, sendo o porão o símbolo do inconsciente, e a personagem de Pfeiffer encena uma espécie de luxúria que falta à de Lawrence). A mulher tenta manter essa casa; o poeta só quer lidar com ela de maneira metafórica – é uma caixa de Pandora, como a caixa do final de Cidade dos sonhos. Nesse sentido, a casa é a criação do artista, como sua musa, mas ele não precisa tê-la para sempre: o que importa é a sua obra, não a que a musa lhe oferece por meio do filho, no terceiro ato. Ele se compara a Deus – como Sócrates acusava os poetas –, mas não é Deus. O ciclo, para o poeta, se repete: de criação em criação, o importante é sua obra. Como pode ela ousar uma criação que chegue à altura dele?

Com uma fotografia do parceiro Libatique apoiada em close-ups e movimentação constante, o que dá instabilidade ao cenário único da casa, Aronofksy constrói um sistema de inter-relações em seu filme que deixaria Buñuel satisfeito, não aquele de O anjo exterminador, e sim o de O discreto charme da burguesia e O fantasma da liberdade, além de dialogar com o assustador O inquilino, de Polanski, e autores como Julio Cortázar (ver o conto “Casa tomada”) e Carlos Fuentes (ver especialmente a obra Aura), ligados ao realismo mágico: as cenas surreais no ato final, misturando tudo o que comporia a obra de um poeta – a guerra, a destruição de seu lugar, o porão como uma extensão dos círculos de Dante, a casa sendo invadida por festas depois do reconhecimento do poema escrito, e aqui surge uma assustadora Kristen Wiig –, em nome da grande criação, que é a Dele, o poeta, não dela, a Mãe. “Eu sou a mãe!”, diz ela, para indiferença do escritor, depois de dar à luz, quando o barulho até então cessa e ouvimos o choro do bebê, numa representação extraordinária da solidão humana e do verdadeiro recomeço, da verdadeira obra. Aronofosky filma de maneira brilhante o nascimento do ser humano em contraponto ao tumulto da humanidade. O diretor destrói o conceito literário de autor e de si mesmo – à medida que escreve o roteiro. A metáfora de mãe! é uma sátira ao próprio Aronofsky: importa, para ele, não a personagem, e sim Jennifer Lawrence, que está, por sinal, excelente, no melhor momento de sua carreira depois de Joy, lembrando muito a performance de Laura Dern em Império dos sonhos. Sem a musa não há obra, não há vida. Mas, no final, pode-se trocá-la: é preciso um novo escrito. Sim, o terceiro ato é difícil de ser visto, especialmente uma cena desagradável, contudo é ele que sintetiza a estranheza.
Diante disso, estamos também lançados num filme sem gênero demarcado. O que mãe!, além de uma adaptação de ideias de A república de Platão, poderia ser? Um drama? Um suspense? Um terror? Certamente, um híbrido de todos esses gêneros. E mãe!, mesmo com seu psicologismo por vezes nada discreto, mas ainda interessante, ainda consegue ser um filme pop, ou seja, acessível, exercendo um magnetismo próprio e fascinante de um acabado cult movie. Poucos diretores conseguiriam isso, e Aronofsky é um deles.

mother!, EUA, 2017 Diretor: Darren Aronofsky Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Brian Gleeson, Domhnall Gleeson Roteiro: Darren Aronofsky Fotografia: Matthew Libatique Produção: Ari Handel, Darren Aronofsky, Scott Franklin Duração: 121 min. Estúdio: Protozoa Pictures Distribuidora: Paramount Pictures Brasil

Amor pleno (2012)

Por André Dick

To the wonder.Malick

O diretor Terrence Malick sempre foi conhecido tanto pelo talento quanto pela realização de poucos filmes. Entre Dias de paraíso e Além da linha vermelha, são duas décadas de distância. No entanto,  depois de Além da linha vermelha, de 1998, ele já lançou O novo mundo, A árvore da vida e agora Amor pleno (título no Brasil para To the wonder, figurando ao lado de A viagem para Cloud Atlas como um distanciamento daquilo que corresponde ao filme). Recepcionado com a habitual polêmica, por fazer um cinema que não deixa o espectador indiferente, Amor pleno consegue radicalizar as propostas de seus dois principais filmes, Dias de paraíso e A árvore da vida. Nesse sentido, quem não aprecia esses filmes, possivelmente vai desgostar deste novo. Com todos os elementos próprios da trajetória de Malick, eles retratam a relação indistinta do ser humano com o cósmico e o cenário que lembra uma espécie de Éden perdido sempre é revitalizado por um discurso que procura aproximar a solidão e o discurso religioso. Mas não se trata exatamente de um discurso com o objetivo de convencer a respeito de uma determinada religião, mesmo que suas menções, em A árvore da vida e Amor pleno, sejam ao cristianismo, mas sobretudo a busca pela ligação com o outro. Todos os personagens, na pequena filmografia de Malick, a perseguem. Se O novo mundo me parece o filme até a data menos interessante do diretor, não se pode dizer que ele não apresenta seu estilo. Eis o que mais possui, na superfície, Amor pleno: com a fotografia de Emmanuel Lubezki e a trilha de Hanan Townshend, entre a serenidade e a opressão (baseando-se diretamente naquela que Alexandre Desplat compôs para A árvore da vida), todos os elementos caracterizam este como um filme de Malick. Às vezes, podemos estar diante de imagens excessivamente parecidas com Dias de paraíso e A árvore da vida, mas Amor pleno contém uma espécie de progressão em silêncio que esses filmes, apesar de buscarem, não realizam completamente. Amor pleno parece menor, por exemplo, do que A árvore da vida, mas guarda construções mais arriscadas.

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Trata-se de uma espécie de escritura poética – ou, dependendo do ponto de vista, sagrada – da francesa Marina (Olga Kurylenko, fugindo à impressão deixada por Oblivion) para aquele que vislumbra como seu amor, Neil (Ben Affleck), um inspetor ambiental (daqui em diante, spoilers). Ela casou-se muito cedo e encontra esse amor quando já tem uma filha, Tatiana (Tatiana Chiline). Depois de andarem pela belíssima abadia do Monte Saint-Michel (onde ela escreve “Subi os degraus para a maravilha”), lugar histórico, na Normandia, de passearem pelo Jardin du Luxembourg – com uma paisagem quase sempre em névoa, europeia –, e se divertirem dentro de um metrô, Marina acompanha Neil na volta para Oklahoma, no interior dos Estados Unidos. Suas primeiras impressões estrangeiras apresentam um país honesto e limpo – vitais as passagens por um desfile de homens vestidos de caubói e um campo de universidade, ou pelo campo de futebol americano, onde Tatiana vê líderes de torcida ensaiando –, com o céu sempre aberto, e Malick consegue filmar algumas paisagens de maneira notável, como a de um posto de gasolina noturno ou das quadras abertas onde eles vão morar. Estas paisagens quase intocadas parecem esconder, como descobre Neil, em seu trabalho como fiscal de meio ambiente, resíduos tóxicos, e Malick sutilmente retrata a presença deles como uma espécie de serpente que habita o paraíso – ou o “novo mundo”. Esse paraíso é apenas aparente. Entre abraços e olhares, no chão da sala ou do quarto, perto das cortinas (em imagens que dialogam diretamente com aquelas da família O’Brien, de A árvore da vida), o casal, a princípio, vive um idílio, com Neil, que começa a tratar Tatiana como sua filha. Em idas ao supermercado, Tatiana pressiona Neil a casar com a mãe – o casamento como a embalagem de consumo româtico. O peso da presença delas é evidente nele. Para tentar diminuir esse panorama, a personagem de Marina, como outros personagens da filmografia de Malick, tem uma ligação com a música. Se o menino O’Brien que causava ciúme no irmão mais velho por tocar violão e ser mais próximo do pai, pianista, em A árvore da vida, e Holly, em Terra de ninguém, era proibida de ver Kit pelo pai, sendo colocada em aulas de música, aqui Marina tenta ser uma espécie de bailarina: ela tanto toca o parapeito da janela com sapatilhas da filha como dança ao longo do supermercado aonde vai com Neil e a filha.

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Em determinado momento, surge um antigo amor de Jane (Rachel McAdams, num papel discreto, mas nunca tão bem fotografada), dona de um rancho semifalido, dialogando diretamente com o fazendeiro de Dias de paraíso e uma espécie de retrato contemporâneo dele. Ao mesmo tempo, temos o Padre Quintana (Javier Bardem), cuja igreja o casal frequenta e visita as comunidades periféricas da região, e para quem o casamento pode trazer um encanto que não se encontra nas demais relações. Todas essas figuras, numa leitura a princípio apressada, parecem desconectadas. Mas, quando Malick aprofunda os personagens (é certo que quase sem diálogos), vemos que todos estão se debatendo entre assumir um compromisso ou optar pela liberdade, e que quem parece enclausarado não necessariamente é diferente daquele que parece viver com liberdade, com janelas de vidro com vista ampla para fora, jardins imensos e planícies intermináveis (veja-se o momento em que Neil e Marina se casam no tribunal, enquanto homens assinam sua prisão). Todos, na verdade, escolhem maneiras de criar vínculos, ou, nos momentos de angústia e desespero, e falta de opção, se aprisionar (por isso, a visita do Padre às famílias e os prisioneiros). Inevitável lembrar da cena em que o Padre caminha em meio a familiares depois de um casamento, e lhe é oferecido o “dom da alegria”, por ser muito triste, ao que ele responde que é porque não sai muito. Neil também não sabe se gosta de Marina, e ambos frequentam a igreja de Quintana, que, a partir de determinado momento, não sabe se acredita em Deus. Paralelamente, Malick traça essa relação entre o casal (e os sentimentos de vínculo, luxúria, pecado) com as dúvidas existenciais do padre, vital para se entender a busca de cada um. Sem saberem ao certo qual o sentimento que possuem um pelo outro, Neil e Marina frequentam a igreja do Padre Quintana, mas organizam seus compromissos formais longe dela.
Quintana deseja receber os fluxos de luz pelos vitrais da igreja, basicamente idênticos àquelas de A árvore da vida – quando parece que estamos, na realidade, assistindo a uma espécie de continuação não anunciada. É de se pensar que desde A árvore da vida Malick já queria conduzir os sentimentos de seus personagens por meio da arquitetura. A arquitetura, tanto de A árvore da vida quanto de Amor pleno, é moderna, com ventilações, raios de luz entrando. Não se trata simplesmente de Malick querer mostrar vitrais de igreja, e sim de mostrar como esse ambiente de busca da religiosidade não se contrapõe àqueles cenários que parecem apenas rotineiros. Para Malick, todo o ambiente reserva um espaço para a psicologia, e é surpreendente como Amor pleno recupera imagens da infância, de ruas ainda sendo construídas, com terrenos baldios, e o sol forte da manhã sem nenhum bloqueio de edifícios, assim como as áreas rochosas e os animais num campo guardam alguma ligação com a parte inicial de 2001, de Kubrick. E também estabelece uma ligação com o que Malick considera divino. Se visto superficialmente, Amor pleno parece apenas uma elegia a cenários belos; se visto com densidade, é possível perceber um vislumbre de melancolia em cada encontro ou desencontro desenhado neles, também pela fotografia irretocável de Lubezki.

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Não necessariamente isso irá iluminar quando os personagens são fechados. Os quartos podem anunciar tanto o bem-estar de um relacionamento quanto a distância entre pessoas que parecem se gostar, mas não conseguem assumir esse vínculo afetivo. E as salas reservam tanto a aproximação entre alguém que não sabe se deseja se casar e ter filhos quanto o padre que tenta fugir do mundo externo – dos junkies que o procuram. No entanto, Malick deixa quase tudo subentendido, ou revela apenas por meio de gestos e ações ligeiras dos personagens, o que já se anunciava em A árvore da vida. Esses personagens, indecisos em suas ações, só poderiam  ser estrangeiros, seja onde estiverem. Se o padre é um estrangeiro tentando dissipar a miséria, Marina prefere um lugar onde nada parece acontecer aos metrôs e à movimentação intensa de Paris, enquanto Neil está deslocado sempre de seu posicionamento, pois não consegue comprovar sua ligação com as amantes. Mesmo uma réplica da Estátua da Liberdade pode ser encontrada durante a caminhada pelo Jardin du Luxembourg, em Paris.
Outra passagem em que se desenha esta sensação estrangeira é aquela em que Marina conversa com Anna (Romina Mondello), sua amiga italiana, e esta diz que na cidade onde ela mora não acontece nada – jogando, por exemplo, a bolsa de Marina num canteiro e dizendo que, quando elas voltarem ali, a bolsa a estará esperando. Estamos num universo contemporâneo, mas Malick ainda visualiza uma espécie de Éden intocado, como aquele que vemos em Dias de paraíso, O novo mundo e A árvore da vida, antes da passagem pela morte.
Esta propriedade, em Malick, de cada personagem ser estrangeiro, mesmo num ambiente familiar ou ainda intocado, conduz sempre suas narrativas a um espaço de amplitude. Temos, então, figuras da França (Marina e sua filha), da Espanha (o Padre Quintana), da Itália (a amiga de Marina), dos Estados Unidos (Neil e Jane) – e Malick utiliza línguas diferentes em seu filme para revelar, ao que parece, não apenas uma Babel pessoal, mas de que a linguagem a ser analisada por ele é universal.
Amor pleno é o primeiro filme de Malick situado totalmente nos dias atuais. Em Terra de ninguém, visualizava o casal transviado nos anos 50; em Dias de paraíso, as fazendas do início do século XX dos Estados Unidos; em Além da linha vermelha, a II Guerra Mundial; em O novo mundo, a colonização de ingleses na América; e em A árvore da vida uma família entre os anos 50 e possivelmente os anos 70. Isso concede a Malick um espaço para trabalhar outras formas de relação entre as pessoas, como o contato entre Marina, morando em Oklahoma, e a filha, morando na Europa pela internet, ou a derrocada da fazenda de Jane, já quase vazia e em ruínas.

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E não por acaso, nesse sentido, o cenário da Normandia – ao mesmo tempo medieval e moderno – se reproduz em todo o filme, como lugar a ser comparado (e seu formato, no horizonte, lembre o do castelo – o espaço do “novo mundo” – da Disneylândia). A parte superior do monte é dominada pela abadia de Saint-Michel, também conhecida como “A maravilha”. As marés de Saint-Michel, que sobem de acordo com diferentes períodos, não deixam de ser um contraponto àqueles riachos em que Neil investiga a presença de tóxicos. Do mesmo modo, as areias movediças são um contraponto aos lodaçais ameaçados pela indústria. Os vitrais da igreja de Padre Quintana guardam uma luminosidade que parece não haver no dia em que Neil e Marina visitam Saint-Michel, mas de certo modo estabelecem uma ligação imediata. Do mesmo modo, outra analogia é aquela em que o casal chega a uma planície em que há bisões, animais caçados por nativos e que foram quase exterminados pelos colonizadores – como se Neil e Jane constituíssem esses colonizadores querendo preservar o que resta de suas vidas – e perceba-se na sonoridade ao fundo vozes indígenas (numa ligação estreita com O novo mundo). E a mais espiritual: os personagens sobem a escada seja para consumar o amor, a traição ou o encontro com uma ideia divina (repare-se que, na saída do motel, um carro antiquíssimo, igual ao do fazendeiro traído de Dias de paraíso, passa por Marina).
Malick é um autor refinado de analogias, outras vezes incorrendo numa quase filosofia, precipitada, e não é diferente aqui. Embora ele não queira atingir a grandiosidade de A árvore da vida, no sentido de colocar o casal como o filho da família O’Brien como um símbolo do nascimento e da morte, em que o nascimento é representado como um menino saindo por uma porta embaixo d’água, Malick consegue desenhar aproximações interessantes. Também não existem, aqui, os dinossauros, o surgimento da Terra, os vulcões em erupção, a vida e a genética se compondo em todos os detalhes. Amor pleno consegue ser uma versão mais íntima ainda daquilo que moveu Malick para A árvore da vida: a água e a vegetação se projetam do mesmo modo. Quando o casal está em Saint-Michel, a caminhada lembra o final de A árvore da vida, e quando Marina caminha de braços abertos em meio a um campo verde, estamos de novo próximos da Sra. O’Brien (Jessica Chastain), abrindo os braços para o céu, e ainda quando Marina se aproxima de um piano é um diálogo direto com Sr. O’Brien (Brad Pitt). A dor da perda do filho da mãe de A árvore da vida se converte no afastamento, aqui, de Marina em relação à filha, e o conflito doloroso de não poder ter outro filho.
Quem se manteve afastado da proposta de A árvore da vida dificilmente vai encontrar aqui um alento; quem considera a fotografia como um elemento apenas para embelezar um filme, sem significado próprio, também; mais complicado ainda para quem deseja seguir uma linha ininterrrupta de diálogos entre o romântico, a dúvida existencial e o conflito entre casais, também em torno de uma possível traição (em que Antes da meia-noite, com atuações irrepreensíveis de Delpy e Hawke, se destaca). Embora pareça apenas continuar o filme anterior, reproduzindo algumas imagens, como o sol por trás de árvores e casas, e situações, Malick se arrisca ainda mais, ao propor uma narrativa, esta sim, sem núcleos definidos de dramaticidade. Os acontecimentos do filme não se mostram com um destaque definitivo, apenas um silêncio opressor, mas capaz de movimentar as lacunas. Se Marina, a mulher, é mais submissa ao homem do que a Sra. O’Brien, não vemos nenhum afastamento a respeito das dúvidas existenciais tanto em Neil quanto no Padre Quintana: ambos vagam, à espera de um sentido mais exato de compreensão, e todos são, de certo modo, estrangeiros dentro de sua própria vida.
Amor pleno não possui também a narrativa rebuscada de Dias de paraíso, mas há um sentido denso de humanidade, entre os silêncios cultivados pelos personagens ao longo da metragem. Isso se deve à utilização das imagens de Malick no sentido de o espectador parecer sentir o clima de cada lugar enfocado, mesmo os mais corriqueiros. Quando se olha uma rua em Malick, é como se estivéssemos inseridos nela, em alguma arquitetura capaz de remodelar sensações de lembrança e desprendimento, com suas cercas e seu horizonte longínquo, antes do anúncio das estrelas.

To the wonder, EUA, 2012 Diretor: Terrence Malick Elenco: Ben Affleck, Javier Bardem, Rachel McAdams, Olga Kurylenko, Tatiana Chiline, Romina Mondello Produção: Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Hanan Townshend Duração: 112 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Redbud Pictures

Cotação 5 estrelas

007 – Operação Skyfall (2012)

Por André Dick

Desde Cassino Royale, Daniel Craig oferece um novo olhar sobre as aventuras do agente secreto James Bond, o 007, personagem criado por Ian Fleming. Depois de décadas alternado entre atores como Sean Connery, Roger Moore, George Lazenby (que fez apenas um filme), Timothy Dalton e Pierce Brosnan (o mais bem-humorado é, sem dúvida, Moore), parece que o agente que trabalha a serviço da Inglaterra encontrou o mais próximo de uma possível realidade – se há realidade no que ele consegue fazer, de todas as maneiras – e de uma tentativa de humanizá-lo. Se em Cassino Royale, isso funcionou de maneira quase perfeita (poucos filmes tem o terceiro ato como o daquele, apoiado no duelo entre Craig e Eva Green), e o  segundo com o ator (Quantum of solace) teve mais críticas do que elogios, neste Operação Skyfall, o personagem parece voltar novamente para deixar a figura de Craig impressa como a de fato um 007 histórico.
Apoiado desta vez pela direção do oscarizado Sam Mendes (que esteve à frente de Beleza americana e fez filmes interessantes depois, como Estrada para perdição e Foi apenas um sonho), Craig consegue, desde o início, combinar ação – a sequência inicial é não menos do que extraordinária, deixando uma briga de trem com Tom Cruise no primeiro Missão impossível, de De Palma, certamente para trás, com a presença destacada de outra agente, Eve Moneypenny (Naomi Harris) – e o ímpeto de violência e determinação que move o personagem. Se ele era mais contido (na medida certa) com Sean Connery e trazido para uma diversão descompromissada, mas essencial, por Moore, tendo essas características bem mescladas por Brosnan, em Craig ele finalmente encontra sua vertente mais voltada para os filmes de ação moderno, ainda que não menos conflituosa. Este James Bond de Craig, apesar de suas ações serem mais espetaculares, parece, na verdade, o menos situado num universo em que apenas se movimentariam as personalidades mais importantes do mundo. Refugiar-se numa praia, para este 007, é o melhor caminho para simplesmente ganhar um tempo, dos problemas políticos da Rainha, na ameaça ao MI6, e Mendes consegue, desde o início, com um James Bond pálido e com barba para fazer, mostrar a sua tentativa de se desvencilhar do passado. Mas o passado também lhe traz M (Judy Dench), que o direciona para as missões e em relação à qual se comporta como filho – “Aqui que você não vai dormir”, diz ela em seu apartamento, quando conta a Bond que o dele foi vendido. “Quem mandou não avisar que estava vivo?”.

Uma espécie de repreensão familiar é o que precisa Bond, indisposto a ouvir a palavra Skyfall numa análise psiquiátrica em que se analisa se pode voltar a atuar como agente secreto ou se está ficando velho demais. No início, a perseguição se dá porque foi roubado um disco rígido com os nomes de agentes secretos da OTAN, o que pode colocar em risco vários espiões e o cargo de M, que já está ameaçada pela aposentadoria, pressionada por Gareth Mallory (Ralph Fiennes), presidente do Comitê de Inteligência e Segurança. Bond, na missão, indefine-se entre continuá-la ou salvar um companheiro de time, e depois sente-se traído por uma decisão que compromete o desfecho, sendo que Mendes coloca essa questão como uma real tentativa de dimensioná-la, mostrando um agente, acima de tudo, com sentimento de culpa e raiva, embora saiba que sua missão seja matar.
Colocado novamente em ação, 007 vai até Shangai – em que precisa enfrentar um inimigo no alto de um prédio, com uma direção de arte neon, meio oitentista, misturada com a visão de um quadro de Modigliani – e depois a Macau – onde precisa ir a um cassino, na sequência em que o filme mais lembra Indiana Jones e o templo da perdição –, conhecendo uma ex-prostituta, Sévérine (Bérénice Marlohe), que poderá levá-lo a Raoul Silva (Javier Bardem, que parece misturar os trejeitos apresentados em Onde os fracos não têm vez com os de conquistador em Vicky Cristina Barcelona), que sente ao mesmo tempo admiração e repulsa por M. É interessante como o filme, antes de ser apresentado ao vilão, prefere destacar a direção de arte de Dennis Gassner (de filmes antológicos dos irmãos Coen, como Barton Fink e O homem que não estava lá), realmente uma das melhores da série 007, em colaboração com a fotografia de Roger Deakins (também habitual colaborador dos Coen). No entanto, esse cuidado primoroso com a ambientação parece não combinar diretamente com a história, ou seja, ela parece ainda com um certo rumo indefinido – é certo que mostrando Bond sendo avaliado por suas falhas –, com uma sequência de diálogos que nada traz de novo, ou seja, é muito inferior àquela mostrada em Cassino Royale, por exemplo. Com a entrada do vilão, parece que há uma reviravolta na história (mesmo que este seja um 007 menos difícil de ser entendido, ou seja, sem tantas idas e vindas na trama), e Sam Mendes parece finalmente encontrar o ritmo que havia apresentado no início, esquecendo completamente o que não é forte desde o início (os diálogos), preferindo se concentrar na tensão entre os personagens, principalmente entre Bond, Raoul Silva, M e um outro personagem decisivo na hora final, simplesmente espetacular. Há tanta ação e com realismo impressionante que até faz esquecer a psicologia forçada de Raoul quando este tenta explicar por que pretende se vingar de quem o teria feito sofrer no passado.

Parece que Mendes teria confessado uma certa influência do Batman de Cristopher Nolan na realização deste filme. É, sem dúvida, o filme da série que melhor revela o sentimento do agente em relação ao seu passado, inclusive nos cenários derradeiros. E talvez a escuridão das cenas derradeiras evoquem Batman. De qualquer modo, é também certo que Mendes consegue utilizar cenários naturais de forma mais efetiva, situando a ação realmente num ambiente próprio e real – na sequência entre Shangai e Macau – e apresenta a violência de forma mais realista e menos reverencial, mostrando, de maneira mais contundente, as consequências dela para cada personagem.
Outro elemento particular deste Operação Skyfall é situar James Bond como alguém mais próximo da aposentadoria do que do sentimento de revitalização juvenil. Nele, as lutas e perseguições já causam um sentimento de exasperação e finalidade, e ele parece menos interessado em festas e relacionamentos e mais numa aproximação daquela que pode ser o que Eva Green seria em Cassino Royale. E Mendes mostra que agentes secretos estão sendo colocados em dúvida – não há uma definição muito certa para isso, mas Fiennes faz de Gareth um personagem ambíguo na medida certa –, sobretudo num mundo em que tudo parece acontecer diante de uma tela de computador, como tenta convencer Raoul Silva aos seus seguidores e mesmo o jovem gênio que providencia as novas invenções de 007, Q (Ben Whishaw), que diz, com arrogância juvenil, a Bond: “Causo mais estrago no mundo na cama, de pijama, em meu computador do que você em campo”. Certamente, vendo Operação Skyfall, James Bond transcende qualquer campo de ação – sua velhice e seus ressentimentos são, de fato, a humanidade que a série quis mostrar desde seu início, e conseguiu raras vezes como aqui.

Skyfall, EUA/Reino Unido, 2012 Diretor: Sam Mendes Elenco: Daniel Craig, Javier Bardem, Judi Dench, Naomie Harris, Bérénice Marlohe, Ralph Fiennes, Albert Finney, Ben Whishaw, Rory Kinnear, Helen McCrory Produção: Barbara Broccoli, Michael G. Wilson Roteiro: Neal Purvis, Robert Wade, John Logan Fotografia: Roger Deakins Trilha Sonora: David Arnold Duração: 145 min. Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / Sony Pictures Entertainment / Albert R. Broccoli’s Eon Productions

Cotação 4 estrelas