Mapas para as estrelas (2014)

Por André Dick 

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Os filmes do canadense David Cronenberg, desde os anos 70, são vistos sob a análise da estranheza, com experimentos como Calafrios, ou dos anos 80, quando se tornou mais conhecido, com Scanners, Videodrome, A mosca e Gêmeos. Nos anos 90, ele teve uma incursão na literatura adaptada de Burroughs com Mistérios e paixões, assim como fez o provocativo Crash. Foi a partir do início deste século que Cronenberg foi adaptando suas estranhezas a um cenário mais próximo do cotidiano familiar, como em Marcas da violência, Senhores do crime e Um método perigoso. Este antecipou uma nova parceria do diretor, aquela com Robert Pattinson, substituindo a que resultou exitosa com Viggo Mortensen. O resultado foi Cosmópolis, uma espécie de homenagem às avessas à Bolsa de Wall Street, e a parceria é retomada em Mapas para as estrelas. Embora Pattinson aqui não seja o principal nome, trata-se de um dos filmes mais originais de Cronenberg, pois parece tratar dos costumes de Hollywood sem exatamente ser linear ou investir na estranheza evidente, e até rotulada, trazida pelo cineasta. Ou seja, a partir de determinado ponto, a obra do diretor só teria realmente qualidade se mostrasse o que mostra na maioria de seus filmes: coisas estranhas acontecendo como se fossem normais. Nesse sentido, Mapas para as estrelas pode se ressentir de seres humanos se transformando em insetos.
Talvez Cronenberg não goste de ser influenciado claramente por David Lynch, com referências a Billy Wilder, uma vez que Lynch costuma ser visto como um opositor a seu cinema. Mas, se o seu novo filme conta com um roteiro até raso se visto em um nível superficial, assinado por Bruce Wagner, Cronenberg ingressa naquilo que Lynch consegue fazer com qualidade: obter estranheza de momentos a princípio comuns. É interessante saber que Wagner fez antes o roteiro de A hora do pesadelo III – Os guerreiros dos sonhos, em que um grupo frequentava um hospital psiquiátrico para tratar de problemas com os pesadelos em que Freddy Krueger surgia. Isso porque Mapas para as estrelas, com o clima de Hollywood, guarda uma espécie de onirismo – mesmo que em alguns aspectos tenda mais ao pesadelo em si mesmo.

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Cada personagem apresenta um mistério a ser solucionado (ou não), de Havana Segrand, atriz quase esquecida feita por Julianne Moore, até a aspirante à atriz Agatha feita por Mia Wasikowska, passando pelo psicoterapeuta Stafford (John Cusack), sua mulher Cristina (Olivia Williams) e seu filho, astro de Hollywood, Benjie (Evan Bird). E temos também o motorista Jerome Fontana (Robert Pattinson), que pretende ser ator e roteirista. Ao chegar a Los Angeles, Agatha conhece Jerome e logo se interessa por ele, mas não consegue rivalizar com seu interesse pelo universo cinematográfico. Para ingressar em Hollywood, ela tem a ajuda de Carrie Fisher – a princesa Leia de Guerra nas estrelas fazendo ela mesma, na porção O jogador de Altman de Mapas para as estrelas – que a indica para Havana, da qual se torna amiga, até onde o limite é uma comemoração à beira da piscina. Por sua vez, Havana é cliente de Stafford, tendo de enfrentar conflitos existenciais que remetem à mãe (que regressa em imagens com a atuação da ótima Sarah Gadon), e enfrenta problemas em sua carreira como atriz. O que não acontece com Benjie, uma espécie de Macaulay Culkin dos anos 90, perseguido por jornalistas. Além das recordações de personagens ligadas ao elemento do fogo, que dialogam diretamente com a narrativa Coração selvagem, em que Lula e Sailor buscavam fugir da família, temos, em Mapas para as estrelas, uma reunião de Benjie com executivos de cinema, cuja estranheza recorda, em parte, a reunião de Justin Theroux em Cidade dos sonhos. Nessa cena rápida e a princípio descompromissada, Cronenberg confere a pressão em relação a este astro infantojuvenil, mas carregado de uma confusão por parte da mãe, Cristina. É uma pressão que Cronenberg reverte às vezes por meio do humor, embora não necessariamente tranquilo. Para o cineasta canadense, Hollywood é antes de tudo um ponto de encontro para a autopromoção, e isso existe sobretudo nas figuras de Havana e Stanfford. Tudo que pode fugir a esta autopromoção se converte em desespero e fuga ao que pode ser visto como normalidade familiar. E dentro dessa normalidade familiar há um passado nebuloso que irá ligar ainda mais as figuras de Agatha e Savana: elas são mais parecidas do que aparentam e, embora o roteiro não esclareça nem mesmo ao final, vítimas de uma mesma explicação baseada naquilo que se desconhece em suas famílias.
Enquanto Agatha e Jerome querem ser atores, Benjie parece já cansado de sua carreira, e Stafford recolhe o que sobra das relações. Todos, no entanto, têm algo em comum: eles são como clichês se movimentando em cena, assim como uma cena em que Agatha e Jerome se encontram próximos do letreiro de Hollywood. Se Jerome de Pattinson pode ser visto como uma extensão do personagem do motorista feito por Ryan Gosling em Drive – e Mapas para as estrelas, como o filme de Refn, consegue destacar os cenários de uma clara Los Angeles, pelo menos aparentemente, na excepcional fotografia do habitual colaborador de Cronenberg, Peter Suschitzky –, Agatha é uma espécie de mescla entre os personagens de Ed Harris em Marcas da violência e Rosanna Arquette em Crash: o seu corpo traz as marcas do seu passado. E mesmo a maquiagem que Jerome usa num determinado momento, apesar de lembrar um klingon, remete mais à estranheza de eXistenZ.

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Embora a relação de Savana com o passado de sua mãe seja a que mais marque presença ao longo da narrativa, é interessante como se coloca a presença da referência a um poema de Paul Éluard, ligado ao personagem de Benjie. Este poema, “Liberdade”, foi distribuído aos franceses na época da invasão do nazismo e serviu como compromisso pela busca da “liberdade”: é justamente a sensação que esses personagens não têm na Hollywood de David Cronenberg. Assim como aquela Hollywood de Lynch sustenta uma atriz aspirante dentro de um pesadelo tortuoso, aqui todo o significado das interpretações não esconde a falta de liberdade para desempenhar não um papel verdadeiro, mas aquele amparado justamente por uma realidade.
As atuações do filme não são menos do que excelentes, sobretudo as de Moore e Wasikowska (que já havia mostrado grande evolução em O duplo, ao lado de Jesse Eisenberg), ambas em seu melhor momento no cinema. No entanto, não se deve esquecer das presenças vitais de Cusack, Pattinson e de Evan Bird (excepcional, num papel que parece fácil). Misturando sonhos, alucinações, pretensões artísticas e o passado de famílias,  Mapas para as estrelas, mesmo que seja uma visão pouco idílica sobre Hollywood, não deixe de ser uma homenagem à cidade dos sonhos, avançando naquilo que Cronenberg anuncia em Cosmópolis: uma visão contemporânea corrosiva e cotidiana, mas não por isso comum. Esta visão é acompanhada por uma montagem bastante ágil, feita pelo habitual colaborador de Cronenberg, mas superior às que entregou em Senhores do crime e Um método perigoso, certamente ajudado pelo ritmo empregado na condução deste elenco. Com uma sequência de cenas que se conectam naturalmente, sem o esforço do espectador em retomar explicações e por isso sem excesso de camadas que poderiam estender o filme até seu limite, raramente se vê um filme recente com um elenco tão adequado à proposta do diretor, fazendo com que Mapas para as estrelas seja mais um integrante da lista de filmes que o Festival de Cannes recebeu com uma injusta frieza, apesar de ter escolhido Moore merecidamente como melhor atriz. É Moore, afinal, que consegue, não sem a colaboração direta de Mia Wasikowska, sintetizar Hollywood, assim como Naomi Watts conseguia em Cidade dos sonhos, neste acerto memorável de Cronenberg. 

Maps to the stars, CAN, 2013 Diretor: David Cronenberg Elenco: Julianne Moore, Mia Wasikowska, John Cusack, Robert Pattinson, Olivia Williams, Sarah Gadon, Evan Bird, Carrie Fisher, Jayne Heitmeyer Roteiro: Bruce Wagner Fotografia: Peter Suschitzky Trilha Sonora: Howard Shore Produção: David Cronenberg, Martin Katz Duração: 111 min. Distribuidora: eOne Films Estúdio: Prospero Pictures / Sentient Entertainment

Cotação 4 estrelas e meia

Vida de adulto (2013)

Por André Dick

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Há uma tendência de se rotular filmes como herméticos e inteligentes e outros como simplesmente descartáveis. Sob este ponto de vista, determinados filmes são lançados e rotulados como desprovidos de uma aura especial de inteligência: Vida de adulto, o mais novo filme com John Cusack, se tornou um deles. Desde seu lançamento, apesar de boas críticas parciais, estávamos diante de um cult fracassado, que não acrescentaria a seu tema, pois simplesmente se prestaria a um determinado humor involuntário. A antítese desse tipo de tratamento seria, por exemplo, aquela concedida a uma obra como Amores imaginários, de Xavier Dolan, por seu tratamento mais influenciado pelo cinema francês.
Com uma rápida trajetória nos cinemas norte-americanos, Vida de adulto foi lançado diretamente em DVD e Blu-ray no Brasil. Enquanto se assiste a ele, pode-se ficar em dúvida sobre o que gostaria de ser: por um lado, é uma comédia estridente, nada discreta e por vezes até excêntrica; por outro, ele consegue ter espaço para um certo drama e conflito existencial da personagem central, Amy, que gostaria de ser poeta e tem como influência Sylvia Plath, cujo suicídio ela tenta imitar já na primeira sequência. Ao contrário de outros filmes sobre o tema literatura, Vida de adulto não conduz seus personagens para um universo à parte, como Dentro da casa ou Depois de maio, ou de pretensa introspecção de um artista, como Inside Llewyn Davis, nem apresenta a densidade de Poesia. No entanto, ao mostrar essa jovem que gostaria de ser vista como um talento poético, com uma atuação exagerada de Emma Roberts (também presente no surpreendente Palo Alto), mas estranhamente convincente em sua mescla de comportamento bipolar e melancolia, e intervalos pop soando o descartável, consegue dizer certamente mais do que os três primeiros, com toda sua seriedade ou sua metalinguagem em parte previsível.

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A história de Vida de adulto se desenvolve em Syracuse, com Amy, que tem como melhor amiga Candace (Shannon Woodward), mais afeita a participar de movimentos pelos quais a amiga não tem nenhum interesse, encontrando emprego numa sex shop, chamada exatamente Adult World. Nela, conhece uma das donas, Mary Anne (Cloris Leachman), e o gerente, Alex (Evan Peters), amigo de um transexual, Rubia (Armand Riesco). No entanto, Amy ainda é virgem e o ambiente em que inicia seu trabalho não seria o mais indicado para compartilhar suas experiências. Em conflito com os pais, Amy encontra seu poeta preferido, Rat Billings (John Cusack), o qual passa a perseguir, sobretudo depois de uma sessão de autógrafos desastrada em que a narrativa esboça seus exageros. Amy quer ser protegida de Billings, investindo numa carreira, mas o filme não desliza para as falhas de Garotos incríveis, o filme bastante superestimado de Curtis Hanson, mostrando Billings como um autor no mínimo irônico, a melhor atuação de John Cusack em vários anos, e com alguma influência de O lado bom da vida, no ritmo de conversas entre os personagens.
A inclusão de Cusack não acontece por acaso: com uma bela fotografia de James Laxton, dialogando com filmes independentes, o clima e a atmosfera, também da trilha sonora (assinada quase completamente pela Handsome Furs), de Vida de adulto é de anos 80, além de determinados maneirismos de Cusack que vimos em Matador em conflito. O cinema dos anos 80 ficou também conhecimento pela vertente de filmes jovens apoiada por John Hughes, com peças que acabaram se tornando referenciais, como Gatinhas e gatões, O clube dos cinco e A garota de rosa shocking, para não falar em Curtindo a vida adoidado. No final da década de 90, Alexander Payne conseguiu utilizar a inteligência do cinema de Hughes com uma vertente de cinema considerado indie em Eleição – e o que temos neste trabalho de Coffey é um aproveitamento de ambas as vertentes sob o ponto de vista do humor estridente, com alguns elementos do ótimo Jovens adultos, em que Jason Reitman mostrava uma escritora, interpretada por Charlize Theron, voltando à sua cidade depois de se tornar ghost-writer de livros infantojuvenis.

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Vida de adulto pode mesmo se tornar um filme exagerado, mas não é possível ficar indiferente à maneira como ele vai combinando os personagens de forma despretensiosa e aparentemente sem conflitos quando na verdade reserva uma visão corrosiva sobre aquilo que pretensamente é visto como cult ou respeitável – e a personagem central, ao mesmo tempo em que não se sente com talento, sempre agindo de acordo com clichês de comportamento (como em outro momento no qual Amy tenta seduzir Billings), sendo, por outro lado, estranhamente, uma figura original.  Sua amizade com Rubia, em grande atuação de Riesco, não chega a ser explorada da maneira que poderia, mas Evan Peters, como seu amigo de loja Alex, consegue, ao mesmo tempo, soar como uma inclinação a um romance verdadeiro. Peters, para isso, é bastante convincente, situado entre o interesse por Amy e uma insegurança em demonstrá-lo. No entanto, é a desenvoltura da relação entre os personagens de Amy e Billings que dá o tom do filme e, consequentemente, as atuações de Roberts e Cusack. Há pelo menos duas sequências excelentes (em que Cusack é plenamente confrontado com a falta de discrição de Amy), quando o elenco se mostra efetivo.
Nesse sentido, o que, no início, parecia apenas uma sátira se transforma em um filme mais interessante do que se previa, estranhamente emocional, beirando o limite do seu tema, por causa não apenas de Roberts e Cusack, mas por seu diretor Scott Coffey (que fez Ellie Parker, com Naomi Watts). Coffey foi ator nos anos 80 e trabalhou, de forma quase invisível, como um dos coelhos de Império dos sonhos, de David Lynch, e sentimos que aqui ele se coloca como autor. É ele o responsável pelos maiores acertos de Vida de adulto, no qual existe mais do que pede para ser visto: sua alegria desmedida, que não se leva a sério, parece esconder tanto a despedida de toda uma estação na vida dessa personagem quanto os idos de uma geração, que perdeu a inocência, além do fato de que não é possível se esconder do seu destino mesmo sem ter ao lado Rilke, Octavio Paz ou Billings. Quando as luzes de uma discoteca se acendem e Amy parece descobrir o mundo adulto, ao som de “Repatriated”, há uma estranha sensação de que a personagem não se sentiria mais tão excluída do mundo se participasse de uma antologia apenas como fonte de diversão e afastamento de tudo, e o espectador embarca com ela para uma jornada desconhecida. Gostando-se ou não de Vida de adulto, ele proporciona essa jornada com grande autenticidade.

Adult world, EUA, 2013 Diretor: Scott Coffey Elenco: Emma Roberts, John Cusack, Evan Peters, Armando Riesco, Shannon Woodward, Cloris Leachman Roteiro: Andy Cochran Fotografia: Gina Hirsch, James Laxton Trilha Sonora: BC Smith Produção: Alex Goldstone, Joy Gorman, Justin Nappi, Manu Gargi Duração: 97 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Anonymous Content / Treehouse Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

Além da linha vermelha (1998)

Por André Dick

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Filme de Terrence Malick com fotografia perfeita de John Toll (responsável pelo design visual de Cloud Atlas) e elenco grandioso, Além da linha vermelha, baseado em obra de James Jones, é o retrato de um momento da Segunda Guerra Mundial, desta vez do avanço de uma tropa – Companhia C – à Batalha de Guadalcanal, em 1942, para atacar os japoneses, mas aqui sob o ponto de vista existencial, ou seja, o personagem principal, Witt (Jim Caviezel) está longe, mas não tira seu pensamento do éden da Melanésia. O interessante é como num filme de guerra Malick consegue fotografar mínimos detalhes da natureza com tanta atenção. Para ele, mais ainda do que em seus filmes iniciais, dos anos 1970, a natureza é uma metáfora da própria existência humana.
Se Malick fez um drama de guerra filosófico, retomando uma trajetória de direção interrompida vinte anos antes, com Dias de paraíso, no mesmo ano Steven Spielberg empregou a meia hora mais impactante de sua carreira no início de O resgate do soldado Ryan, que inicia com a chegada de tropas americanas à praia francesa de Omaha, defendida por alemães, com imagens espetaculares e realistas, em que Tom Hanks interpreta o líder do pelotão. Depois dessa carnificina, ele é incumbido, com alguns de seus homens, a encontrar o último filho sobrevivente da família Ryan, para que não se abata uma tragédia completa sobre ela.
Basicamente, o filme relata essa busca. Mas Spielberg, com seu habitual talento para o manejo das câmeras e a fotografia cuidada, transforma este num dos filmes de guerra mais impressionantes, graças, também, à interpretação de todo o elenco, a começar pela de Hanks, que constrói um coronel com problemas físicos na mão e quer esconder isso da tropa. Ao final, quando chegam a uma cidadezinha em ruínas, preparam uma ofensiva contra nazistas que estão para invadi-la. É aí que Spielberg melhor mostra seu talento, num verdadeiro tour de force de som e efeitos especiais.

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Além da linha vermelha.Cena 4

O resgate do soldado Ryan constitui-se num filme de guerra com peso nostálgico e histórico (a cena inicial se completa na parte final), com uma certa dureza no que se refere à composição dos personagens – afinal, lida com um cenário de guerra –, mas que acaba preenchendo algumas lacunas com uma emoção calculada, rara em Spielberg, mais propenso a extravasar, o que ele faz com todos os tons permitidos a um diretor conhecido pelo olhar que tem sobre a ação. Diferente de Malick, que consegue, em Além da linha vermelha, por meio da guerra, retratar, de maneira mais densa e menos nebulosa, o que dela não faz parte. Os filmes, em sua abertura, se parecem, mas cada diretor toma suas escolhas diante das próprias características.
Malick é um cineasta que emprega os diálogos e os mínimos detalhes como o centro da ação. Desse modo, a preocupação do primeiro sargento Welsh (Sean Penn) em tirar Witt do Pacífico, da Melanésia, para reintegrá-lo no exército e guiá-lo para a ilha onde se dará o combate derradeiro, na Colina 210, peça-chave da artilharia japonesa, não passa de uma tentativa de convencer a si mesmo de que a guerra vale a pena (e certamente, ele sabe, não vale). O olhar do sargento interpretado por Hanks se direciona para a morte, e é dela que os personagens querem escapar em Além da linha vermelha, sem necessariamente conseguir.

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A percepção de Malick atravessa não apenas as paisagens, como o elenco, com uma série de astros em pontas (ficaram conhecidos os cortes que Malick impôs a atores consagrados naquele período, como Billy Bob Thornton). De maneira geral, a amplitude do cinema de Malick converge para um lugar filosófica, em que o amor e o vínculo entre as pessoas e seres humanos se desenham a distância ou em situações-limite. Embora haja sequências inteiras que remetem Além da linha vermelha a um gênero de guerra, parece que mais ainda Malick deseja uma filosofia das relações. O Tenente-Coronel Tall (Nick Nolte) fala com o general Quintard (John Travolta) – em momentos nos quais Anderson certamente se inspirou para compor O mestre –, mas a atenção de Malick está voltada para a paisagem. Do mesmo modo, Jack Bell (Ben Chaplin), está interessado mais em lembrar de sua mulher, Marty (Miranda Otto), num balanço e paisagens que seriam intensificadas em A árvore da vida e To the wonder. Temos ainda o capitão James Staros (Elias Koteas), o cabo Fife (Adrien Brody), o soldado Jack Bell (Ben Chaplin), o capitão Charles Bosche (George Clooney), o capitão John Gaff (John Cusack), o sargento Keck (Woody Harrelson), o sargento Maynard Storm (John C. Reilly) e o sargento McCron (John Savage), entre outros.
Todos os personagens têm em algum momento ligação entre si, mas Malick está certamente mais interessado no retrato que faz de imagens idílicas, do capim alto em que os soldados rastejam para atingir a colina inimiga, o cenário paradisíaco, com crocodilos, galhos em rios, ilhas minúsculas perdidas no meio do mar e árvores altas, que, no entanto, reservam uma sequência de tiros incalculável. A morte está sempre à espreita, mas, para esses personagens, a morte não significa exatamente o afastamento da natureza idílica? Para Malick, há uma presença divina em meio a um cenário caótico de guerra, e quando os homens precisam se deparar com algum corpo entregue ao verde das colinas tentam desviar seu olhar para o vento e os pássaros, ou para as lembranças, sempre ligadas a algum elemento da natureza: os raios de sol e as cortinas esvoaçantes de uma pintura de Andrew Wyeth. Não se trata, para Malick, de estetizar a guerra, mas de mostrar a solidão dela e o adensamento de trilhas solitárias em meio às árvores de uma mata fechada.

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Além da linha vermelha.Cena 1Se Coppola colocou quilos de napalm para explodir em Apocalypse now e Kubrick transformou a guerra num centro repleto de soldados sob o comando de prometer o cumprimento da morte em nome da corporação, Malick contorna todos com o simples olhar de dentro da guerra e sua reflexão, caracterizada mais pelo olhar estupefato do que pela certeza. A cada tomada de atitude em relação ao combate e cada acampamento montado, Malick está tratando da impermanência da humanidade e do modo como ela se adapta à loucura, mas apenas a controla por meio de lembranças, até que consiga aceitar, finalmente, que não passa de uma pequena ilha solitária na corrente e contra um horizonte não necessariamente aberto. O passado é tão presente quanto a invasão a Guadalcanal, pois é preciso uma justificativa, mesmo que mínima, para que se tenha chegado ali com vida. Malick não consegue retribuir esta justificativa para o espectador diante do peso dramático dos componentes que seleciona ao longo de sua obra, e não consegue se comprometer com o vazio que passa a existir depois da derrocada de um grupo de combatentes. Há um sentido forte de afastamento em Além da linha vermelha como havia sobretudo em Dias de paraíso, e é ele que consegue, ao mesmo tempo, aproximar os personagens de um Éden almejado.

In the red line, EUA, 1998 Diretor: Terrence Malick Elenco: Nick Nolte, Jim Caviezel, Sean Penn, Elias Koteas, Ben Chaplin, Dash Mihok, John Cusack, Adrien Brody, John C. Reilly, Woody Harrelson, Miranda Otto, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, Nick Stahl, Thomas Jane, John Savage, Will Wallace, John Dee Smith, Kirk Acevedo, Penelope Allen, Kazuyoshi Sakai, Masayuki Shida, Hiroya Sugisaki, Kouji Suzuki, Tomohiro Tanji, Minoru Toyoshima, Terutake Tsuji, Jimmy Xihite, Yasuomi Yoshino, John Augwata Produção: Robert Michael Geisler, Grant Hill, John Roberdeau Roteiro: Terrence Malick Fotografia: John Toll Trilha Sonora: Hans Zimmer Duração: 170 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Fox 2000 Pictures / Phoenix Pictures / Geisler-Roberdeau

Cotação 5 estrelas