Uma vida oculta (2019)

Por André Dick

O cineasta Terrence Malick teve um hiato de vinte anos no cinema entre Cinzas no paraíso e Além da linha vermelha. A partir de 2011, mais exatamente depois do lançamento de A árvore da vida, ele se tornou um dos cineastas que mais lançou novas obras na década passada: Amor pleno, Cavaleiro de copas, Voyage of time e De canção em canção compuseram os novos momentos centrados no século XXI, mostrando casais em união ou em separação sob diferentes nuances. Embora esses filmes tenham sido recebidos com certa desconfiança, acredito que sejam, ao lado de A árvore da vida, o grande momento da carreira de Malick. Ele praticamente recriou, ao lado de Emmanuel Lubezki, a maneira de filmar e desenvolver uma narrativa no cinema contemporâneo, sempre com edições antilineares.

Embora seja mais linear do que os anteriores, Uma vida oculta partilha do mesmo estilo. Sua narrativa se localiza na Áustria, em 1939, na vila de St. Radegund. Nela, o camponês Franz Jägerstätter (August Diehl) vive com a esposa Franziska (Fani) (Valerie Pachner) ao lado dos filhos e de sua mãe (Karin Neuhäuser), numa espécie de paraíso sobre a terra, como acontecia em seu segundo filme, de 1978. Também vive com eles a cunhada, Resie (Maria Simon). Nisso, há brincadeiras com as crianças, aproveitando cada estação, enquanto trabalham no campo. O problema é quando a Segunda Guerra Mundial se aproxima com o domínio nazista de Hitler, e Franz é recrutado para treinamento. Extremamente religioso, ele frequenta a igreja, onde tenta se aconselhar com o padre Ferdinand Fürthauer (Tobias Moretti)  e tem discussões com o prefeito (Karl Markovics) sobre a verdadeira intenção do regime de Adolf Hitler. A questão mais grave, para ele, é ter de jurar lealdade ao ditador, que considera uma figura maléfica, ao contrário de muitos dos moradores de Radegund, quando passam a seguir os cumprimentos do nazismo. A palavra e o juramento estão em questão no filme de Malick mais do que em qualquer outro: como pode o indivíduo prestar lealdade a um regime que considera como o contrário do que acredita? Tudo é levado a um ponto extremo, para que o espectador possa raciocinar sobre as premissas de Franz.

Com uma trilha sonora emocional e discreta de James Newton Howard, principalmente a partitura para o casal central, e uma fotografia extraordinária de Jörg Widmer, substituindo Lubezki, mas selecionando algumas características dele (o movimento, o realismo da iluminação, os closes, a sensação de o espectador caminhar com os personagens), Uma vida oculta traz os mesmos elementos do restante da obra de Malick: trata-se de uma jornada de um sujeito tentando descobrir seu mais profundo sentimento, que pode lhe dar como resposta dúvidas que tem sobre a vida – ou simplesmente aumentá-las. É a mesma jornada dos personagens de filmes de época de Malick quanto nos contemporâneos, como o pesquisador feito por Ben Affleck em Amor pleno, ou o roteirista interpretado por Christian Bale em Cavaleiro de copas, ou os casais envolvidos com a música de De canção em canção. Com o acréscimo, aqui, de se tratar de uma história real e situada num momento especialmente trágico para a humanidade.

Se nos filmes mais recentes Malick focava a vida urbana no interior dos Estados Unidos, ou parte da vida rural, de modo passageiro, aqui ele lida com um universo de camponeses de maneira muito efetiva. O espectador parece se inserir no cenário montado por ele nas montanhas austríacas: tudo é arquitetado para que a atmosfera ganhe a tela de maneira abrangente. Os campos de trigo, as plantações, os animais (porcos, galinhas), os moinhos, a igreja do vilarejo e o carteiro que passa cruzando a vila desempenham uma noção fundamental para se entender a luta subjetiva desse homem. Em muitos momentos, Malick recupera uma espécie de cinema que parecia perdido, aquele, por exemplo, de A árvore dos tamancos ou de Os imigrantes, com uma condução do espectador para lugares inóspitos. Malick define a natureza, a rotina, o cotidiano como diametralmente oposto à ideia de guerra e seu caos e destruição. Isso se dá por meio de analogias de imagens e sua competência a colocar vozes de diálogos sobrepostas sobre cenas das quais já não fazem parte, construindo uma arquitetura delicada e humana, deslocando personagens de lugares nas mesmas conversas.

Mais uma vez, Malick coloca o casal como representação de um pedaço de paraíso na terra que pode ser afetado pelo mal, no caso Hitler. As atuações de Diehl e Pachner são notáveis. Diehl é curiosamente bastante conhecido por sua participação como um nazista que provoca uma confusão numa taverna em Bastardos inglórios, de Tarantino, no qual, diga-se de passagem, está também irretocável. Mesmo tendo poucos diálogos, eles conseguem, por meio do olhar e das ações, demonstrar uma grande e notável persuasão junto ao espectador. Todos os coadjuvantes (inclusive alguns atores que vão aparecendo ao longo da narrativa, a exemplo de Jürgen Prochnow e Bruno Ganz, em sua última obra) são nada menos do que excelentes. A temática religiosa de fundo se mostra de grande diálogo principalmente com Amor pleno, nas caminhadas de Franz com o padre da vila – naquele filme de 2012, o padre era interpretado por Javier Bardem. Também há um diálogo de Franz com um homem que faz pinturas religiosas, também ligado a A árvore da vida e a Amor pleno. Ele diz que sobrevive pintando o sofrimento sem saber o que é sofrer – é uma das linhas mais sensíveis de um filme de Malick e coloca a distinção entre teoria e prática do indivíduo. Mais do que em qualquer outro filme seu, a ideia de como as escolhas de um indivíduo afetam os demais ganha um grande espaço. E, em igual escala, como as crianças representam o futuro.

Por isso, Malick constitui uma obra à parte, na qual os filmes vão dialogando e se completando, talvez funcionando mais para o espectador que os conhece de antemão. Ainda assim, quem vai ao cinema sem conhecer o estilo de Malick se depara com uma obra em que a reconstituição de época é brilhante, desde o design de produção até o figurino, e tudo se encaixa dentro da montagem feita de forma proposital mais embaralhada. Essa montagem vai dando cadência às cenas passadas nas montanhas e aquelas em que Franz enfrenta os homens por causa do seu discurso. As paisagens a céu aberto contrastam com os muros e as celas da prisão. É a presença de uma força divina, a partir desse momento, como na obra em geral de Malick, que se manifesta nos cenários, assim como as narrações lembram confissões sobre a eternidade evocada pelos personagens por meio de suas ações.  A maneira como o diretor entrelaça o fim e o início traz uma comoção particular. Como toda a filmografia recente de Malick, Uma vida oculta é uma obra-prima, particularmente o melhor filme de 2019.

A hidden life, EUA/ALE, 2019 Diretor: Terrence Malick Elenco: August Diehl, Valerie Pachner, Matthias Schoenaerts, Tobias Moretti, Karl Markovics, Bruno Ganz, Jürgen Prochnow Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Jörg Widmer Trilha Sonora: James Newton Howard Produção: Elisabeth Bentley, Dario Bergesio, Grant Hill, Josh Jeter Duração: 174 min. Estúdio: Elizabeth Bay Productions, Aceway, Studio Babelsberg Distribuidora: Fox Searchlight Pictures

 

Cinzas no paraíso (1978)

Por André Dick

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Cinzas no paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Cinzas no paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Cinzas no paraíso é uma obra notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.

A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A casa imensa do local figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Edward Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Cinzas no paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual desperta um diálogo com Hopper, como também o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade. Quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo e antecipa o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não ganha mais espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em toda a sua obra, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Cinzas no paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Duração: 95 min. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

De canção em canção (2017)

Por André Dick

Depois de A árvore da vida, Terrence Malick resolveu partir para um cinema baseado essencialmente na solidão da vida contemporânea, mesmo que busque, como em toda sua filmografia, a formação de casais. Foi assim em Amor pleno, Cavaleiro de copas e agora em De canção em canção. Se em Amor pleno, o personagem central casava com uma europeia e ambos iam morar no Texas edênico de Malick, em Cavaleiro de copas acompanhávamos um roteirista em Hollywood, Rick, que tinha problemas familiares e não conseguia nunca estabelecer ligações afetivas verdadeiras com as mulheres. Em De canção em canção, Malick apresenta quatro personagens centrais, embora o principal pareça ser Faye (Rooney Mara). Ela se apaixona inicialmente por BV (Ryan Gosling), um aspirante a músico igual a ela, bastante promissor, na cena musical do Texas.

Ambos se conhecem numa festa – no qual ela estende o fone de ouvido para BV ouvir a música que está ouvindo – e têm por perto o empresário Cook (Michael Fassbender), que se sente a ameaça, nesse sentido, para um amor que possa existir entre eles. Faye trabalhou desde a adolescência como assistente no escritório de Cook. As ligações entre eles são indefinidas, a não ser quando Cook e BV viajam com Faye para o México, e se subentende que possa haver um relacionamento entre eles – que se manifesta com clareza mais adiante. Cook, no entanto, tem inveja dos dois e parece haver uma separação. Quando ele entra em contato com a garçonete Rhonda (Natalie Portman, nunca tão bem fotografada e com uma atuação do nível de Cavaleiro de copas), junta-se uma figura que irá estabelecer a ligação entre o universo musical solto e uma tentativa de transcendê-lo, com suas frequentes idas à Igreja. Além disso, Rhonda busca a segurança material que Cook pode lhe conceder.

Novamente com fotografia do grande Emmanuel Lubezki, De canção em canção é, de longe, o filme mais difícil, em termos de estrutura, da trajetória de Malick: mesmo que nos anteriores não tivéssemos histórias lineares, o novo Malick se sente realmente um produto experimental da indústria. Quase ignorado em seu lançamento (não arrecadou sequer 450 mil dólares nos Estados Unidos) e desabonado pela crítica, cuja característica é lembrar de filosofia apenas quando escreve sobre filmes do diretor, esse é um cinema que não se preocupa com a recepção. Depois de mostrar um pôster gigante de Arthur Rimbaud na parede da casa de Faye, Malick está mais interessado no “desregramento dos sentidos” que pregava o poeta francês, uma visão simultânea desses personagens e de suas peregrinações pela vida. Rimbaud tem um livro de poemas em prosa chamado Illuminations, no qual registra diversas viagens que fez e Faye inicia dizendo que a ela importa qualquer experiência no lugar de nenhuma. Tudo se sente ao mesmo tempo desencaixado, solto e vinculado. Faye está à procura de um amor, mas não sabe exatamente o que deseja e há um núcleo do filme que trata da traição. Sozinha, procura numa artista francesa, Zoey (Bérénice Marlohe), como Rimbaud (em seu caso, era o poeta Verlaine), uma tentativa de se encontrar consigo mesma. Baseada em um verso do poeta, “Engoli uma notável poção de veneno”, ela diz em determinado momento a BV que Rimbaud esgotou todas as poções.

Embora haja participações do Red Hot Chili Peppers, Patti Smith e Iggy Pop em diferentes momentos, De canção em canção não pretende construir um mosaico musical da vida moderna. Ele pretende mostrar mais como cada existência é governada por dissonantes acordes, que às vezes não seguem a mesma faixa. Mas, como a família musical, a Malick interessa a família em si. Rhonda tem uma relação próxima da mãe (Holly Hunter), assim como Gosling tem da sua (Linda Emond) – e em determinado momento precisa cuidar do pai (Neely Bingham) – e Faye do seu pai (Brady Coleman), todos sem nome próprio, como convém à tentativa de Malick em ser universal. O único que parece sem vínculos familiares é exatamente Cook. Esses personagens entram e saem do filme no mesmo fluxo contínuo da vida sendo revelada. As figuras dos pais eram determinantes em A árvore da vida e Cavaleiro de copas, quando se ausentavam particularmente em Amor pleno. Aqui, como em Cavaleiro de copas, BV troca ideias com um irmão (Tom Sturridge), sobre o pai, que parece ter prejudicado a sua família. Ainda assim, BV é visualizado entrando numa igreja no México, tentando se conectar com um ser superior que possa solucionar suas dúvidas, e é um traço que o aproxima dos personagens de Brad Pitt e Ben Affleck em A árvore da vida e Amor pleno.

Mesmo para um filme de Malick, De canção em canção se mostra surpreendentemente sem um eixo certo: ele não caminha estabelecendo pontos evidentes e sim sensações, como a entrada em determinado momento da personagem Amanda (Cate Blanchett), uma mulher solitária e que vê as pérolas de seu colar se espalharem no chão (e lembre-se que a pérola era um símbolo de Cavaleiro de copas).
Também se percebe que Ryan Gosling fez o filme em diferentes anos: em algumas passagens, ele aparenta estar com o visual de Drive e O lugar onde tudo termina, de seis, sete anos atrás, mais do que o restante do elenco – e comenta-se que Malick iniciou as filmagens de maneira aleatória, gravando concertos diferentes no Texas, e não oferecia nenhum roteiro concreto aos atores. Também confunde o espectador a maneira como a personagem de Faye vai mudando seus cortes de cabelo (no início, Mara parece ter o visual que usa em Millennium, de 2011), mas é como se Malick fosse registrando suas relações com BV e Cook em fases diferentes, talvez até mesmo antes do início dessa história. Ajuda saber que Faye, além de tentar carreira musical, “mostra apartamentos e passeia com cães”, como diz em determinado momento, por isso muitas vezes as locações mudam sem explicação.

Malick, como em Cavaleiro de copas e Amor pleno, usa a arquitetura das casas para falar dos personagens, cria analogias entre pássaros na natureza e de madeira pendurados no teto da sala, distribui uma porção de cenários em que os personagens se sentem ou mais solitários ou em busca de companhia: rios, piscinas de casas, estacionamentos, casas onde moram ou de suas famílias, o contraste entre interior e cidade, a tranquilidade da varanda e o caos dos shows. Todo o cuidado cênico se manifesta em cada sequência, e, além da referência a Rimbaud, em outro momento Malick filma uma parede com a palavra “Howl” gravada – o título do famoso poema de Allen Ginsberg da geração beat. Malick, aliás, faz algumas breves menções à geração beat, quando Cook e BV viajam com Faye para o México, com a mesma busca pela contracultura (e quando Cook se entrega finalmente aos experimentos alucinógenos já temos a outra face desse caminho), embora atenuada por imagens dos personagens ajudando pessoas nas ruas. Do mesmo modo, ele se entrega a uma viagem pessoal, mesmo sendo casado. Cook representa uma espécie de ameaça aos demais: ele personifica algo próximo da tentação, quando tenta separar Faye de BV, sugerindo um contrato de gravadora a ela, e oferece um cogumelo a Rhonda envolto em mel, por exemplo, ou quando usa sua piscina para festas particulares. Rhonda gostaria de ser professora infantil e, quando dialoga com uma garota de programa (Christin Sawyer Davis) e esta lhe fala que também gostaria de ser professora, parece que a personagem tem a consciência sobre o lugar para o qual Cook vai levá-la.

Temos os personagens novamente à procura de afeto: Malick utiliza sua obsessão em filmar o corpo humano em momentos descompromissados e atrativos, com narrações em “voice over” (muito bem utilizadas) que alternam a descrição de cada personagem para o que estão sentindo. Como em Cavaleiro de copas, Malick não está interessado exatamente pela indústria que serve de pano de fundo para tais personagens e seus comportamentos: tudo é motivo para vislumbrar fragmentos da tentativa de pessoas diferentes existirem. Trata sobretudo de escolhas sendo feitas, de como as pessoas lidam com suas perspectivas. Particularmente exitosa é a referência muito discreta de Malick ao filme Cada um vive como quer, com Jack Nicholson, de 1970. Lá, Nicholson interpretava um ex-pianista com problemas de relacionamento com o pai enfermo, justamente o que acontece com o personagem BV, feito por Gosling. Mara, para isso, tem uma contribuição notável para o filme, assim como Gosling, com quem mais contracena e se mostra em determinadas cenas um ator mais versátil ainda do que se mostrou em Drive e La La Land. Portman é tremendamente humana, numa atuação ao nível de Cisne negro e Jackie, e Fassbender, por sua vez, retrata o próprio vazio que parece cercá-lo. Um destaque também para o elenco coadjuvante de pais ou mães desses personagens, notável, mesmo com pouco tempo de atuação, e a inspirada Blanchett, embora com pouco roteiro (Christian Bale teria gravado cenas, mas foram descartadas, e Val Kilmer aparece brevemente como um roqueiro, lembrando um Jim Morrison que pretende integrar o Sonic Youth).

É notável que, mais do que em Amor pleno e Cavaleiro de copas, os atores se sintam numa espécie de jazz session de atuação, fazendo gestos e tendo comportamentos abertos para a história, sempre movimentando as peças para todos os lados possíveis. Percebe-se, também, como, desde A árvore da vida, Malick registra algumas cenas como parte de uma ficção científica cotidiana: quando Faye, BV e Cook voltam do México, Malick filma os dois últimos flutuando no jato, como astronautas; os estacionamentos vazios que Malick apresenta parecem pertencer a uma paisagem pós-apocalíptica, na qual todos estariam sozinhos; as montanhas onde Faye e BV caminham lembram aquelas de Cavaleiro de copas, afastadas de tudo. De canção em canção requer novas visualizações para se obter mais das camadas que Malick entrega. Talvez seja melhor assisti-lo como um conjunto de peças que vão se encaixando mais por meio da sensação visual e dos temas enfocados e pelas atuações, não se dando tanta importância à ordem em que isso acontece: melhor seria acompanhar os trajetos indefinidos dos pássaros no céu, mostrados ao longo de todo o filme, em momentos diferentes. Como a vida, Malick não esclarece onde as relações começam ou terminam: é a própria viagem que se faz o importante. O que se tem é mais um dos grandes momentos do cinema, uma amostra de como tornar um filme numa verdadeira experiência, muito em razão novamente da arte conjunta de Malick e Lubezki. De canção em canção é uma obra-prima.

Song to song, EUA, 2017 Diretor: Terrence Malick Elenco: Rooney Mara, Ryan Gosling, Michael Fassbender, Natalie Portman, Cate Blanchett, Holly Hunter, Bérénice Marlohe, Val Kilmer, Lykke Li, Olivia Grace Applegate, Dana Falconberry, Linda Emond, Iggy Pop, Tom Sturridge, Neely Bingham, Brady Coleman Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Produção: Ken Kao, Sarah Green Duração: 129 min. Distribuidora: Supo Mungam Films Estúdio: Buckeye Pictures / FilmNation Entertainment / Waypoint Entertainment

Cavaleiro de copas (2015)

Por André Dick

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É cada vez mais difícil se separar quem é admirador de Terrence Malick e por isso gosta de seus filmes de quem se afasta totalmente deles para tentar examinar cada obra sua como uma peça única. Parece ser esta a questão: nenhum filme de Malick responde por si só. Ele é como se fosse uma nova peça que explicasse melhor escolhas dos filmes anteriores, sobretudo A árvore da vida e Amor pleno, com uma autoconsciência dispersa. Em Cavaleiro de copas, que foi, de forma surpreendente, lançado pela Netflix, sem passar pelos cinemas brasileiros (o que mostra o estado atual de coisas, em que comédias sem valor estreiam com divulgações especiais), ele mostra o universo de Hollywood por meio de um roteirista, Rick (Christian Bale), e utiliza a fotografia de Emmanuel Lubezki para um panorama detalhado e desesperançoso da cidade de Los Angeles. Onde Drive, de Refn, é fantasioso, apesar de violento, Cavaleiro de copas ingressa numa espécie de personagens sem um direcionamento claro, inclusive todos aqueles que se atravessam no caminho de Rick, como o pai, Joseph (Brian Dennehy), e o irmão, Barry (Wes Bentley).

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Esta parte dialoga muito com Amor pleno e a história pessoal de Malick, já exposta de maneira clara em A árvore da vida: sua culpa em relação à morte do irmão e o peso do pai sobre seus ombros. É a matiz dramática mais esclarecida de Cavaleiro de copas, enquanto a vida entre festas e caminhadas na praia de Rick não sossega nem com a presença de Helen (Freida Pinto), Della (Imogen Poots), Karen (Teresa Palmer), Nancy (Cate Blanchett) e Elizabeth (Natalie Portman). Que o elenco feminino é fantástico em termos de atuação, principalmente Blanchett e Teresa Palmer, não é novidade na trajetória de Malick, mas quem realmente oferece uma grande atuação, depois de anos, é Dennehy, como o pai do personagem principal, apesar de sua brevidade na narrativa.

Se havia algum filme anterior que encantava com o glamour de Hollywood, com exceção de Cidade dos sonhos, Cavaleiro de copas dispara na direção de que este universo está previamente condenado, pela figura de Rick e sua trajetória vaga e sem nenhuma possibilidade de encontro, pelo menos aparente. É notável como, por meio, novamente, de pensamentos soltos, e um fio de ligação muito tênue entre os personagens, que Malick mostre um personagem tão solitário e trágico como o de Rick, e Bale faz por merecer uma interpretação quase sem falas e ainda assim impressionante.

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O misto entre a infância – logo no início – e as tentativas de Rick em reencontrá-la, seja por meio de uma visita a um aquário gigantesco, seja pelos encontros conflituosos com o pai (no qual visualiza o temor de também ter um filho), se mostra principalmente por suas caminhadas pela praia, à noite ou de dia. Há um sentido cósmico e religioso como no personagem de Affleck em Amor pleno, entremeado aqui por cartas e símbolos do tarô (e lances de cultura oriental). De qualquer modo, Cavaleiro de copas se sente ainda com uma narrativa mais fina do que a de Amor pleno, no sentido de que deixa ao espectador amarrar totalmente as pontas, ao som de uma trilha perturbadora e bela de Hanan Townshend.

Nisso, há o visual situado entre um presente amargamente solitário e um futuro que aparenta calmaria no tamanho imponente das casas envidraçadas e nos enormes salões e casas pelas quais Rick passa (inclusive pela mansão de Tonio, o alter ego de Antonio Banderas). Este personagem pouco tem daqueles que Antonioni mostrava em seu cinema, ou de qualquer metalinguagem: ele é simplesmente um roteirista que não vê razão em nada ao redor, mas procura, de fato, descobrir algo que o faça emergir. Malick não está oferecendo nenhuma resposta quando mostra esse personagem entre paisagens urbanas e paisagens naturais, assim como num carro pela estrada ( e a direção de arte do habitual colaborador de Malick, Jack Fisk, é extraordinária).

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Há cenas absolutamente belas, como aquelas em que mostra Portman e Bale indo a uma galeria de arte e depois a uma plataforma marítima. Malick, por outro lado, joga essas belas imagens com uma sede de repetição constituindo a rotina exasperante de Rick, como se a novidade só pudesse ser oferecida por um terremoto assustador ou por idas a clubes noturnos de mulheres (em certos momentos, ele lembra o personagem de Sam Shepard em Estrela solitária, de Wim Wenders).

Malick, ao transformar seu filme num certo momento numa sessão de fotografias, faz uma crítica não apenas a seu universo como a sua obra, que precisa dessa beleza aparentemente atordoante para poder se representar, fora a rotina que carrega em cada palmo da história. Nessa rotina Malick, ingressa símbolos enigmáticos e divinos, também representados pela figura do Fr. Zeitlinger (Armin Mueller-Stahl).

A montagem elíptica e mais lenta do que a de Amor pleno, feita a oito mãos (A.J. Edwards, Keith Fraase, Geoffrey Richman e Mark Yoshikawa), concede à fotografia de Lubezki e ao roteiro de Malick uma espécie de segunda camada: as cenas de água, recorrentes, parecem contrastar com os edifícios e as estradas com o asfalto rachado pelo sol, assim como parecem indicar o nascimento dos personagens. Depois de receber os Oscars por Gravidade, Birdman e O regresso, Lubezki revela mais uma vez seu poder de visualizar o universo de maneira irretocável e criar quase um à parte, dentro do cotidiano a que estamos acostumados.

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É muito comum se dizer que não há nada verdadeiramente humano nos experimentos mais recentes de Malick, apenas uma sequência de imagens belas. Isso certamente não corresponde à verdade, e o que Cavaleiro de copas mais apresenta é certamente uma sensação vaga referente a todos os personagens assim como o cenário que os rodeia: tudo é tão imenso que parece impalpável e do mesmo jeito o espectador se sente em relação às suas ações, como se elas fizessem parte de uma rotina pré-programada e sem novidades. Desde o início, numa narração em voice over, o personagem busca o sentido da vida como, numa história infantil, um príncipe busca sua “pérola”. Esta pérola pode ser encontrada em vários rostos, mas Rick não parece querer permanecer com eles, assim como o personagem de Affleck no filme anterior.

Mas, ao contrário de A árvore da vida  e Amor pleno, este filme parece menos esperançoso no sentido de que Malick empresta a esta palavra principalmente desde Dias de paraíso, ou seja, ele concede uma determinada abertura ao final que parece manter certas dúvidas. Há um sentimento constante de perda e de isolamento em relação ao personagem de Rick e, se não soubesse que Malick é um cineasta que costuma se esconder de eventos, eu poderia imaginar que é um alter ego dele. Eis uma Hollywood com todos os brilhos e luz intensa do sol, mas, ao mesmo tempo, sem brilhos ou sol, pois a vemos apresentada pelos olhos de Rick. É um dos filmes definitivos sobre a cidade, sobre o que ela esconde (principalmente) ou revela, da maneira como apresenta seus espaços e estúdios a céu aberto, em meio a rochedos que poderiam capturar algo da velha Hollywood (do faroeste nostálgico) e, no entanto, só trazem um pouco mais de indefinição para o personagem central.

 

Knight of cups, EUA, 2016 Diretor: Terrence Malick Elenco: Christian Bale, Brian Dennehy, Wes Bentley, Cate Blanchett, Natalie Portman, Imogen Poots, Teresa Palmer, Isabel Lucas, Freida Pinto, Antonio Banderas, Nick Offerman, Jason Clarke, Joel Kinnaman, Kevin Corrigan, Cherry Jones, Armin Mueller-Stahl Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Hanan Townshend Produção: Nicolas Gonda, Sarah Green, Ken Kao Duração: 118 min. Distribuidora: Broad Green Pictures

 

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Amor pleno (2012)

Por André Dick

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O diretor Terrence Malick sempre foi conhecido tanto pelo talento quanto pela realização de poucos filmes. Entre Dias de paraíso e Além da linha vermelha, são duas décadas de distância. No entanto,  depois de Além da linha vermelha, de 1998, ele já lançou O novo mundo, A árvore da vida e agora Amor pleno (título no Brasil para To the wonder, figurando ao lado de A viagem para Cloud Atlas como um distanciamento daquilo que corresponde ao filme). Recepcionado com a habitual polêmica, por fazer um cinema que não deixa o espectador indiferente, Amor pleno consegue radicalizar as propostas de seus dois principais filmes, Dias de paraíso e A árvore da vida. Nesse sentido, quem não aprecia esses filmes, possivelmente vai desgostar deste novo. Com todos os elementos próprios da trajetória de Malick, eles retratam a relação indistinta do ser humano com o cósmico e o cenário que lembra uma espécie de Éden perdido sempre é revitalizado por um discurso que procura aproximar a solidão e o discurso religioso. Mas não se trata exatamente de um discurso com o objetivo de convencer a respeito de uma determinada religião, mesmo que suas menções, em A árvore da vida e Amor pleno, sejam ao cristianismo, mas sobretudo a busca pela ligação com o outro. Todos os personagens, na pequena filmografia de Malick, a perseguem. Se O novo mundo me parece o filme até a data menos interessante do diretor, não se pode dizer que ele não apresenta seu estilo. Eis o que mais possui, na superfície, Amor pleno: com a fotografia de Emmanuel Lubezki e a trilha de Hanan Townshend, entre a serenidade e a opressão (baseando-se diretamente naquela que Alexandre Desplat compôs para A árvore da vida), todos os elementos caracterizam este como um filme de Malick. Às vezes, podemos estar diante de imagens excessivamente parecidas com Dias de paraíso e A árvore da vida, mas Amor pleno contém uma espécie de progressão em silêncio que esses filmes, apesar de buscarem, não realizam completamente. Amor pleno parece menor, por exemplo, do que A árvore da vida, mas guarda construções mais arriscadas.

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Trata-se de uma espécie de escritura poética – ou, dependendo do ponto de vista, sagrada – da francesa Marina (Olga Kurylenko, fugindo à impressão deixada por Oblivion) para aquele que vislumbra como seu amor, Neil (Ben Affleck), um inspetor ambiental (daqui em diante, spoilers). Ela casou-se muito cedo e encontra esse amor quando já tem uma filha, Tatiana (Tatiana Chiline). Depois de andarem pela belíssima abadia do Monte Saint-Michel (onde ela escreve “Subi os degraus para a maravilha”), lugar histórico, na Normandia, de passearem pelo Jardin du Luxembourg – com uma paisagem quase sempre em névoa, europeia –, e se divertirem dentro de um metrô, Marina acompanha Neil na volta para Oklahoma, no interior dos Estados Unidos. Suas primeiras impressões estrangeiras apresentam um país honesto e limpo – vitais as passagens por um desfile de homens vestidos de caubói e um campo de universidade, ou pelo campo de futebol americano, onde Tatiana vê líderes de torcida ensaiando –, com o céu sempre aberto, e Malick consegue filmar algumas paisagens de maneira notável, como a de um posto de gasolina noturno ou das quadras abertas onde eles vão morar. Estas paisagens quase intocadas parecem esconder, como descobre Neil, em seu trabalho como fiscal de meio ambiente, resíduos tóxicos, e Malick sutilmente retrata a presença deles como uma espécie de serpente que habita o paraíso – ou o “novo mundo”. Esse paraíso é apenas aparente. Entre abraços e olhares, no chão da sala ou do quarto, perto das cortinas (em imagens que dialogam diretamente com aquelas da família O’Brien, de A árvore da vida), o casal, a princípio, vive um idílio, com Neil, que começa a tratar Tatiana como sua filha. Em idas ao supermercado, Tatiana pressiona Neil a casar com a mãe – o casamento como a embalagem de consumo româtico. O peso da presença delas é evidente nele. Para tentar diminuir esse panorama, a personagem de Marina, como outros personagens da filmografia de Malick, tem uma ligação com a música. Se o menino O’Brien que causava ciúme no irmão mais velho por tocar violão e ser mais próximo do pai, pianista, em A árvore da vida, e Holly, em Terra de ninguém, era proibida de ver Kit pelo pai, sendo colocada em aulas de música, aqui Marina tenta ser uma espécie de bailarina: ela tanto toca o parapeito da janela com sapatilhas da filha como dança ao longo do supermercado aonde vai com Neil e a filha.

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Em determinado momento, surge um antigo amor de Jane (Rachel McAdams, num papel discreto, mas nunca tão bem fotografada), dona de um rancho semifalido, dialogando diretamente com o fazendeiro de Dias de paraíso e uma espécie de retrato contemporâneo dele. Ao mesmo tempo, temos o Padre Quintana (Javier Bardem), cuja igreja o casal frequenta e visita as comunidades periféricas da região, e para quem o casamento pode trazer um encanto que não se encontra nas demais relações. Todas essas figuras, numa leitura a princípio apressada, parecem desconectadas. Mas, quando Malick aprofunda os personagens (é certo que quase sem diálogos), vemos que todos estão se debatendo entre assumir um compromisso ou optar pela liberdade, e que quem parece enclausarado não necessariamente é diferente daquele que parece viver com liberdade, com janelas de vidro com vista ampla para fora, jardins imensos e planícies intermináveis (veja-se o momento em que Neil e Marina se casam no tribunal, enquanto homens assinam sua prisão). Todos, na verdade, escolhem maneiras de criar vínculos, ou, nos momentos de angústia e desespero, e falta de opção, se aprisionar (por isso, a visita do Padre às famílias e os prisioneiros). Inevitável lembrar da cena em que o Padre caminha em meio a familiares depois de um casamento, e lhe é oferecido o “dom da alegria”, por ser muito triste, ao que ele responde que é porque não sai muito. Neil também não sabe se gosta de Marina, e ambos frequentam a igreja de Quintana, que, a partir de determinado momento, não sabe se acredita em Deus. Paralelamente, Malick traça essa relação entre o casal (e os sentimentos de vínculo, luxúria, pecado) com as dúvidas existenciais do padre, vital para se entender a busca de cada um. Sem saberem ao certo qual o sentimento que possuem um pelo outro, Neil e Marina frequentam a igreja do Padre Quintana, mas organizam seus compromissos formais longe dela.
Quintana deseja receber os fluxos de luz pelos vitrais da igreja, basicamente idênticos àquelas de A árvore da vida – quando parece que estamos, na realidade, assistindo a uma espécie de continuação não anunciada. É de se pensar que desde A árvore da vida Malick já queria conduzir os sentimentos de seus personagens por meio da arquitetura. A arquitetura, tanto de A árvore da vida quanto de Amor pleno, é moderna, com ventilações, raios de luz entrando. Não se trata simplesmente de Malick querer mostrar vitrais de igreja, e sim de mostrar como esse ambiente de busca da religiosidade não se contrapõe àqueles cenários que parecem apenas rotineiros. Para Malick, todo o ambiente reserva um espaço para a psicologia, e é surpreendente como Amor pleno recupera imagens da infância, de ruas ainda sendo construídas, com terrenos baldios, e o sol forte da manhã sem nenhum bloqueio de edifícios, assim como as áreas rochosas e os animais num campo guardam alguma ligação com a parte inicial de 2001, de Kubrick. E também estabelece uma ligação com o que Malick considera divino. Se visto superficialmente, Amor pleno parece apenas uma elegia a cenários belos; se visto com densidade, é possível perceber um vislumbre de melancolia em cada encontro ou desencontro desenhado neles, também pela fotografia irretocável de Lubezki.

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Não necessariamente isso irá iluminar quando os personagens são fechados. Os quartos podem anunciar tanto o bem-estar de um relacionamento quanto a distância entre pessoas que parecem se gostar, mas não conseguem assumir esse vínculo afetivo. E as salas reservam tanto a aproximação entre alguém que não sabe se deseja se casar e ter filhos quanto o padre que tenta fugir do mundo externo – dos junkies que o procuram. No entanto, Malick deixa quase tudo subentendido, ou revela apenas por meio de gestos e ações ligeiras dos personagens, o que já se anunciava em A árvore da vida. Esses personagens, indecisos em suas ações, só poderiam  ser estrangeiros, seja onde estiverem. Se o padre é um estrangeiro tentando dissipar a miséria, Marina prefere um lugar onde nada parece acontecer aos metrôs e à movimentação intensa de Paris, enquanto Neil está deslocado sempre de seu posicionamento, pois não consegue comprovar sua ligação com as amantes. Mesmo uma réplica da Estátua da Liberdade pode ser encontrada durante a caminhada pelo Jardin du Luxembourg, em Paris.
Outra passagem em que se desenha esta sensação estrangeira é aquela em que Marina conversa com Anna (Romina Mondello), sua amiga italiana, e esta diz que na cidade onde ela mora não acontece nada – jogando, por exemplo, a bolsa de Marina num canteiro e dizendo que, quando elas voltarem ali, a bolsa a estará esperando. Estamos num universo contemporâneo, mas Malick ainda visualiza uma espécie de Éden intocado, como aquele que vemos em Dias de paraíso, O novo mundo e A árvore da vida, antes da passagem pela morte.
Esta propriedade, em Malick, de cada personagem ser estrangeiro, mesmo num ambiente familiar ou ainda intocado, conduz sempre suas narrativas a um espaço de amplitude. Temos, então, figuras da França (Marina e sua filha), da Espanha (o Padre Quintana), da Itália (a amiga de Marina), dos Estados Unidos (Neil e Jane) – e Malick utiliza línguas diferentes em seu filme para revelar, ao que parece, não apenas uma Babel pessoal, mas de que a linguagem a ser analisada por ele é universal.
Amor pleno é o primeiro filme de Malick situado totalmente nos dias atuais. Em Terra de ninguém, visualizava o casal transviado nos anos 50; em Dias de paraíso, as fazendas do início do século XX dos Estados Unidos; em Além da linha vermelha, a II Guerra Mundial; em O novo mundo, a colonização de ingleses na América; e em A árvore da vida uma família entre os anos 50 e possivelmente os anos 70. Isso concede a Malick um espaço para trabalhar outras formas de relação entre as pessoas, como o contato entre Marina, morando em Oklahoma, e a filha, morando na Europa pela internet, ou a derrocada da fazenda de Jane, já quase vazia e em ruínas.

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E não por acaso, nesse sentido, o cenário da Normandia – ao mesmo tempo medieval e moderno – se reproduz em todo o filme, como lugar a ser comparado (e seu formato, no horizonte, lembre o do castelo – o espaço do “novo mundo” – da Disneylândia). A parte superior do monte é dominada pela abadia de Saint-Michel, também conhecida como “A maravilha”. As marés de Saint-Michel, que sobem de acordo com diferentes períodos, não deixam de ser um contraponto àqueles riachos em que Neil investiga a presença de tóxicos. Do mesmo modo, as areias movediças são um contraponto aos lodaçais ameaçados pela indústria. Os vitrais da igreja de Padre Quintana guardam uma luminosidade que parece não haver no dia em que Neil e Marina visitam Saint-Michel, mas de certo modo estabelecem uma ligação imediata. Do mesmo modo, outra analogia é aquela em que o casal chega a uma planície em que há bisões, animais caçados por nativos e que foram quase exterminados pelos colonizadores – como se Neil e Jane constituíssem esses colonizadores querendo preservar o que resta de suas vidas – e perceba-se na sonoridade ao fundo vozes indígenas (numa ligação estreita com O novo mundo). E a mais espiritual: os personagens sobem a escada seja para consumar o amor, a traição ou o encontro com uma ideia divina (repare-se que, na saída do motel, um carro antiquíssimo, igual ao do fazendeiro traído de Dias de paraíso, passa por Marina).
Malick é um autor refinado de analogias, outras vezes incorrendo numa quase filosofia, precipitada, e não é diferente aqui. Embora ele não queira atingir a grandiosidade de A árvore da vida, no sentido de colocar o casal como o filho da família O’Brien como um símbolo do nascimento e da morte, em que o nascimento é representado como um menino saindo por uma porta embaixo d’água, Malick consegue desenhar aproximações interessantes. Também não existem, aqui, os dinossauros, o surgimento da Terra, os vulcões em erupção, a vida e a genética se compondo em todos os detalhes. Amor pleno consegue ser uma versão mais íntima ainda daquilo que moveu Malick para A árvore da vida: a água e a vegetação se projetam do mesmo modo. Quando o casal está em Saint-Michel, a caminhada lembra o final de A árvore da vida, e quando Marina caminha de braços abertos em meio a um campo verde, estamos de novo próximos da Sra. O’Brien (Jessica Chastain), abrindo os braços para o céu, e ainda quando Marina se aproxima de um piano é um diálogo direto com Sr. O’Brien (Brad Pitt). A dor da perda do filho da mãe de A árvore da vida se converte no afastamento, aqui, de Marina em relação à filha, e o conflito doloroso de não poder ter outro filho.
Quem se manteve afastado da proposta de A árvore da vida dificilmente vai encontrar aqui um alento; quem considera a fotografia como um elemento apenas para embelezar um filme, sem significado próprio, também; mais complicado ainda para quem deseja seguir uma linha ininterrrupta de diálogos entre o romântico, a dúvida existencial e o conflito entre casais, também em torno de uma possível traição (em que Antes da meia-noite, com atuações irrepreensíveis de Delpy e Hawke, se destaca). Embora pareça apenas continuar o filme anterior, reproduzindo algumas imagens, como o sol por trás de árvores e casas, e situações, Malick se arrisca ainda mais, ao propor uma narrativa, esta sim, sem núcleos definidos de dramaticidade. Os acontecimentos do filme não se mostram com um destaque definitivo, apenas um silêncio opressor, mas capaz de movimentar as lacunas. Se Marina, a mulher, é mais submissa ao homem do que a Sra. O’Brien, não vemos nenhum afastamento a respeito das dúvidas existenciais tanto em Neil quanto no Padre Quintana: ambos vagam, à espera de um sentido mais exato de compreensão, e todos são, de certo modo, estrangeiros dentro de sua própria vida.
Amor pleno não possui também a narrativa rebuscada de Dias de paraíso, mas há um sentido denso de humanidade, entre os silêncios cultivados pelos personagens ao longo da metragem. Isso se deve à utilização das imagens de Malick no sentido de o espectador parecer sentir o clima de cada lugar enfocado, mesmo os mais corriqueiros. Quando se olha uma rua em Malick, é como se estivéssemos inseridos nela, em alguma arquitetura capaz de remodelar sensações de lembrança e desprendimento, com suas cercas e seu horizonte longínquo, antes do anúncio das estrelas.

To the wonder, EUA, 2012 Diretor: Terrence Malick Elenco: Ben Affleck, Javier Bardem, Rachel McAdams, Olga Kurylenko, Tatiana Chiline, Romina Mondello Produção: Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Hanan Townshend Duração: 112 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Redbud Pictures

Cotação 5 estrelas

Dias de paraíso (1978)

Por André Dick

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Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

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Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.
A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

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Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

A árvore da vida (2011)

Por André Dick

O filme A árvore da vida, de Terrence Malick, tem despertado polêmica desde a sua estreia. Assim como ganhou a prestigiada Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para quem pretende ver imagens filmadas com poeticidade raras vezes vistas no cinema e um diálogo aberto tanto com o sentimento religioso quanto com a ciência, envolvendo a formação do indivíduo como sujeito, buscando, porém, as suas contradições, é uma obra diferenciada, embora o fio de sua história seja bastante claro (não se equiparando, por exemplos, aos filmes mais enigmáticos de David Lynch). Mesmo seu aparato mercadológico, de promoção, mostra esse objetivo. Três de seus cartazes são complementares: um com o olhar do pai  por trás do pé do filho que acaba de nascer, comparando um de seus dedos da mão com o tamanho do pé do filho; outro que mostra uma colagem de imagens do filme, criando um quebra-cabeças visual; e ainda um que foca o pé do filho que acaba de nascer em meio aos dedos da mão do pai que o segura, e uma luz por trás: a luz da criação do universo e dos seres, talvez. Importante dizer que, a partir daqui, há spoilers.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.

O filme começa com a morte de um filho do casal O’Brien, que perturba o seu filho mais velho, Jack (Sean Penn), arquiteto que trabalha num arranha-céu de Dallas. A sua mãe se pergunta como Jó – citado na epígrafe do filme – onde está Deus para tê-la abandonado, pois sempre acreditou na graça, mas o divino quer mostrar sua grandiosidade por meio da natureza, e Malick filma tudo como se fosse uma mescla entre o criacionismo e o evolucionismo. Em Jó, Deus busca uma proximidade com o ser humano para explicar sua criação e que a dor que Jó está sentindo não se compara à sua força. Esse é o motivo de Malick para retroagir até a criação do mundo, mostrando a criação das partículas, dos seres das águas, dos dinossauros. Essa digressão, para muitos, é uma tolice (elas têm tomadas cinematográficas e não simplesmente documentais, com efeitos especiais de Douglas Trumbull, o mesmo de 2001 e Blade Runner, que não aprecia efeitos digitais, e a fotografia brilhante de Emmanuel Lubezki), mas é ela que torna A árvore da vida um filme tão interessante, à medida que ingressa na poesia e na fusão de imagens estranhas e elípticas.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.

Difícil ver nesses artifícios de Malick apenas uma grandiosidade ou um sentimento épico – apesar da música sacra, de igreja, pontuar ao fundo, muitas vezes. Na verdade, a queda-d’água na cachoeira representa, mais do que a natureza, os próprios personagens, em direção a um rio que não tem origem exata, independente das figuras que neles passeiam – constituindo a própria árvore da vida.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.

Nesse sentido, Malick não chega a nos impor nenhum maniqueísmo, ou seja, sua obra tem uma sutileza que apenas as grandes obras possuem. A trilha sonora não convence o espectador a sentir determinada emoção, apenas faz parte da história, nem leva a uma catarse. Tampouco as aproximações de câmera dos personagens. Se as suas tomadas embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), e por isso são por vezes cansativas e tornam o filme um pouco mais longo do que deveria, nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento. Tudo é meticulosamente calculado nas cenas da criação do mundo, por exemplo, não deixando nenhum espaço para a simples pirotecnia ou imagens calculadas para documentários. A câmera mostrando, embaixo, as ondas se formar depois da queda do meteoro, por exemplo, é o significado de uma busca radical do diretor pelo sentido de origem, mesmo que, como a água, o fogo, a terra e o ar (os quatro elementos que circulam frequentemente nas imagens de A árvore da vida), não tem uma explicação exata.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.

O fato de que o personagem de Sean Penn caminha em meio a um deserto ou a um chão recém-abandonado pela água, lembrando algas do fundo do mar, quando, na verdade, está numa cidade grande, pode fazer com que o filme seja visto de modo excessivamente alegórico. Ou quando ele passa por uma porta sem sustentação no meio do deserto. Cada imagem parece sempre dizer mais do que uma simples alegoria. Ele pode olhar para cima e ver arranha-céus, assim como pode lembrar, em sua infância, do teto da igreja no alto, por onde perpassa a luz solar, ou dos galhos da árvore, pois na verdade as imagens, como a criação e o fim, estão dentro dele mesmo. E, mesmo se não o fossem, são elas que tornam A árvore da vida um achado em termos poéticos no meio cinematográfico. Porque se é bem verdade que as imagens de Malick não são absolutamente originais, é também verdade que ele coloca a poesia como ponte entre uma história que poderia ser linear e comum e uma história que adquire grandiosidade também pela maneira com que é filmada e pensada, com a corrida das crianças em meio a um matagal; banhando-se num rio (em que a água pode dar e tirar a vida); pulando numa cachoeira, em meio a rochas onde se formaram os primeiros seres; subindo em árvores; indo ao circo pela primeira vez; ou jogando bola entre as árvores da rua. E o filme impacta, de igual modo, porque, ao buscar a transcendência, refere-se ao nosso dia a dia: os girassóis estão ao nosso redor, e se guiam pelo sol, contudo não transcendem, como nós – ou, ao menos, parecem não transcender. Enquanto o sol é atraído pela terra, nossos olhares são atraídos pelo sol, e este está a cada fotograma do filme de Malick, pois ele sempre está ali, nos vigiando, assim como para o dinossauro ferido no início do filme. Os girassóis representam uma terceira via, entre a graça e a natureza, para o diretor. A transcendência, nesse caso, sempre é um ponto de vista. Nesse sentido, não se pode cogitar que Malick seja expulso da cidade por ser um poeta-cineasta, mas como um artista capaz de filmar algo de profunda densidade, que foge ao lugar comum e, por isso mesmo, merece ser visto e entendido.

The tree of life, EUA, 2011 Diretor: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Fiona Shaw, Jessica Chastain, Hunter McCracken, Kari Matchett, Dalip Singh, Joanna Going, Jackson Hurst, Brenna Roth, Jennifer Sipes, Crystal Mantecon, Lisa Marie Newmyer Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 138 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Cottonwood Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment / Brace Cove Productions

Cotação 5 estrelas