Por André Dick
Tarantino não esconde sua predileção pela violência, tentando fazer de seus filmes retratos de um cotidiano baseado em revanche e, ainda assim, capaz de atrair nossa atenção pelos elementos humanos que podem surgir dele.
Na verdade, é preciso ingressar no universo desse cineasta para gostar de seus filmes, feito a partir de referências cinematográficas, musicais e de quadrinhos, mas com um senso de espaço e tempo notáveis. Realizado quase ao mesmo tempo em que contribuiu com roteiros para Oliver Stone (Assassinados por natureza) e Tony Scott (Amor à queima-roupa), Pulp Fiction – filme que sucedeu Cães de aluguel – começa com Vincent Vega (Travolta) e Jules (Jackson) indo cobrar dívidas com um sujeito que não cumpriu acordo com o chefe deles, Marsellus Wallace (Ving Rhames), enquanto caminham tranquilamente por um corredor numa manhã que se anuncia como calma. Vincent está preocupado porque precisará fazer companhia à mulher dele, Mia (Uma Thurman) por uma noite, e em algum momento ele lembra Sailor, de Coração selvagem – inspiração clara do filme – e ela, a Laura Palmer de Twin Peaks – Fire walk with me (sobretudo numa ida ao banheiro). Eles saem e vão a uma lanchonete estilizada, uma homenagem a Elvis Presley, porém com sósias de James Dean e Marilyn Monroe também. “A Jayne Mansfield deve estar de folga”, diz Vincent, tentando demonstrar ou esconder interesse pela mulher do chefe, ao fazer comentários sobre o preço abusivo do milk-shake. Esta é uma das sequências mais divertidas, ainda que vaga e estranha, terminando em um episódio que não deve ser contado a Marcellus e envolve um casal suburbano (Eric Stoltz e Patricia Arquette), amigo de Vincent.
Também temos Butch (Bruce Willis), boxeador que precisa perder uma luta e pensa, antes de tudo, viver tranquilamente com sua namorada (Maria de Medeiros). Quando criança, ele ganhou um relógio importante deixado por seu pai a um amigo (Cristopher Walken), escondido num lugar delicado durante um longo tempo. A história de Butch se cruzará com as de Vincent e de Marcellus – desta vez num ambiente inesperado e filmado por Tarantino com requintes de crueldade e de histórias em quadrinhos perversas, mas também, e eis o diferencial do diretor, com um aspecto de humanidade (além de uma homenagem aos filmes dos anos 50, com a conversa de Butch com um taxista, tendo um fundo externo acertadamente falso). E, por mais que os personagens se castiguem, a recompensa acaba sendo uma espécie de saída da rotina em que estão inseridas, mesmo que Tarantino nunca seja complacente nas imagens, tornando uma singela loja numa espécie de superfície do subterrâneo também do seu dono.
Pulp Fiction não deixa de ser o segundo passo, depois de Cães de aluguel, com sua conhecida sequência final, que trabalha com diferentes histórias a fim de compor um painel do submundo e de gânsters que podem se arrepender e mesmo perdoar diante de uma situação extrema, ou se ajudarem quando se encontram com uma situação pior do que aquela que causam. Daí, Tarantino transitar por conversas sobre as drogas de Amsterdã e o Big Mac de Paris e pelos personagens de Samuel L. Jackson (que recita versículos da Bíblia para suas vítimas) e Travolta discutindo porque nenhum deles quer limpar o banco do carro ensanguentado depois de um acontecimento acidental; nesse caminho, é possível que haja a mudança completa para um deles e se passa a falar de redenção, capaz até mesmo de poder convencer dois assaltantes que pretendem mudar sua vida passando a assaltar lanchonetes.
São poucas as tramas, assim como mostraria em Kill Bill e Bastardos, mas Tarantino dá um tratamento especial a cada uma delas, e dar atenção significa transformar os diálogos em camadas, assim como lança mão de uma fotografia especial (contrastando as cenas que se passam à noite e de manhã cedo) e uma montagem singular. Quando Vincent e Jules precisam buscar abrigo na casa de um conhecido (Tarantino) e necessitam da ajuda de um especialista para se livrar de um corpo, conhecido singelamente como Wolf (Harvey Keitel, em momento excelente), que sai de uma festa familiar diretamente para o serviço, o filme se encaminha como um quebra-cabeças que deve ser completado, pois podemos tanto estar no início do filme quanto em seu final. Mas esse detalhe não é brusco, ou seja, não se sente a quebra da narrativa. Como em poucos filmes, parece que, mesmo na antilinearidade, existe uma narrativa que se adianta e volta sem que haja sobressaltos.
Tarantino filma grande parte das cenas de Pulp Fiction com câmera quase imóvel, e os travellings servem para dar velocidade à trama. Sua melhor característica está lá, desde o início: são os diálogos ditos numa velocidade pop, e ainda assim calculados, um a um, apesar de muitas vezes parecerem dispersos. Ao mesmo tempo em que usa muitos diálogos, conserva uma narrativa limpa, sem excessos, à medida que a percepção de Tarantino da montagem de um filme consegue sempre transformá-lo numa peça que vai crescendo. Este filme melhora muito com uma revisão – ao contrário, parece-me, que Cães de aluguel, ele ganha mais amplitude.
Tarantino também retoma atores imprevisíveis (como Eric Stoltz no papel de um vendedor de drogas, que seria, a princípio, de Kurt Cobain; o próprio Willis como um boxeador; e Travolta, quase esquecido durante toda a década de 80, como o capanga), além de confirmar o talento de outras (Uma Thurman, Jackson, Keitel), tornando Pulp Fiction, que recebeu a Palma de Ouro, em Cannes, de melhor filme e o Oscar de roteiro original (tendo sido indicado a melhor filme, entre outros), uma espécie de retrato demarcado de um período, mas capaz de dialogar com outros e com uma visão própria do universo que Scorsese ajudou a dar uma definição derradeira, com Os bons companheiros.
Se Jackie Brown, com seu aroma setentista, serviu como depuração do estilo de Tarantino, o episódio 1 de Kill Bill mostra o quanto o cinema de Tarantino tenta se aproximar de uma atmosfera pop sem perder a densidade, com a fotografia excelente de Robert Richardson (que passou a colaborar, desde então, com o diretor). Os personagens não chegam a ser elaborados, entretanto as sequências violentas acabam delineando uma personagem vingativa de grande personalidade e torcemos para ela. Essa personagem é Beatriz Kiddo (Uma Thurman), um nome que nunca pode ser dito – daí ela atender por “A Noiva”. Ela está para se casar num vilarejo tranquilo, quando um bando de pistoleiros, a mando de seu ex-amante, dos tempos de crime, Bill (Keith Carradine), invade seu casamento. Depois de ficar em coma, com uma bala na cabeça e ser estuprada por um dos médicos, ela se ergue e passa a ir atrás de cada uma das mulheres que tentaram matá-la a mando de Bill, inclusive Elle Driver (Daryl Hannah), O-Ren Ishii (Lucy Liu), e Vernita Green (Viveca A. Fox). Trata-se de um grande filme pequeno, com uma profusão de cenas exageradas, como se pedíssemos os melhores ingredientes para se contar uma história de vingança, cartunesca, e de qualquer modo atrativa. E Tarantino utiliza todos os elementos disponíveis à sua mão: o figurino de Beatriz Kiddo para sua batalha final (com predominância amarela e detalhes em preto) remete aos filmes da década de 70, mas aqui estamos numa espécie de discoteca, onde a cada momento pode surgir um novo som, um novo estilo (Tarantino, afinal, é um DJ), e a cada lance de espada é possível jorrar sangue por todas as partes – para terminar num jardim japonês típico.
Em Kill Bill 2, salta-se de capítulo para outro como se quisesse alternar vários gêneros: do faroeste a um filme de artes marciais, o que vemos na personagem principal é sempre o arrependentimento da vida ligada ao crime – como um dos personagens centrais de Pulp Fiction. Kiddo deseja ser uma mãe normal, sendo impedida sempre pelo contexto. Ela quer matar a todos para ficar com a filha pequena – o mote da série – e Tarantino deseja que o espectador se sinta preso dentro de um caixão para que possa dar devido valor à vingança da heroína. Cada uma das cenas é pensada isoladamente, como também em conjunto, sobretudo aquelas que envolvem o irmão de Bill, Budd (Michael Madsen, assustador), que detém uma desejada espada Hattori Hanzo, e definidas, claramente, por capítulos. Há, também, uma dose de humor negro em seu treinamento por Pai-Mei (o ótimo Gordon Liu), que debocha de seu conhecimento de artes marciais e a ensina a quebrar uma madeira, o que só vemos numa situação em que ela acaba sendo colocada e traz um sentimento de claustrofobia (sobretudo se vista no cinema, mas em vídeo também há a sensação). Os melhores momentos são aqueles em que ela lembra das lições de sabedoria de Bill (mais sérias) e do Pai-Mei (satíricas). É esse equilíbrio que ela tenta manter de um lugar claustrofóbico diretamente para uma cafeteria. Uma Thurman dá o sentido exato para a personagem, contudo é Keith Carradine, com uma tranquilidade mórbida, que dá o tom de toda a série, mesmo que ele apareça muito pouco. Auxiliado pela direção de Tarantino – que costuma extrair as atuações mais detalhadas dos atores –, ele compõe um Bill violento, maldoso e sedutor, no entanto também contador de histórias, tocando flauta diante de uma fogueira. Beatriz Kiddo é sua antítese, uma vilã arrependida de seus crimes por causa da maternidade. Tarantino visualiza, assim, o conceito de mãe americana, perfeito, com belas casas e a esposa preparando o lanche de suas crianças, distorcido por muitas lutas, espadas, móveis quebrados e sangue.
Não há dúvida que Tarantino exerce aqui, mesmo fazendo uma colagem de cinema, uma das melhores direções de sua carreira, onde já se anunciam os diálogos que víamos em Pulp fiction e que veríamos em Bastardos inglórios, com o seu deslocamento para a Segunda Guerra Mundial a fim de contar sobre a violência que vê na contemporaneidade e na história que a forma.
Este filme, com fundo histórico e acontecimentos imprevisíveis, é talvez o melhor produto de seu imaginário. Com diálogos novamente excelentes e sequências delimitadas e agradavelmente longas, Tarantino retrata o horror da Segunda Guerra e o nazismo com sua inquestionável capacidade de extrair grandes atuações de atores limitados, em outro contexto. É bem verdade que às vezes Brad Pitt parece uma escala acima frente ao restante do elenco, como Aldo Raine, líder dos bastardos, embora soe divertido em vários momentos. Mas é também verdade que ele é uma resposta ao coronel Hans Landa, um nazista feito por Cristoph Waltz, numa das melhores interpretações do cinema recente, que chega, com sua tropa, à casa da família LaPadite no início do filme, remetendo à cabana do início de O portal do paraíso (em que Cristopher Walken persegue um imigrante eslavo).
Há também a história de uma jovem judia, Shoshana Dreyfuss (Mélanie Laurent), que consegue escapar de uma chacina, vai a Paris, onde herda o cinema de uma tia, e é cortejada por um ator alemão de filmes nazistas, o cinéfilo Frederick Zoller (Daniel Brühl), a serviço de Joseph Goebbels (Sylvester Groth). Essa história, que acontece em paralelo à história dos bastardos inglórios, cuja função é matar nazistas (“Esse negócio só prospera”, diz Aldo, antes de o “Urso Judeu” aparecer batendo com o taco de beisebol dentro de túnel), consegue ser ainda mais intensa quando sabemos que ela é a dona do cinema para onde Hitler pode ir, convidado para a estreia de um filme que tece loas ao nazismo, retratando a história de Zoller. É essa metalinguagem nas entrelinhas – sem autorreferências –, essa camada capaz de trazer outras, que torna o filme de Tarantino numa surpresa.
O cineasta está empenhado em transformar seu ritmo de história fragmentada novamente num trunfo seu como diretor, e a homenagem que presta ao cinema não é mais tão previsível como em Kill Bill 1, por exemplo (a segunda parte dessa série já anunciava uma maior discrição). Não se esperava um retrato tão maduro da Segunda Guerra Mundial – concentrado, é verdade, nos personagens, e não em episódios trágicos, como o dos campos de concentração nazistas. Os cenários são bastante delimitados e elegantes (como o do cinema e o da taverna), além de vazios (dando a impressão de grandiosidade em alguns momentos), com a valiosa fotografia de Richardson (fazendo a cor do figurino dialogar com a iluminação), pois o que se quer mostrar é o conflito que pode emergir de determinado contexto, e os personagens, mesmo quando parecem calmos, estão prestes a cometer algo.
Se vê Hitler como, mais do que um genocida, um ridículo (aliando-se a Chaplin de O grande ditador, tentando recuperar o chapéu mesmo com os berros do ditador pelos megafones de rua), Tarantino vê o coronel Landa, principal ameaça nazista aqui, como um psicopata que tenta ser engraçado com suas vítimas. Na cena em que conversa com Shoshana, sem saber que ela é descendente de judeus, mostra-se sua dupla face quando pede uma sobremesa, dizendo que o doce é o melhor que existe, e ao final da conversa espreme um cigarro nele – o que faz, de algum modo, com suas vítimas, quando as interroga pacientemente, para, então, descontrolar-se. E a reconstituição de época é exata, mostrando que Tarantino sabe também contar histórias situadas foram do universo contemporâneo, e que deveria permanecer nesse caminho para nos contar histórias extraordinárias como esta. A sua admiração pelo cinema poderia render apenas um fetichismo por vezes incômodo – como vemos em alguns momentos de seu primeiro filme, Cães de aluguel –, entretanto existe aqui um conhecimento maior das porções que fazem um filme encadear. Por sua vez, o personagem de Michael Fassbender, especialista em cinema e designado para a Operação Kino, parece um alter ego do cineasta, sempre atraído para uma briga (desde o início, percebe-se, o que ele quer é criar confusão, pedindo tranquilidade aos outros). Por isso, a sequência do bar, quando alguns bastardos se encontram com nazistas, se desenha inesperada. A câmera vai focando cada personagem de modo insistente, como se dependesse de cada um a solução pretendida. Ainda assim, o que, ao final, fazem é mais do que isso: os personagens estão querendo se autodestruir, pois, para Tarantino, desde Cães de aluguel, este parece ser o motivo para desencadear uma conversa (chegando ao exemplo principal o diálogo entre Beatriz Kiddo e Bill no segundo Kil Bill). A seu modo, Soshana se prepara para a vingança ao som de “Putting out of fire (Gasoline)”, de David Bowie, preparando um filme especial, e Tarantino mostra que a condução de diálogos, num momento de conflito, pode ser mais assustadora do que as próprias mortes espalhadas ao longo do filme. Do mesmo modo, quando Hans Landa observa a entrada de convidados na estreia do filme nazista e a câmera o acompanha lentamente – com uma trilha, ao fundo, que remete a e Ennio Morricone e aos filmes de Sergio Leone. Pois Tarantino deixa claro: a conversa será apenas pretexto para um acerto de contas inesperado e intransferível para outro lugar – a etapa anterior da tranquilidade e a humanidade plena. É por isso, afinal, que seus personagem vivem, enquanto ele pula as faixas e volta a abaixar a agulha.
Pulp Fiction, EUA, 1994 Diretor: Quentin Tarantino Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Tim Roth, Amanda Plummer, Eric Stoltz, Bruce Willis, Ving Rhames, Phil LaMarr, Maria de Medeiros, Rosanna Arquette, Peter Greene, Uma Thurman, Steve Buscemi, Christopher Walken, Quentin Tarantino, Harvey Keitel Produção: Lawrence Bender Roteiro: Quentin Tarantino, Roger Avary Fotografia: Andrzej Sekula Trilha Sonora: Karyn Rachtman Duração: 154 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Miramax Films / Jersey Films / A Band Apart
Kill Bill: Vol. 1, EUA, 2003 Diretor: Quentin Tarantino Elenco: Uma Thurman, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Daryl Hannah, David Carradine, Michael Madsen, Julie Dreyfus, Produção: Lawrence Bender Roteiro: Quentin Tarantino, Uma Thurman Fotografia: Robert Richardson Trilha Sonora: RZA Duração: 111 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Miramax Films / A Band Apart / Super Cool ManChu
Kill Bill: Vol. 2, EUA, 2004 Diretor: Quentin Tarantino Elenco: Uma Thurman, David Carradine, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Chia Hui Liu, Michael Madsen, Daryl Hannah, Michael Parks, Samuel L. Jackson Produção: Lawrence Bender Roteiro: Quentin Tarantino Fotografia: Robert Richardson Trilha Sonora: RZA, Robert Rodriguez, Lars Ulrich Duração: 134 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Miramax Films / A Band Apart / Super Cool ManChu
Inglorious basterds, EUA/ALE, 2009 Diretor: Quentin Tarantino Elenco: Brad Pitt, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Eli Roth, Michael Fassbender, Diane Kruger, Daniel Brühl, Sylvester Groth, Til Schweiger, Omar Doom, Denis Menochet, Mike Myers Produção: Lawrence Bender Roteiro: Quentin Tarantino Fotografia: Robert Richardson Duração: 153 min. Distribuidora: Paramount Pictures Brasil Estúdio: Universal Pictures / A Band Apart / The Weinstein Company / Zehnte Babelsberg / Visiona Romantica