O castelo de vidro (2017)

Por André Dick

O diretor Destin Daniel Cretton, Andrew Lanham e Marti Noxon fizeram o roteiro desta aguardada adaptação de O castelo de vidro, de Jeanette Walls, com um elenco em alta conta e visando às premiações principais do fim do ano. Se não houve uma resposta à altura do esperado, o novo experimento do diretor de Temporário 12 tenta contar de maneira atrativa a história de Jeanette Walls (Brie Larson na versão adulta, Ella Anderson na versão jovem e Chandler Head na versão infantil), filha de Rex (Woody Harrelson) e Rose Mary (Naomi Watts), dois pais errantes.
Ela lembra do passado com os irmãos Lori (Sarah Snook na versão adulta, Sadie Sink na versão jovem e Olivia Kate Rice na versão infantil), Brian (Josh Caras na versão adulta, Charlie Stowell na versão jovem e Iain Armitage na infantil) e Maureen (Brigette Lundy-Paine na versão adulta, Shree Crooks na versão jovem e Eden Grace Redfield na versão infantil), enquanto está num compromisso sério com David (Max Greenfield).

Trata-se de uma história autobiográfica, sobre uma família disfuncional, em que o pai alcóolatra leva a família para viver a verdadeira liberdade pelas estradas dos Estados Unidos, alugando casas diferentes e fugindo de federais. Qualquer semelhança com Capitão Fantástico não é mera coincidência, mas aqui há uma base dramática mais acentuada, principalmente nos conflitos de Jeanette com seu pai. Como lidar com alguém que imagina não possuir o problema que de fato tem? Se no início Jeanette é tirada de um hospital com queimaduras no corpo porque não seria o ambiente propício para cuidá-la, como se sentir segura com alguém que não cumpre as promessas? O espectador lembra que Temporário 12, filme anterior de Cretton, mostrava crianças abandonadas recolhidas num abrigo, a partir das memórias do próprio diretor. Aqui essas crianças não estão abandonadas, mas inseridas num sistema em que não estão preparadas para se adaptar. Não fica muito claro por que Rex age desse modo, mas o momento em que volta à sua casa de origem pode oferecer explicações indiretas e não expositivas (o roteiro é muito bem pensado). Junto a isso, a fotografia de Brett Pawlak captura uma certa solidão impositiva.

O castelo de vidro é um filme muito interessante na maneira como apresenta seus personagens. Se Rex é um easy rider, a mãe é uma pintora (abstrata, como ela diz), tentando manter sua arte enquanto não há o que servir para os filhos. Há uma mescla de drama com moldes gregos aqui, mas sem acentuar a tragédia e sim mostrando conflitos dos pais com uma vida estruturada de forma previsível segundo eles. Claro que há um certo romantismo nesse olhar, mas Harrelson e Watts em seus papéis conseguem traduzir o conceito sem soarem pretensiosos ou deslocados. Harrelson vem se especializando em papéis à margem desde sempre (e neste ano aparece ótimo também em Quase 18Wilson), enquanto Watts foge ao seu estilo mais uma vez, fazendo uma mãe distante de qualquer diálogo real.
A personagem de Larson obviamente quer negar a sua origem e se adaptar a uma vida tranquila em Nova York, mas ela não consegue se libertar das amarras do passado. Nesse sentido, o corpo, vestido com roupas simples ou não, evita qualquer afastamento completo da infância, e isso se demonstra numa bela cena em que Jeannette o mostra a outro homem. O diretor, nisso, deseja contrastar o ambiente vazio do presente da personagem, com sua arquitetura exemplar, com a agitação da casa familiar no passado e sua desconjuntura, inclusive nas casas sem cuidado de limpeza ou simples organização – por vezes funciona, por vezes não. No momento em que essa família se reencontra não é para reparar o que aconteceu e sim acentuar as divergências, no entanto é quando Cretton se mostra mais sensível a alterações narrativas, não conseguindo prover cada personagem secundário de substância real.

A história se concentra em Jeannette e não em seus irmãos, embora eles apareçam também, e cresce à medida que mostra o relacionamento com o pai, desde a infância – e as atuações de Chandler Head e Ella Handerson talvez sejam até melhores que a de Brie Larson, que é boa e continua sua parceria iniciada com Cretton em Temporário 12. Há um momento levemente manipulador, quando ela e seu pai estão deitados olhando as estrelas, mas o diálogo funciona. Noxon, um dos roteiristas, dirigiu O mínimo para viver, sobre a anorexia, e acerta aqui no equilíbrio entre esses personagens como já acontecia em seu filme. Se Capitão Fantástico tentava demonstrar um discurso ideológico, em O castelo de vidro há uma discrição mais abrangente, sobretudo por meio da personagem de Rose Mary, mantendo a discussão mais no plano familiar. Cretton aborda de forma interessante as atitudes do pai que sempre fala em liberdade, mas tem um apego sentimental a Jeannette, não querendo que ela tenha uma vida própria ou mesmo um envolvimento sério com algum homem. Sua atitude é infantil, mas essa ligação é desenhada desde o momento em que ele tenta ensiná-la a nadar numa piscina pública, simplesmente jogando-a na água, sem saber boiar, ou quando ele volta para casa com um corte no braço e ela costura a ferida com uma agulha, no momento melhor desenvolvido e ressonante da narrativa. Em outros instantes, essa aproximação entre os dois não é calibrada o suficiente, mas quando Larson e Harrelson entregam sua melhor participação é quando a narrativa cresce e O castelo de vidro se mostra decisivamente belo.

The glass castle, EUA, 2017 Diretor: Destin Daniel Cretton Elenco: Brie Larson, Woody Harrelson, Naomi Watts, Max Greenfield, Ella Anderson, Chandler Head, Sarah Snook, Brigette Lundy-Paine, Josh Caras Roteiro: Destin Daniel Cretton, Andrew Lanham, Marti Noxon Fotografia: Brett Pawlak Trilha Sonora: Joel P. West Produção: Gil Netter, Ken Kao Duração: 127 min. Estúdio: Gil Netter Productions Distribuidora: Lionsgate

A grande aposta (2015)

Por André Dick

A grande aposta 6

Este novo filme de Adam McKay, diretor de O âncora, Ricky Bobby e Quase irmãos (todos com Will Ferrell) e também presente na direção e roteiros de Saturday Night Live, é baseado num livro escrito por Michael Lewis, sobre a crise financeira de 2007-2008, causada, como todos sabem, por uma bolha no mercado imobiliário. Em 2005, a possibilidade de isso acontecer, especificamente em 2007, é antevista por Michael Burry (Christian Bale). Ele configura esse mercado como completamente instável, baseado em empréstimos fora de qualquer padrão. Visto como uma pessoa antissocial (e assumindo-se como tal), ele vai a vários bancos para tirar lucro da ideia, apostando o dinheiro da empresa para ganhar em cima da esperada perda na área. Os bancos apostam que o mercado é seguro, e ele acaba sendo visto como um desequilibrado; riem dele pelas costas.
Num determinado local, quem ouve a história de suas peregrinações é Jared Vennett (Ryan Gosling), que logo nota que as previsões são verdadeiras, e se junta a Mark Baum (Steve Carell). Os dois descobrem que a possível quebra está ligada a CDOs, grupos de empréstimo. Baum trabalha com Porter Collins (Hamish Linklater), Danny Moses (Rafe Spall) e Vinnie Daniel (Jeremy Strong), tentando ser convencida pela esposa, Cynthia (Marisa Tomei), a largar a profissão e o universo de Wall Street. A profissão de quem lida com o dinheiro é constantemente satirizada em A grande aposta e associada, como no filme de Scorsese, a strippers e boates onde ele é jogado pelos ares.

A grande aposta 7

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Há também, na mesma escala, os investidores Charlie Geller (John Magaro) e Jamie Shipley (Finn Wittrock), sabendo das ideias de Burry por via indireta, que passam a trabalhar para o ex-banqueiro Ben Rickert (Brad Pitt). Todos esses personagens estão envolvidos com a mesma possibilidade, no entanto nunca são vistos juntos, ou seja, eles apenas anteveem o que irá acontecer sem terem certeza de que isso acontecerá – ao mesmo tempo em que têm essa certeza.
McKay trabalha com esse elenco de maneira muito competente, mas estranhamente desigual, sendo prejudicado pela montagem, que dá espaço maior a personagens não tão interessantes quanto os de Bale, Pitt, Rosling e Carell, os principais (e fiquei imaginando se tivessem conseguido encaixar aqui Jim Carrey em seus melhores momentos). Todos estão muito bem, especialmente Carell, na atuação dramática que poderia ter lhe rendido uma nova indicação ao Oscar e complementa, em outro plano, aquela excelente que teve em Amor a toda prova (em que também contracena com sua esposa aqui, Tomei). O personagem de Bale é fascinante, principalmente no início, quando lhe é dado um merecido espaço, com suas manias, fuga do stress por meio de uma bateria e a Síndrome de Asperger. McKay, ainda assim, se equivoca ao restringi-lo somente a um espaço, sendo como o homem que não vê os outros, mas sabe tudo o que irá acontecer aos outros. Falta, digamos, um ponto alto, capaz de atrair todos os personagens, mesmo separados, para o mesmo núcleo dramático.

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O roteiro é bastante complexo, principalmente para quem não sabe os detalhes da crise, ou seja, em certos momentos parece mais para o público norte-americano. No início, existe a impressão de que se trata mais de uma comédia satírica sobre o que aconteceu, porém, aos poucos, vai se anunciando mais um drama nas entrelinhas referentes aos personagens, sobretudo nas atuações de Pitt e Carell, às vezes oportunizando mesmo uma lição de moral, o que seria dispensável diante do que o filme nos mostra (e dificilmente A grande aposta pode ser visto como uma comédia, do modo como é vendido, não mais, por exemplo, do que um Cosmópolis, uma sátira ferina de Cronenberg tanto ao capitalismo exacerbado quanto aos ocupantes de Wall Street).
Há uma agilidade sensível na direção, ao mostrar personagens falando para a câmera. Isso às vezes funciona, outras não (passa a ser um recurso estranho quando ele se ausenta por muito tempo), no entanto a montagem vai selecionando muitas imagens para que o espectador nãos e distraia, mesmo que não entenda plenamente o contexto. Para isso, ele coloca Margot Robbie (curiosamente de O lobo de Wall Street) e Selena Gomez para dar explicações práticas das negociações em andamento, sobretudo, no segundo caso, quando há uma reunião em Las Vegas para discutir os rumos da economia. Há uma certa linguagem moderna que, por vezes, acaba se chocando com as reflexões do filme, mais exatamente do personagem de Carell, e isso cria um conflito claro na estrutura.

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Às vezes, ele lembra O lobo de Wall Street pela bateria de diálogos rápidos (Pitt tentou, lembremos, comprar os direitos e fazer esse filme), assim como uma excelente obra dos anos 90, chamado O sucesso a qualquer preço. E é interessante como todos os atores envolvidos no projeto já participaram de filmes com uma sátira ou crítica ao chamado capitalismo (mesmo Gosling fez Lost river, que trata também de pessoas sendo desalojadas e não deixa de ser uma metáfora da bolha financeira de 2008). Mas aqui não há o talento de Martin Scorsese quando, em O lobo de Wall Street, desmontou esse universo com o auxílio da atuação de DiCaprio. Havia mais foco na maneira como se dava esse olhar, e os personagens eram caricaturais, sem nenhum moralismo, quando aqui pelo menos o personagem de Pitt aparece para dizer palavras capazes de mostrar os verdadeiros erros. É interessante como McKay, um diretor de comédias, acaba levando mais a sério e querendo demonstrar com dados e definições de conceitos esse universo. Tudo é entregue para que o espectador possa selecionar as partes capazes de deixar o panorama mais claro; às vezes não fica, mas o elenco se esforça.
Mesmo com todas as falhas, ainda há mais virtudes em A grande aposta e uma real vida nas atuações, sem a neutralidade forçada e esforçada, por exemplo, de um Spotlight. Nisso, a fotografia de Barry Ackroyd, apesar de lembrar bastante a da série The Office (com Carell), e outras séries, diga-se de passagem, oferece um movimento ininterrupto e capta melhor os cenários, seja do centro de Nova York, dos escritórios ou de Las Vegas. A grande aposta acaba tendo como referência uma dissolução interessante de gêneros no fim das contas, além de contar com um elenco estelar em grande forma, apesar de alguns não terem o tempo necessário para poderem brilhar, talvez mesmo porque não quisessem, com a consciência de que o roteiro e a visão sobre o colapso financeiro e suas consequências até hoje, inclusive seu reaproveitamento sob outras formas, conta mais para o espectador ter consciência sobre o tema.

The big short, EUA, 2015 Diretor: Adam McKay Elenco: Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling, Brad Pitt, Finn Wittrock, Marisa Tomei, Max Greenfield, John Magaro, Karen Gillan, Melissa Leo, Hamish Linklater, Billy Magnussen, Rafe Spall, Tracy Letts Roteiro: Adam McKay, Charles Randolph Fotografia: Barry Ackroyd Trilha Sonora: Nicholas Britell Produção: Brad Pitt, Dede Gardner Duração: 130 min. Distribuidora: Paramount Pictures Estúdio: Plan B Entertainment / Regency Enterprises

Cotação 3 estrelas e meia