Cinzas no paraíso (1978)

Por André Dick

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Cinzas no paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Cinzas no paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Cinzas no paraíso é uma obra notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.

A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A casa imensa do local figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Edward Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Cinzas no paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual desperta um diálogo com Hopper, como também o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade. Quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo e antecipa o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não ganha mais espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em toda a sua obra, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Cinzas no paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Duração: 95 min. Distribuidora: Paramount Pictures

 

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

Estrela solitária (2005)

Por André Dick

Estrela solitária.Filme 2

Uma das obras-primas dos anos 80, Paris, Texas trazia uma parceria de Wim Wenders com o ator e dramaturgo Sam Shepard e uma narrativa sobre um homem preso ao passado (Harry Dean Stanton) caminhando por paisagens desertas e trilhos de trem, afastado da esposa e do filho. O filme recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, para o qual os mesmos Wenders e Shepard voltaram pouco mais de vinte anos depois, em 2005, com Estrela solitária, desta vez sem a mesma recepção e visto de maneira duvidosa como mais um filme de Wenders que não se alça aos grandes momentos dos anos 70 e 80 (nos anos 90, ainda faria o ótimo, embora esquecido, Além do fim do mundo). Wenders é um dos grandes autores do cinema alemão e universal, e nos anos 80 ficou conhecida sua imersão na cultura dos Estados Unidos, principalmente por Hammett e, em seguida, por Paris, Texas. Ele já trazia, no entanto, esta influência em O amigo americano, dos anos 70, com Dennis Hopper no papel de um gângster que lida com pinturas.
Em Estrela solitária, Sam Shepard faz Howard Spence, um ator de faroestes, que decide largar as filmagens de uma nova produção, em Moab, Utah, para ir ao encontro sua mãe (Eva Marie Saint), em Elko, Nevada. Tentando fugir de uma vida agitada, Spence tenta se abrigar novamente em sua casa de infância, mas reage a qualquer intrusão alheia com o nervosismo de alguém que não sustenta mais a posição de ser um astro do cinema. A partir de um álbum de recortes da mãe, ele lembra de seus problemas e num instante já se encontra num cassino – onde a principal inspiração parece ser O fundo do coração, de Coppola. A mãe lhe conta que ele possivelmente tem um filho, de um antigo caso, o que o faz viajar para Butte, Montana, mesmo lugar onde fez um filme duas décadas antes, em que era Jesse James.

Estrela solitária 14

Estrela solitária 7

Estrela solitária 2

No seu encalço segue um detetive, Sutter (Tim Roth), contratado pelos produtores do filme, como se estivesse não apenas do fora da lei de Hollywood como de um mito que já não se leva a sério – mesmo com um cavalo. Esta história já se viu outras vezes, mas com o visual de Estrela solitária possivelmente não. Wenders, influenciado mais uma vez pelo pintor Edward Hopper, assim como em Paris, Texas, mostra esta busca de Howard com cores vivas e que se correspondem também com O fundo do coração, numa espécie de descoberta da América contemporânea. O diretor de fotografia Franz Lustig faz um trabalho realmente memorável, assim como o design de produção trabalha com os objetos em cena e detalhes como se fossem elementos de uma pintura de Hopper. Quando Spence chega a Butte, os enquadramentos são registros vivos de pinturas de Hopper e, ao mesmo tempo em que isso soa orgânico, numa cidade com ruas vazias e bares em que há uma nova geração de artistas tentando fazer carreira, simbolizada por Earl (Gabriel Mann), também há salas de ginástica e vidraças anunciando computadores, como se o passado fosse afetado permanentemente pelo lugar contemporâneo. Talvez Wenders nunca tenha feito um filme tão aparentemente ligado às coisas concretas tão abstrato: o comportamento dos personagens não é explicado logicamente de forma completa, assim como as personagens de Doreen (Lange) e Sky (Polley), uma menina com blusa vermelha que carrega a urna azul com as cinzas da mãe e tenta estabelecer um contato com Spence, ou Âmbar (Fairuza Balk). Todos esses personagens, de algum modo, podem ser associados a móveis e objetos jogados por uma janela e que não soam incômodos numa rua em que não passa nenhum carro.

Estrela solitária 5

Estrela solitária 9

Estrela solitária 15

Embora eu não entenda a separação que se faz do cinema de Wenders dos anos 80 deste do novo milênio – as características básicas são as mesmas –, entendo que este filme não tem a carga emocional de Paris, Texas, cuja história original era de Shepard. No entanto, trata-se de uma obra bastante envolvente, não apenas pela presença de Shepard, como pelas atuações expressivas de Jessica Lange e Sarah Polley, como a jovem Sky (e realmente todos os ângulos usados por Wenders para filmá-la lembram uma espécie de luz), que busca dialogar com Spence. Trata-se de uma obra mais próxima de um O estado das coisas, que também mostrava problemas durante uma filmagem, optando, porém, em mostrar a vida de um homem que se cansou de ser astro, e ainda assim não deixa de vivenciar experiências de um cowboy contemporâneo amargurado. O personagem de Shepard não deixa de lembrar também aquele feito por Dennis Hopper em O amigo americano, assim como as cores do filme: embora pareça se tratar de um homem buscando uma casa depois de velho, ele também representa uma despedida simbólica do símbolo heroico dos Estados Unidos. Esse heroísmo não é de todo descartado, pois, em meio às perdas e à aceitação dela, Spencer de certo modo desperta um otimismo imprevisto. Por isso, a atuação de Shepard é tão contida e, finalmente, tão animadora: ele é um mito que descobre sua realidade e isso pode dizer muito dos momentos em que voltará a conhecer sua casa. O ritmo é bastante lento, com sensações dos personagens descritas mais por imagens do que por palavras – e este continua sendo outro diferencial do cinema de Wim Wenders, que alguns anos depois faria a pintura em movimento intitulada Pina. Se o espectador está de acordo com a proposta, Estrela solitária é um grande momento do cineasta.

Don’t come knocking, ALE/FRA/EUA, 2005 Diretor: Wim Wenders Elenco: Sam Shepard,  Jessica Lange, Sarah Polley, Eva Marie Saint, Fairuza Balk, Gabriel Mann, Tim Roth Roteiro: Sam Shepard, Wim Wenders Fotografia: Franz Lustig Trilha Sonora: Joe Sublett, T-Bone Burnett Produção: In-Ah Lee, Karsten Brünig, Peter Schwartzkopff Duração: 122 min. Distribuidora: Sony Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

Amor bandido (2012)

Por André Dick

Amor bandido.Filme 5

Há muito tempo o cinema de Hollywood tem se afastado de histórias simples ou visto com certa desconfiança aquelas que têm um certo tom de descoberta juvenil num cenário real, preferindo se concentrar em produções com o objetivo de alcançar um público que prefere esses mesmos elementos com mais ação. Nos anos 80, tínhamos filmes como Conta comigo, em que uma turma, caminhando por um trilho de trem, ia em busca de um corpo desaparecido. Baseada em Stephen King, a história apresentava elementos, como este recente Amor bandido, de Mark Twain e Charles Dickens. O novo filme de Jeff Nichols, recém-saído do sucesso de crítica O abrigo, com Michael Shannon, que regressa aqui num pequeno papel, e Jessica Chastain inseridos numa parábola sobre o fim do mundo, procura encontrar este síntese, apresentando a história de um menino, Ellis (Tye Sheridan), que vê o casamento de seu pai, Senior (Ray McKinnon, num diálogo visual direto com o personagem de Harry Dean Stanton em Paris, Texas), e de sua mãe, Mary Lee (Sarah Paulson), se desintegrar lentamente. Eles vivem no Rio Mississippi, na altura do Arkansas, em uma casa flutuante, deixada pela família de Mary Lee. Quando se separarem, o governo destruirá a propriedade. Desde o início, Nichols consegue inserir o espectador neste ambiente, criando uma atmosfera sólida, com a fotografia particularmente acertada de Adam Stone, sustentada por um extraordinário design de som, capaz de captar a natureza. E avisa: este é um filme naturalmente acessível, composto por pedaços de narrativa reconhecíveis e ainda assim naturalmente emotivos e cuja ressonância é sincera.

Amor bandido

Amor bandido.Filme 4

Ellis está em conflito existencial e, numa das peregrinações pelo rio, com o amigo Neckbone (Jacob Lofland), descobre um barco pendurado numa árvore em uma pequena ilha abandonada da região, deparando-se, logo em seguida, com Mud (traduzindo literalmente, Lama), que pede por comida, uma situação que contrasta com sua camisa impecavelmente branca, da qual não se livraria, como ele diz, nem antes de sua arma. Diz que morou no Rio quando era criança e está ali à espera de uma moça. Este fragmento de história é suficiente para que Ellis se interesse em ajudá-lo. Adentrando na adolescência e sem a idealização do amor em sua rotina, interessado por colegas mais velhas que se reúnem em frente a postos de gasolina, principalmente May Pearl (Bonnie Sturdivant), ele se sente deslocado e sem ter alguém para dividir seus conflitos. Embora Neckbone não se interesse muito pela história, ambos passam a ter um vínculo com Mud, que pede a eles para procurar um homem da região, Tom Blankenship (um contido e excelente Sam Shepard), com a franca possibilidade ajudá-lo, enquanto o tio de Neckbone, Galen (Michael Shannon), se mostra preocupado com o que possa estar ocorrendo.
Nichols começa aí sua espécie de conto moral sobre como um menino pode, ao mesmo tempo, buscar o perigo para recuperar aquilo que perdeu com o passar da idade. Quando entra em cena Juniper (Reese Whiterspoon, tentando fugir da imagem deixada por comédias), surgem novos conflitos e é preciso, mais do que desafiar a si mesmo, tentar substituir as próprias escolhas para investir numa história que pode ser diferente da sua. Mud, para Ellis, não pode ter uma história como a sua: por meio dele, é possível recuperar a ideia de uma certa unidade familiar, capaz de trazer ainda conforto e certeza. E a figura da mulher é associada a uma entrada na maturidade, tanto para compreender as escolhas familiares quanto aquelas que irão definir as reuniões no colégio. Em correspondência direta com esta definição, existe a reconstrução do barco para que se possa abandonar o cenário longínquo de uma infância não mais possível de ser alcançada.

Amor bandido.Filme 7

Amor bandido.Filme 6

É interessante como Amor bandido se constrói em cima de uma base muito simples e direta, sem colocar histórias paralelas a fim de impedir a naturalidade da narrativa. Isso, no cinema atual, pode ser visto até mesmo como uma espécie de conservadorismo e retomada de uma certa ideia clássica. Mas quanta diferença pode fazer não apenas um diretor competente, como Nichols é, como também um elenco à altura. Depois de Killer Joe, McConaughey entrega a sua grande atuação do ano, um personagem com variações de tom. Com poucos diálogos, mas uma composição de personagem sólida, ele é apoiado pela figura de Tye Sheridan, um ator excepcional, conhecido do público desde A árvore da vida, e por Jacob Lofland, que sempre entra em cena para conseguir sustentá-la e aparar as arestas, assim como Joe Don Baker tem uma presença assustadora. Há algumas sequências que só possuem vitalidade pela interação do elenco, quando a história parece escapar para saídas mais rotineiras, sobretudo em seu terceiro ato, embora ainda com impacto e narrativa fluente. No entanto, Nichols filma tudo com uma habilidade própria e a colaboração fundamental de Julie Monroe na montagem de suas peças que Amor bandido parece transparecer uma espécie de clássico perdido, de uma história tantas vezes contada que parecemos às vezes esquecer de como ela é vital.

Mud, EUA, 2012 Direção: Jeff Nichols Elenco: Matthew McConaughey, Tye Sheridan, Jacob Lofland, Reese Witherspoon, Sarah Paulson, Ray McKinnon, Sam Shepard, Michael Shannon, Bonnie Sturdivant, Paul Sparks, Joe Don Baker Roteiro: Jeff Nichols Fotografia: Adam Stone Trilha Sonora: David Wingo Produção: Aaron Ryder, Lisa Maria Falcone, Sarah Green Duração: 135 min. Distribuidora: Califórnia Filmes Estúdio: Everest Entertainment / FilmNation Entertainment

Cotação 4 estrelas

Dias de paraíso (1978)

Por André Dick

Dias de paraíso.Cena 1

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

Dias de paraíso.Cena 5

Dias de paraíso.Cena 3

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

Dias de paraíso.Malick.Cena 2

Dias de paraíso.Malick.Cena 3A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Dias de paraíso.Malick.Cena

Dias de paraíso.Malick 2

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

Paris, Texas (1984)

Por André Dick

Paris, Texas.Filme

Nascido em Düsseldorf, na Alemanha, em 1945, Wenders fez filmes memoráveis logo no início da carreira, como O medo do goleiro diante do pênalti e, principalmente, O amigo americano. Em 1982, seguiu para os Estados Unidos, onde trabalhou com Coppola no filme Hammett, uma ficção sobre o escritor Dashiel Hammett. Interessado pela paisagem dos Estados Unidos, ele não demorou a compor sua obra-prima, Paris, Texas, um filme ao mesmo tempo reflexivo e inovador, no trabalho com os planos, com os enquadramentos, do holandês Robby Müller, influenciando de maneira decisiva o gênero road movie e servindo como referência para filmes posteriores.
O cinema de Wim Wenders sempre esteve ligado ao trabalho elaborado com a imagem: Asas do desejo tem uma fotografia tanto em preto e branco quanto colorida (dependendo do ponto de vista, se dos anjos ou dos homens), por exemplo. Mas, ainda assim, Asas do desejo não consegue sobrepujar Paris, Texas, seu grande filme de 1984, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e a referência dos caminhos adotados em sua trajetória.
Wenders investiga o interior dos personagens, analisando seus conflitos e angústias, a começar por Travis Henderson (Harry Dean Stanton), que, depois de vagar durante quatro anos (o filme inicia com ele de boné vermelho, caminhando em meio a uma pradaria, com o céu azul ao fundo), acaba sendo ajudado por um médico, Dr. Ulmer (Bernhard Vicki), e reencontrado pelo irmão, Walt (Dean Stockwell), no Texas, perto do México. Sem lembrar do que aconteceu, parte numa viagem de estrada para Los Angeles, pois não quer viajar de avião, onde encontra seu filho, Hunter (Hunter Carson), a quem abandonou, e cujas imagens do passado só podem ser recuperadas em alguma película de Super 8. E, assim como Walt, sua esposa Anne (Aurore Clément), que ajuda a cuidar de Hunter, nunca mais havia tido notícias de Travis. Com uma fotografia de um terreno comprado em Paris, cidade do Texas – pois ele sempre ouvira da mãe que ela havia conhecido seu pai lá –, ele volta a procurar um entendimento com o irmão e a família. Querendo reconstruir sua vida, ou pelo menos reencontrar um período esquecido dela, parte em busca da ex-mulher, Jane (Nastassja Kinski), junto com seu filho de sete anos. Trata-se, sem dúvida, de uma história simples, mas que cresce na visão de Wenders, à medida que ele coloca Jane como uma estranha também para Travis e seu filho (em seu jogo de espelhos e atendimento), mas antecipa todo o afeto que tem por eles através do silêncio.

Paris, Texas.Filme 2

Paris, Texas.Filme 4

As viagens são sempre realizadas em meio à reflexão, mas o que permanece, além do retrato da propriedade adquirida, que pode regressar à infância, é justamente o vínculo da família, mesmo que ele se reproduza rapidamente na tristeza contida de cada personagem. Dificilmente a paisagem do interior dos Estados Unidos foi tão bem registrada, o que viria a influenciar muitos cineastas depois, a exemplo de David Lynch, Joel e Ethan Coen, Walter Salles Jr. e o próprio Terrence Malick (sobretudo em seu filme mais recente, To the wonder).
Se como road movie, o filme de Wenders é uma referência central, o roteiro de L.M. Kit Carson, baseado em texto de Sam Shepard, que interpretou o fazendeiro em Dias de paraíso, de Malick, consegue sugerir muitas vezes em vez de mostrar, o que o torna uma raridade. O início, quando o personagem central vaga no deserto, é notável, pois consegue, em seguida, desencadear todo o passado dele, mas sem exageros ou intensidade dramática fora da ordem. Para este efeito, Harry Dean Stanton é um ator perfeito. Um pouco antes de se tornar pai de Molly Ringwald em A garota de rosa shocking ou um dos coadjuvantes preferidos de David Lynch (em Twin Peaks e Império dos sonhos), Stanton entrega uma das maiores atuações da década de 80, e não muito longe dele ficam as de Stockwell e Kinski (que havia feito um cult, A marca da pantera, dois anos antes) e do garoto Hunter Carson.
Embora críticos considerem que a obra de Wenders se tornou comum – com exceção a seu último filme, a pintura em forma de documentário, em 3D, Pina –, Paris, Texas antecipa também Até o fim do mundo, uma reflexão subestimada de Wenders sobre o fim do milênio. É claro, por exemplo, que o retrato apresentado pelo filme sobre o fim de século – a história se passa em 1999 – também trazia o passado. Paris, Texas, nesse sentido, é um filme sintomático, na medida em que Wenders queria fazer uma transição, uma ponte de ligação entre os anos 50, 60 e 70 – esta a década em que Hollywood teve alguns de seus maiores sucessos da história, consagrando cineastas de grande público, como Steven Spielberg e George Lucas – e os anos 90. As paisagens de Paris, Texas trazem à lembrança os faroestes dos anos 50 e 60 de Hollywood, mas também a luminosidade da década de 80. Travis é uma espécie de Ulisses vagando por esse cenário mítico (como escreve Claude Beylie, é “uma espécie de western imóvel, sem diligência, sem xerife, sem índios, uma viagem ao deserto tendo como guia um Ulisses taciturno e mudo”), e seu aspecto acaba criando um paralelo com a figura vital desse gênero, a do desbravador. Ainda assim, Travis está mais propenso a suas perdas anteriores, capaz de se equilibrar com o presente que ainda precisa criar. Desde sua ausência física do início do filme até sua curiosidade em descobrir onde está Jane, o personagem parece passar por uma espécie de descoberta que pode tanto reerguê-lo quanto mantê-lo no mesmo lugar. Wenders utiliza sua sensibilidade para traduzir, por meio de Travis, sua presença estrangeira na América: se ele faz parte daquele cenário, Wenders também se sente incluído. No entanto, ele não quer permanecer no lugar em que estava antes; o movimento passa a ser sua casa.

Paris, Texas.Filme 6

Paris, Texas.Filme 5

Paris, Texas.Filme 3

O filme se apresenta, conscientemente, como um retrato de uma década que prenunciou a “globalização”. Todos os seus outdoors e seus personagens deslocados, em quartos de hotel e ao longo de uma estrada, cores de rodovia se misturando com o pôr do sol, ou às placas dos veículos, são o prenúncio de uma melancolia despertada pela trilha sonora de Ry Cooder. Estar em meio ao deserto também significa estar em meio ao fim do mundo. Paris é uma cidade do interior do Texas, mas, como em Até o fim do mundo, pode ser tanto a aproximação quanto a distância, suscitada pelo nome, o mesmo da capital francesa e pelo relato da mãe de Travis. A figura de Nastassja Kinski ajuda a dar essa impressão europeia ao filme, com o contraste entre o cabelo alaranjado e o figurino rosa. O personagem está abalado não apenas pela separação daquela que não encontrará mais, mas também pela mulher em que acreditava para ter uma vida em comum. Seu filho, em sua caminhonete, passa a ser esta possibilidade, porém não apenas ele: a própria paisagem que Wenders filma com refinamento pode levar este personagem não a uma localidade determinada, mas compreender que estar entre dois pontos distantes é a maneira mais propícia para imaginar um reencontro.

Paris, Texas, Alemanha/ França/ EUA, 1984 Diretor: Wim Wenders Elenco: Harry Dean Stanton, Nastassja Kinski, Dean Stockwell, Aurore Clément, Hunter Carson Produção: Anatole Dauman, Don Guest Roteiro: L. M. Kit Carson, Sam Shepard Fotografia: Robby Müller Trilha Sonora: Ry Cooder Duração: 150 min. Distribuidora: Não definida

Cotação 5 estrelas

Vencedor.Palma de Ouro no Festival de Cannes

O homem da máfia (2012)

Por André Dick

O homem da máfia.Filme

Quando Andrew Dominik filma uma rua dos Estados Unidos como se fosse o último pedaço da América, com sua desolação árida, lembrando um faroeste, já sabemos estar não de uma exata reprodução do seu filme anterior, O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, mas diante de uma obra que tentará transformar suas imagens numa alegoria sobre uma determinada situação dos personagens. Dois bandidos, Frankie (Scoot McNairy) e Russell (Ben Mendelsohn), encontram Johnny “Squirrel” Amato (Vincent Curatola) para combinar um assalto a Markie Trattman (Ray Liotta), que tempos atrás havia sido esperto ao trapacear diversos envolvidos com jogos de carta noturnos. A cada cena, parece que Dominik quer reproduzir o que faz Scorsese em Os bons companheiros (também com Liotta). Além disso, temos trechos de debates da campanha à presidência dos Estados Unidos de 2008, entre Barack Obama e John McCain, e menções à política econômica de George Bush, naquele período retratado por O homem da máfia especialmente desoladora.
Um dos maiores incômodos ao se assistir O homem da máfia é este: o discurso, por um lado, de mafiosos com o mesmo ritmo de palavrões desgastados, e, por outro, a necessidade de deixar isso claro, pois sua analogia com a política é feita de maneira pouco sutil. Para Dominik, os mafiosos, pelo menos no período do filme, estão bastante interessados em política e na situação econômica. Eles podem estar num jogo de cartas noturno, mas seus ouvidos estão sintonizados nos discursos dos candidatos à presidência dos Estados Unidos.
Brad Pitt destoa como aquele que, segundo o título original, “mata suavemente”. Com uma linha de atuação já utilizada de maneira eficaz em O homem que mudou o jogo, ele interpreta Jackie Cogan, contratado por um advogado (Richard Jenkins) para, com o apoio de Mickey (James Gandolfini, de outra série de gângsteres, A família Soprano), tentar consertar as coisas. Sua composição às vezes flutua entre o bom humor de um sujeito pacato e de alguém que vai matar alguém até com certo semblante romântico, mas a necessidade de o diretor querer transformá-lo numa extensão de algum filme de Sam Peckinpah fica pelo caminho. Seu personagem não consegue ganhar vida, nem em suas conversas com o advogado, nem com Mickey. Pitt está visivelmente deslocado neste papel em que precisa exercer uma ambiguidade, entre o extremo da violência e a calmaria. É o personagem de Gandolfini, porém, o indício do que poderia ter sido O homem da máfia, com sua frustração pessoal em relação à amada e seu vício com a bebida.

O homem da máfia.Filme 4

O homem da máfia.Filme 6

São homens desolados: Jackie é apenas um assassino e coloca os negócios sempre acima, a dupla que realiza o assalto vaga sem rumo, e todos os homens que os cercam se mostram interessados apenas em conseguir um espaço a mais para a venda de almas e a punição franca contra aqueles que traem o andamento das coisas, mesmo que fora da lei. O diretor Dominik, com apoio do fotógrafo Greig Fraser, filma tudo como se fosse não apenas uma continuação dos filmes de gângsteres mais conhecidos, como também um retrato da América, assim como Friedkin faz em Killer Joe. Inúmeros são os lugares com a bandeira dos Estados Unidos (e há sempre a ameaça de algum duelo). O grande problema é que a narrativa principal acaba sempre cedendo espaço a uma segunda narrativa, que se pretende implícita, mas se torna ostensiva ao longo da metragem, encobrindo a primeira.
A partir de determinado momento, o interesse pelos personagens vai diminuindo, pois, para o diretor, é mais interessante filmar a trajetória de balas em meio a gotas de chuva, ou mostrar a violência de uma surra, detalhando a mistura das gotas da chuva com o sangue, com a estética de um videoclipe.
Nenhum sinal das críticas de Cronenberg, em Cosmópolis, tanto ao capitalismo quanto aos integrantes de protestos contra Wall Street. Parece um tanto constrangedor Dominik considerar que os resultados da economia americana também afetam os mafiosos, como se esses dependessem do estado de um país (há mesmo um que viaja em classe econômica, pelo menos, ele espera, até a posse do novo presidente). Fica parecendo, nesse sentido, que O homem da máfia tem exatamente muito a dizer ou desvendar. Pelo contrário, no filme, os bandidos em uníssono fazem uma coisa só: fingem ser o que não são. Tudo no filme de Dominik, como a fala pausada de Pitt e o recorrente fuck you, man, é apenas pose.

Killing Them Softly, EUA, 2012 Diretor: Andrew Dominik Elenco: Brad Pitt, Ray Liotta, James Gandolfini, Scoot McNairy, Ben Mendelsohn, James Gandolfini, Vincent Curatola, Richard Jenkins, Trevor Long, Sam Shepard Produção: Dede Gardner, Anthony Katagas, Brad Pitt, Paula Mae Schwartz, Steve Schwartz Roteiro: Andrew Dominik Fotografia: Greig Fraser Duração: 97 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Plan B Entertainment / 1984 Private Defense Contractors / Annapurna Pictures / Chockstone Pictures / Inferno Entertainment

2  estrelas

Dias de paraíso (1978)

Por André Dick

Dias de paraíso.Imagem 4

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

Dias de paraíso.Casa

Dias de paraíso.Imagem 3

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.
A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

Dias de paraíso.Filme

Dias de paraíso.Imagem

Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures

Cotação 4 estrelas e meia