JFK – A pergunta que não quer calar (1991)

Por André Dick

Este texto apresenta spoilers

Trágica e complexa são palavras que podem definir a morte de John Fitzgerald Kennedy, presidente norte-americano assassinado em 22 de novembro de 1963, no estado do Texas, em Dallas, durante um desfile pelas ruas da cidade. Baseado neste episódio da história americana e em duas obras, Crossfire: The Plot That Killed Kennedy, de Jim Marrs, e On the Trail of the Assassins, de Jim Garrison, com uma montagem que mistura cenas documentadas com outras fictícias, Stone constrói uma teia de personagens ligados a políticas e ideologias e consegue transformar uma rede de imagens em algo ressonante. E o principal: cineasta polêmico, vindo de dois filmes sobre a Guerra do Vietnã (Platoon e Nascido em 4 de julho), ele fornece uma ousadia tão grande que o filme provocou discussões e reclamações reais – igual a A hora mais escura, de Bigelow, que tem elementos dele, e a Todos os homens do presidente, seu precursor mais imediato, no qual Robert Redford e Dustin Hoffman interpretam dois jornalistas tentando desvendar o Watergate envolvendo Nixon.

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Para Jim Garrison (Kevin Costner) e, consequentemente, Stone, quem matou Kennedy foi uma conspiração formada por cubanos anti-Castro, a CIA, a máfia e até o próprio governo, e não o atirador Lee Oswald (no filme, interpretado por um impressionantemente parecido Gary Oldman). Este, depois do assassinato, logo foi preso, num cinema, e se costurou sua história de ligação com a KGB como uma explicação para o que teria acontecido com o presidente. Após um interrogatório feito pela polícia (nunca encontrado), foi morto por Jack Ruby (Brian Doyle-Murray), ligado à máfia, que também não conseguiu se manter vivo.
Oliver Stone coloca a pergunta: por que se desejar encobrir o assassinato de Kennedy, visto como a ação solitária de Lee Oswald? Para isso, tenta desvendar aquilo que ficou encoberto no acontecimento em Dallas, Texas. Num lugar associado à mitologia do velho oeste, o presidente sofreu a emboscada de um inimigo oculto, quando não teve chance de defesa. Mas Stone também está tratando daquele que é considerado como o país que tenta sempre estar à frente de qualquer questão política ou de guerras. No período em que Kennedy estava à frente do cenário político, havia conspirações de toda ordem para que os Estados Unidos organizassem a situação no Vietnã e se contrapusessem à União Soviética. Havia motivos para que se quisesse, segundo Stone e os livros nos quais ele se baseia, a eliminação de JFK, quando ele teria deixado de agir com a firmeza esperada diante desses fatores – e não apenas se restringem a uma ação de Oswald.

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Promotor público de New Orleans, Garrison é casado com Liz (Sissy Spacek ) e, sempre com um cachimbo, nos moldes de um Sherlock Holmes, tenta provar justamente isso desde o acontecimento, interrogando David Ferrie (Joe Pesci), o qual prende em determinado momento. Garrison parece desistir da investigação. Em 1966, conversa, numa viagem de avião, com o senador Long (Walter Matthau), que o leva a conhecer em detalhes o Relatório Warren e procurar outras provas, interrogando também Jack Martin (Jack Lemmon), agredido por ser visto como aliado dos cubanos; Willie O’Keefe (Kevin Bacon), que tinha relacionamento com Ferrie; um advogado (John Candy) chamado para defender Oswald; e Clay Shaw (Tommy Lee Jones), empresário que tinha contato com os cubanos e havia trabalhado na CIA. Tem como apoio dois assistentes, Bill Broussard (Michael Rooker) e Lou Ivon (Jay O. Sanders).
A primeira parte possui uma narrativa mais tensa e ágil, com Garrison, à procura de provas, visitando o local de onde, supostamente, Lee Oswald teria atirado no presidente, e segue indo atrás de todas as testemunhas possíveis, que presenciaram os tiros de perto e se pergunta: “De onde eles vieram?”. Na segunda parte, envolvido pelo caso, o promotor acaba se afastando da família, assim como se encontra com o misterioso Coronel X (Donald Sutherland), que traz as maiores teorias conspiratórias, envolvendo a Máfia, a CIA e o FBI. Além disso, afirma que Kennedy queria tirar as tropas norte-americanas do Vietnã e de que havia lido, na Nova Zelândia, a notícia de que Oswald havia matado o presidente norte-americano sem haver tempo suficiente para a impressão do jornal.

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Há, claro, uma dose de exagero de Stone, querendo ver Kennedy como uma espécie de político que gostaria de ter conduzido os Estados Unidos a um acordo com a União Soviética – e não à toa até J. Edgar Hoover aparece no meio da história como contrário a ele –, ou seja, gostaria de ter interrompido a Guerra Fria, assim como impedir a Guerra do Vietnã, o que faria com que o governo não investisse bilhões em armas, helicópteros e outros equipamentos. São questões dificilmente comprováveis, elucubrações de Oliver Stone, algumas tão verdadeiras quanto as viagens de Jim Morrison em The Doors, que ele dirigiu no mesmo ano.
Stone não é um cineasta de sutilezas, e ele funciona melhor assim, como em seus subestimados Um domingo qualquer e Reviravolta. Nisso, Garrison é visto como um modelo combativo de família, pretendendo reconstruir a imagem de Kennedy, destacando uma seleção de homens que escondiam por trás apenas ameaças, e quando os acordes de John Williams soam é como se a perfeição entrasse em cena. Seu comportamento diante da esposa é um tanto idealista – proporciona os diálogos mais inconsistentes do filme – e com os filhos, mas se trata, na verdade, de dar acesso ao espectador a uma trama ao mesmo tempo histórica e sobre a construção familiar. Se a narrativa reúne apenas teorias, ele o faz da maneira mais interessante já vista no gênero, tornando a investigação num thriller policial certamente precursor de Zodíaco. Nesse sentido, torna-se mais difícil negar o fascínio de JFK como cinema, e não aula de história. Dentro dos seus exageros, Stone é de fato um cineasta. Além disso, toca na ferida: a falta de explicação permite a qualquer um imaginar o que pode ter acontecido e, quando um indivíduo toca um sistema inteiro, é bem plausível acreditar que o óbvio não parece ser tão óbvio.

A narrativa é densa, com fotografia escura e os diálogos, extremamente rápidos. A maneira como Stone conta a história, com pistas acertadas, outras falsas, interrogatórios longos ou curtos e uma atmosfera constante de pressão (quando Ferrie tenta pedir auxílio policial para se proteger ou quando Garrison vai a um programa de TV e não pode mostrar as fotos que possui do caso), é extraordinária. Poucas vezes viu-se uma obra tão bem editada (por Pietro Scalia e Joe Hutshing) e fotografada (por Robert Richardson), inclusive mostrando o assassinato de Kennedy (por meio das imagens reveladoras de Abraham Zapruder) nos minutos finais, com uma profusão de detalhes inigualável em filmes desse gênero. Vencedor dos Oscars de melhor fotografia e montagem, tendo concorrido também a melhor filme, direção, ator coadjuvante (Jones), roteiro adaptado, trilha sonora e som, JFK é uma obra-prima.

JFK, EUA, 1991 Diretor: Oliver Stone Elenco: Kevin Costner, Jack Lemmon, Vincent D’Onofrio, Gary Oldman, Sissy Spacek, Michael Rooker, Laurie Metcalf, Gary Grubbs, Beata Pozniak, Joe Pesci, Walter Matthau, Tommy Lee Jones, John Candy, Kevin Bacon, Donald Sutherland Roteiro: Oliver Stone, Zachary Sklar Fotografia: Robert Richardson Trilha Sonora: John Williams Produção: A. Kitman Ho, Oliver Stone Duração: 205 min. Ano: 1991 Estúdio:  Canal+/Regency Enterprises/Alcor Films Distribuidora: Warner Bros. Pictures

Terra de ninguém (1973)

Por André Dick

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Poucos filmes são como Terra de ninguém, a estreia de Terrence Malick, no sentido de influenciar não apenas a geração seguinte, como também a sua própria e o cinema contemporâneo, sobretudo aquela leva de diretores-autores. Embora David Lynch seja o maior diálogo dessa obra de Malick, não apenas para o evidente Coração selvagem, como também para o discreto e com filiações a Buñuel Veludo azul, pode-se dizer que Tarantino também o escolhe como referência, principalmente quando escreveu Assassinos por natureza (um pouco mais do que no roteiro de True Romance), dirigido por Oliver Stone e um carbono em ritmo de MTV das cores interioranas e planas de Malick. Se a sátira que Tarantino e Stone fazem aos meios de comunicação é contundente, da mesma forma que seu estilo, afeiçoado a técnicas cada vez mais tortuosas (que Stone intensificaria em Um domingo qualquer e Reviravolta), ao centralizar suas lentes num casal psicopata (interpretado por Woody Harrelson e Juliette Lewis), que sai matando pelas estradas americanas, tratando da violência alimentada pela mídia, Terrence Malick apresenta uma versão que define a base do relacionamento entre dois jovens transviados, em que a cultura desempenha papel fundamental, com um conjunto de visões que deslumbra o espectador.

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No caso de Terra de ninguém (daqui em diante, spoilers) temos Kit Carruthers (Martin Scheen), 25 anos, que se apaixona por Holly Sargis (Sissy Spacek), de 15 anos, órfã de mãe, em Fort Dupree, na Dakota do Sul. Ele é uma espécie de réplica de James Dean, ou seja, é a cultura de seu tempo personificada – lembremos que em Coração selvagem Nicolas Cage gostaria de ser Elvis Presley. Kit inicia o filme catando lixo em becos da cidade, e logo em seguida encontra Holly brincando no jardim de casa, como se fosse uma Lolita, e a convida para passear– Malick é minucioso ao filmar as ruas cheias de árvores e tranquilidade, como se nada pudesse afetar este ambiente. Eles passam a se encontrar seguidamente, no entanto sem aprovação do pai (Warren Oates), que trabalha como pintor e pune a filha colocando-a em aulas de música. Quando Kit é menosprezado por ele, há um acerto de contas.
Ele e Holly, então, seguem pelas pistas do estado para Montana cometendo uma variedade de crimes. A narração de Holly (como em outros filmes de Malick) se contrapõe às ações que ambos exercem, e quando a polícia começa a caçá-los certamente temos uma narrativa que precede a de outros filmes conhecidos nesse sentido, como Louca escapada (de Spielberg) e Thelma & Louise (de Ridley Scott), enquanto a ingenuidade estranha dela certamente influenciou a menina do fraco Killer Joe. O filme de Malick dialoga com um casal que realmente existiu, Charles Starkweather e Caril Ann Fugate, que cometeram assassinatos entre 1957 e 1958. Sem dúvida, é o momento de estreia de Malick, e o momento em que mais procura dialogar, embora de maneira original, com a plateia. No entanto, Malick ainda não consegue, como em seus filmes posteriores, transformar essa rebeldia em mais do que um retrato do vazio e da tentativa de um jovem sem perspectiva – no caso, Kit – em se destacar agindo como um serial killer e exercendo um domínio sobre a namorada, ainda que apresente uma desenvoltura incomum na apresentação da narrativa.

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Terra de ninguém.Martin SheenO que se destaca, em todas as impressões de Terra de ninguém, é que ele se compõe como uma espécie de faroeste contemporâneo, em que o personagem central sobe, sem nenhuma espécie de sentimento, em cima de uma vaca, em meio à sua procura por um novo trabalho, em que a paisagem é um lugar para os personagens deslizarem rumo ao desconhecimento e, como em toda obra de Malick, à natureza. Assim como são figuras comuns e distorcidas, Kit e Holly querem permanecer deslocados, à margem, e focalizam no desastre pessoal uma maneira de chamar a atenção. Não por acaso, na fuga do primeiro crime – em relação ao qual Holly parece não ter consciência, simplesmente obedecendo ao namorado –, eles se refugiam no meio de um bosque, onde passam a conviver com a natureza. Enquanto Holly fica na sua cabana em cima da árvore, Kit vai pescar com uma lança de madeira. Dentro do universo contemporâneo, Malick fecha os personagens numa espécie de redoma que evoca um Éden, que se anuncia em seus filmes mais recentes (há alguns detalhes visuais de Holly à beira do rio parecidos com aqueles que envolvem o casal de Amor pleno na maré perto da abadia de Saint-Michel). Esta névoa em busca de uma ingenuidade perfeita e que constitui o melhor momento do primeiro longa de Malick – até a primeira meia hora – logo se dissipa para dar lugar a uma série de refúgios e crimes. A maioria deles se torna um tanto redundante pela frieza e inexpressividade do casal (talvez aquele momento que melhor exemplifique isso seja quando os dois entram na casa de um ricaço, como se estivessem chegando para uma festa anunciada no local, mas cuja finalidade não tem um sentido capaz de alcançar de maneira decisiva o homem).
Malick quer mostrá-los, mais do que um como um casal perturbado, como indivíduos que desejam se afastar do mundo. Há, como no filme de Stone com base no roteiro de Tarantino, uma crítica à mídia. Kit, em determinado momento, acredita realmente que lembra James Dean, mas, enquanto este certamente se concentra no mundo idealizado pela pintura do pai de Holly, Kit se revela uma espécie de assustadora coincidência com o seu tempo desgovernado. A narração em off de Holly, porém, se constitui no elemento que coloca todos os outros em situação de estranheza: ainda assim, é capaz de lembrar mais um diário de adolescente sem visão sobre os próprios acontecimentos do que uma espécie de filosofia em imagens, como vemos na filmografia posterior de Malick. Delicada e sensível, a narração imagina um mundo totalmente à parte daquela ação que Malick está mostrando por meio de seus personagens. Holly é também Hollywood.

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Terra de ninguém.Cena 15As paisagens ficam cada vez mais desoladas, como os próprios personagens do filme e não existe aqui a noção de que “é tudo limpo e honesto”, como narra a personagem central de Amor pleno. Inevitável perceber como os personagens, que não conseguem implicar nenhum afeto em suas ações, são extremamente solitários e restritos a apenas um olhar: aquele que conduz os outros a partir de suas ações. Nesse sentido, o fato de ser um faroeste contemporâneo deixa claro que, aqui, quem pretende evocar a linha dos cowboys precisa não enfrentar os fora da lei, mas um corpo policial de fazer cada personagem enfrentar sua rotina derradeira. Não se deve esquecer que o filme foi lançado há 40 anos atrás, ou seja, uma série de abordagens até então não havia sido feita, o que não o impede de não trabalhar com toda sua propriedade o material que tem à mão, não no sentido estético – Terra de ninguém continua sendo um dos mais belos filmes já feitos –, mas de conteúdo. Isso não tira, de qualquer modo, a evidência de que, se não consegue ser tudo o que prenuncia, e mesmo justificar o culto que há em torno, em razão de ser a estreia de um cineasta fundamental como Malick, é um dos filmes mais importantes e decisivos para os rumos do cinema depois da década de 1970.

Badlands, EUA, 1973 Diretor: Terrence Malick Elenco: Martin Sheen, Sissy Spacek, Warren Oates, Ramon Bieri, Alan Vint, Gary Littlejohn, John Carter, Bryan Montgomery, Gail Threlkeld, Charles Fitzpatrick, Howard Ragsdale, John Womack Jr., Dona Baldwin, Ben Bravo Produção: Terrence Malick Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Tak Fujimoto, Stevan Larner, Brian Probyn Trilha Sonora: George Aliceson Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Carl Orff, Nat King Cole, Erik Satie Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Pressman-Williams Productions / Jill Jakes Production / Badlands Company

4 estrelas

História real (1999)

Por André Dick

Embora se saiba que David Lynch não faz filmes lineares, aqui ele muda um pouco, sem, no entanto, abdicar de seu estilo. A primeira sequência é típica dele: mostra uma mulher tomando banho de sol num pátio esverdeado, como Jeffrey Beaumont, ao final de Veludo azul, e a câmera vai se aproximando de uma casa branca com detalhes de azul. Em seguida, um senhor aparece procurando por Alvin Straigt (Richard Farnsworth) – e a sua calça de brim se harmoniza com o azul da casa. A mulher se intromete, mas ele não lhe dá atenção. Alvin está caído em sua cozinha. Imaginam que esteja tendo um ataque cardíaco, enquanto ele só precisa de ajuda para se levantar. A indefinição do velho amigo em chamar uma ambulância ou insistir para que ele acompanhe os demais companheiros numa diversão representa a fina ironia que perpassa a obra de Lynch, com grande destaque ainda mais em Cidade dos sonhos. Em seguida, mostra-se a chegada da filha de Alvin, Rose (Sissy Spacek), que tem problemas mentais e faz casinhas para pássaros (pintarroxos ou não), para levá-lo urgentemente ao médico. Este lhe diz, depois de um olhar cansado de Alvin sobre os objetos do consultório, que precisará usar andador e precisará deixar de fumar, em razão da diabetes. Na sequência seguinte, ele acende um cigarro.

Trata-se de um roteiro escrito a quatro mãos, por Joan Roach e Mary Sweeney, então casada com Lynch e montadora (e por vezes produtora, como no caso de A estrada perdida) de seus filmes (aliás, é dela a montagem de História real). Parece que Lynch não queria contar essa história – ele habitualmente escreve suas histórias –, mesmo que soubesse da realização do roteiro e da ideia. No entanto, não lhe agradava a ideia de filmar a trajetória de Alvin Straight, que, em 1994, foi de Laurens, Iowa, para Mr. Zion, Wisconsin, num cortador de grama. O que deve ter feito com que mudasse de ideia foi certamente o fato de a história apresentar uma sensibilidade distinta e de que depois de A estrada perdida seu cinema estava sendo rotulado. Ele considera História real seu filme mais experimental, o que é um exagero (continuam sendo Eraserhead e Império dos sonhos), mas, de qualquer modo, também assim ele não se deve concordar com a crítica de que seus filmes são bizarros e de que este mostra pessoas comuns em situações corriqueiras – quando aqueles apresentam, em suas imagens, imagens cuidadosas como as que se apresentam aqui. É seu filme mais linear desde O homem elefante, porém tem todos os elementos (a estrada, o fogo, a eletricidade, as paragens do interior, a cidadezinha lembrando Lumberton e Twin Peaks, casas que parecem caídas, pontes sobre rios). E, mesmo sem a estranheza habitual – o que certamente fez com que, depois de exibido no Festival de Cannes, a Walt Disney tivesse tido o interesse em distribuí-lo –, é com tais elementos que o espectador se vê surpreendido, à medida que Lynch consegue desenhar todas suas obsessões numa espécie de quadro aberto ao entendimento mais generalizado, embora não simplista ou deslocado para o efetivamente piegas.

A viagem que Alvin faz se dá por causa do irmão, Lyle (em uma curta aparição, mas expressiva, do sempre ótimo Harry Dean Stanton, que havia aparecido na versão cinematográfica de Twin Peaks), que teve um ataque cardíaco. Ela soube da notícia através de um telefonema em meio a uma tempestade com relâmpagos: “Adoro essas tormentas com relâmpagos”, diz Alvin à filha, com iluminações elétricas no rosto de cada um recorrentes na obra de David Lynch (não é difícil imaginar outros personagens dele olhando para esta luz, como a Laura Palmer ou o Fred Madison de A estrada perdida). A partir do dia seguinte, ele passa a se preparar para a viagem. Logo que a inicia, o seu antigo cortador de grama, já sem estrutura, acaba pifando. E ele vai atrás de outro para realizar a viagem.
Doente e sem enxergar direito, coloca a aventura como um compromisso familiar, em meio a lembranças da II Guerra Mundial, da qual participou, como se fosse uma regeneração da briga que o afastou do irmão. O filme basicamente mostra ele passando de cidade em cidade, embora nunca se estabeleça apenas nessa premissa: a sensibilidade contida em cada sequência representa os melhores elementos de Lynch, e a interpretação do fazendeiro, feita por Richard Farnsworth, é excelente (ele foi indicado, inclusive ao Oscar; depois, descobriu estar com câncer e, infelizmente, acabou tragicamente se suicidando). Cada pessoa que ele conhece (como Tom, feito por um dos atores preferidos de Lynch, Everet McGill, que lhe vende o trator, a menina grávida que fugiu de casa e a mulher que se encontra desesperada por ter atropelado mais um cervo na estrada, no momento mais surreal do filme) é um motivo para ele recordar sua trajetória, entre caminhões e ciclistas –quando encontra esses, um deles lhe pergunta: “O que é pior quando se envelhece?”, ao que Alvin responde: “É não se recordar de quando é jovem”.

O que Lynch busca é retratar as famílias e os velhos do interior norte-americano, quando em Veludo azul, Twin Peaks e Coração selvagem o interesse era pela aceleração da juventude. Entretanto, a maneira como cria a ambientação (as lojas, os figurinos das pessoas do interior) tem todo o seu direcionamento singular. Para Lynch, Alvin, com seu cortador de grama de 1966, representa a sustentação dos Estados Unidos. Várias vezes, ao longo do filme, ele cria uma analogia do cortador com enormes tratores que fazem colheita em campos de milho e trigo, em panorâmicas raras na carreira de Lynch (parecidas com aquelas de Duna, sendo o fotógrafo, o excelente Freddie Francis, aqui em seu último trabalho, o mesmo).
A tentativa de Alvin de vencer as próprias limitações, o cansaço da velhice, a preocupação com o afastamento imposto pelo Estado de Rose dos seus netos, encontram em sua vontade uma prova para desbravar um país desconhecido, tanto para ele quanto para o espectador. Sua aventura não tem o elemento rebelde que emprega, por exemplo, o personagem real de Na natureza selvagem, e sim o de alguém que precisa reencontrar seu irmão para resolver o que, na verdade, não pode, pois ficará sempre implícito. O personagem pode estar limitado pelo veículo em que viaja, mas sua visão é grandiosa, como outros personagens de Lynch: o Paul Atreides de Duna e o agente Cooper de Twin Peaks. Temos os Estados Unidos em origem durante toda a metragem, com suas paisagens tristes, povoados abandonados, estradas desertas, pessoas que o abrigam solidariamente e têm a estranheza dos habitantes de estrada de Coração selvagem, embora saibamos que, desta vez, há algo mais tranquilo esperando o personagem, pelo menos uma sombra à beira de árvores. Vejamos, por exemplo, a sequência em que uma casa de beira de estrada pega fogo, enquanto os bombeiros tentam apagá-lo, sob o olhar de alguns integrantes da família de Danny Riordan (James Joe Cada, memorável), do outro lado da pista, sentados em suas cadeiras, como se de dentro de uma pintura de Edward Hopper – família que abriga Alvin no pátio de sua casa.

A viagem esconde sobretudo as lembranças da II Guerra Mundial, onde Alvin era franco-atirador. A conversa que ele tem com um amigo da família, Verlyn Heller (numa curta e extraordinária atuação de Wiley Harker), numa lanchonete, além de mostrar a grande apresentação de Farnsworth, é um diálogo com os temores e lembranças de toda uma nação – perguntado se não tem medo de viajar, Alvin responde: “Por que teria medo, depois das trincheiras da II Guerra, de milharais?” –, além daquela tão significativa quanto: Alvin acampado num cemitério, recebendo a visita de um padre da igreja local.
Se A estrada perdida, filme anterior, mostrava a estrada como um símbolo da fuga e da confusão psicológica dos personagens, em História real, Lynch a filma com um realismo e a fotografia excepcional de Francis. É uma estrada direcionada para o reencontro, com uma figura familiar e com o passado. A sua visão desse universo interioriano lembra muito, na fotografia e na organização de cores, Dias de paraíso – e não vejo como dúvida que, ao lado de Malick e de Walter Salles no recente Na estrada, Lynch tenha dado a melhor visão sobre o que se esconde nas paisagens longínquas e inabitadas dos Estados Unidos, algo certamente com densidade humana, inesquecível e universal.

The straight story, EUA/FRA, 1999 Diretor: David Lynch Elenco: Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Harry Dean Stanton, James Joe Cada, Wiley Harker, Jane Galloway Heitz, Everett McGill, Jennifer Edwards-Hughes, Barbara Robertson, John Farley Produção: Neal Edelstein, Mary Sweeney Roteiro: John Roach, May Sweeney Fotografia: Freddie Francis Trilha Sonora: Angelo Badalamenti Duração: 111 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Canal+ / Channel Four Films / Asymmetrical Productions / CiBy 2000 / Les Films Alain Sarde / StudioCanal / Walt Disney Pictures / The Picture Factory / The Straight Story Inc.

Cotação 5 estrelas