Estou pensando em acabar com tudo (2020)

Por André Dick

Charlie Kaufman se tornou conhecido no final dos anos 90 com o roteiro de Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze, uma das peças mais originais do cinema norte-americano, em que se fazia presente uma espécie de mescla entre ficção científica, sonho e imaginação em igual escala. Nos anos 2000, ele repetiu a parceria com o diretor Jonze em Adaptação e fez o roteiro, premiado com o Oscar, de Brilho eterno de uma mente sem lembranças, dirigido por Michel Gondry, com Jim Carrey e Kate Winslet como um casal que se mantinha em contato ao longo de memórias produzidas ou esquecidas. Em 2008, Kaufman finalmente estreou como diretor em Sinédoque, Nova York, uma impressionante versão sobre como os tempos podem se misturar na existência de um indivíduo ligado a uma peça de teatro, estrelado por Philip Seymour Hoffman.
É curioso que justamente Jesse Plemons, que interpreta o filho de Hoffman na obra-prima O mestre, seja o personagem Jake em Estou pensando em acabar com tudo, novo filme de Kaufman, desta vez baseado num romance de Iain Reid, que deseja levar sua namorada (Jessie Buckley), com quem sai há em torno de seis semanas, para conhecer seus pais na fazenda rural em Ocklahoma de onde veio. Na ida para o local, ela se sente em dúvida sobre se mantém o relacionamento com Jake ou não, se tudo deve ser mais do que uma visita protocolar Chegando à fazenda, Kaufman mostra o casal indo visitar, embaixo da nevasca que os acompanhou ao longo da viagem na estrada, indo ver os animais no celeiro, antes de se depararem com o estranho comportamento do cão da casa, que parece estar num looping temporal.

É neste ponto, talvez, que se encontre as definições mais interessantes para a história:  paralelo entre homens e a natureza. É como uma conversa sobre poesia em determinado momento: perguntado por que há identificação com ela, ela fala da universalidade, e é justamente nesta que o filme de Kaufman se apoia para, afinal, falar de tudo que pode estar ou não relacionado ao espectador e com experiências com as quais ele, se ainda não conviveu, talvez venha a ter com a passagem do tempo. Isso porque é uma das poucas obras que mostram exatamente como como a impressão pessoal pode se estender a outras, criando um grande mosaico, perfeito para ser entendido ou apenas apreciado a distância e abandonado, sem chances de uma clara explicação.
Na casa, a jovem conhece os pais de Jake (Toni Collette e David Thewlis),  que agem, a princípio, de maneira estranha – parecendo a família de um dos episódios de No limite da realidade –, quase como se estivéssemos vendo um filme de suspense, mas aos poucos se vê que é apena sum artifício de Kaufman para colocar seus questionamentos existenciais de Sinédoque, Nova York e de sua animação Anomalisa novamente em cena. O diretor começa, sem spoilers, a colocar os personagens numa espécie de vitrine para acompanhar a transformação da própria vida. Se eu não estivesse tentando deixar em enigma o que acontece, basta dizer que Kaufman não se interessa em nenhum momento a ser claro, evidente ou explicar seus conceitos. A obra de Reid na qual o filme se baseia é antilinear e enigmática, porém Kaufman a subverte ainda mais, não procurando um esclarecimento final, mesmo um tanto inconclusivo. Como em Brilho eterno de uma mente sem lembranças, a narrativa literária se rende a uma outra espécie de artista, que coloca seu olhar pessoal sobre ela.

De longas discussões sobre poesia até referências sobre musicais do cinema e sobre Uma mulher sob influência, de John Cassavetes, resultante, ao que parece, de um livro de críticas de Pauline Kael no quarto de Jale, Estou pensando em acabar com tudo trata de forma instintiva da linguagem que nos move e nos caracteriza, dos sonhos que a linguagem proporciona e de como o ser humano tenta imitar em sua vida referências artísticas, o que é um prolongamento decisivo de teorias estruturalistas, de Lacan a Barthes.
Por isso, torna-se tão importante o diálogo da namorada de Jake com os pais de seu namorado sobre a pintura, ou os pedidos dele para que seu pai tire fotografias. Kaufman quer mostrar uma realidade artística em que os personagens estão inseridos e cria uma atmosfera nebulosa e sombria – o filme se passa, dentro do carro ou na casa, ou no celeiro, ou em outras duas ambientações ao longo da estrada, uma delas muito semelhante àquelas de A caixa, de Richard Kelly – para situar os personagens dentro de um espelho enorme deles mesmos, com uma lentidão europeia captada de modo incontestável pelo trabalho de fotografia de Łukasz Żal (indicado ao Oscar por Guerra fria, de Pawlikowski). É notório como ele espalha ao longo da narrativa pistas visuais para que haja um diálogo entre tempos distintos. Para isso, as atuações principalmente de Buckley e Collette são extraordinárias, na mistura entre contenção, no caso da primeira, e certo exagero, no caso da segunda.

Não há, igual às outras obras de Kaufman, uma tendência natural ao otimismo. Parece tudo um pouco seco, mas, por outro lado, é bastante emocional e mesmo sentimental, lembrando alguns instantes de A árvore da vida, de Malick. Ele não e coloca a distância dos personagens com sua série de referências intelectuais, contudo os coloca uma espiral de sentimentos mesclados entre a realidade, o imaginado e o onírico. O roteiro transmite a estranha sensação de que cada momento e decisão podem englobar todos os outros, de que por mais que nos afastemos de uma experiência ela vai acompanhar o indivíduo por toda a vida e que mesmo os arrependimentos o formam e o estruturam. E em meio a isso imagina-se uma atemporalidade pela imagem de um zelador, muito próxima, em conceito, não em realização, daquela que Kubrick faz para Jack Torrance em O iluminado. É uma constante variação entre descoberta, encontro, perda e abandono, e sua circularidade se dá nas próprias idas e vindas que, a partir de determinado ponto, marcam presença. Jake se sente incapaz de lidar com a ideia de morte, mas ela está em referências ao destino dos animais (inclusive na cena do jantar) ou mesmo a um sorvete que o vincula à infância e à ideia de um musical e não pode ver desperdiçado, mesmo em meio a uma nevasca.
Nesse sentido, não parecem deslocadas as conversas sobre arte, que poderiam soar autoindulgentes, mas do jeito que se colocam manifestam a mesma ideia de Adaptação, em que Nicolas Cage fazia dois irmãos gêmeos interessados em roteiros de cinema, e principalmente Sinédoque, Nova York, sobre a experiência teatral. Aqui, o teatro toma uma ligação fundamental com o cinema e tudo o que acontece a cada passagem parece remeter a uma outra. Ficam alguns enigmas pelo caminho, como uma obra que é muito difícil de ser definida ou enquadrada num gênero – termo explorado numa conversa divertida em família, no entanto com clima de tensão irremediável – e que, sob determinado ponto de vista, pode ser mesmo vista como uma obra de gênio.

I’m thinking of ending things, EUA, 2020 Diretor: Charlie Kaufman Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Collette, David Thewlis Roteiro: Charlie Kaufman Fotografa: Łukasz Żal Trilha Sonora: Jay Wadley Produção: Stephanie Azpiazu, Anthony Bregman, Robert Salerno, Charlie Kaufman Duração: 134 min. Estúdio: Likely Story, Projective Testing Service Distribuidora: Netflix

Mulher-Maravilha (2017)

Por André Dick

O universo compartilhado da DC Comics no cinema teve início há quatro anos com O homem de aço, de Zack Snyder, seguido por Batman vs Superman, do mesmo diretor, e Esquadrão suicida, ambos lançados no ano passado. Em um ambiente no qual a disputa da companhia com a Marvel cresce a cada filme, Mulher-Maravilha, o primeiro blockbuster dirigido por uma cineasta, Patty Jenkins, parece trazer uma certa nostalgia em seu início principalmente.
Na ilha de Themyscira, Diana Prince (na infância Lilly Aspel e na adolescência Emily Carey) é educada e treinada para ser uma amazona guerreira pela tia Antiope (Robin Wright), com todo o conhecimento e preparo físico possíveis, mesmo contra a vontade de sua mãe, Hippolyta (Connie Nielsen). Essa premissa familiar já seria suficiente para ver no filme de Jenkins, diretora de Monster, pelo qual Charlize Theron ganhou o Oscar de melhor atriz, um dos fundamentos desse gênero: o respeito às HQs, e o roteiro aposta nisso, apropriadamente interessante. Há uma preocupação em contar a origem das amazonas, com uma volta à mitologia de Zeus, e fica clara a influência do Zack Snyder, que ajudou a escrever a história com Scott Heinberg (responsável pelo roteiro final) e Jason Fuchs, principalmente nas imagens e na tonalidade das figuras gregas, remetendo a 300.

Quando Diana já adulta (Gal Gadot) presencia a queda do avião do norte-americano Steve Trevor (Chris Pine), e imediatamente se depara com a Primeira Guerra Mundial, temos um exemplo de como abordar a história com elementos de fantasia. Ele é um espião que está atrás de informações relativas a alemães. Poucas vezes isso foi feito, mais exatamente naquela obra que serve de comparativo com este, Capitão América – O primeiro vingador, com elementos também de Rocketeer, em que o herói enfrentava nazistas na Hollywood dos anos 40. Se o filme de Johnston insistia em certa narrativa fragmentada, Mulher-Maravilha tenta ser mais completo: é visível que não há os saltos propostos na narrativa de Johnston, nem uma excessiva vontade de converter cada imagem num frame de HQ.
Para um filme que inicia com belíssimo visual da ilha, em trabalho de fotografia magistral de Matthew Jensen (Game of Thrones), repleto de cores, é de se imaginar que há um novo tom adotado para a DC. No entanto, esse novo tom não percorre toda a narrativa: na maior parte das tomadas de guerra, muito realistas e bem feitas por Jenkins, com uma aura de cinema antigo, a atmosfera é soturna. O design de produção de Aline Bonetto, colaboradora de Jean-Pierre Jeunet, em O fabuloso destino de Amélie Poulain e Estranho amor – que possui cenários de guerra parecidos com as de Mulher-Maravilha – e o figurino de Lindy Hemming, que recebeu um Oscar por Topsy-Turvy e participou da trilogia Batman de Nolan, são notáveis.

Ambos os trabalhos acrescentam ao universo da DC, porém não destoam, ou seja, nada aqui é tão claro que deixe de lado uma ambientação atmosférica densa. Não parece haver humor excessivo, de qualquer modo, a não ser quando Mulher-Maravilha entra em contato com Etta Candy (a simpática Lucy Davis, subaproveitada) e a Londres de 1918, que remete à Nova York de Animais fantásticos e onde habitam, com seus detalhes inumeráveis, ou quando procura “guerreiros” para acompanhá-la no front de batalha – momentos em que o filme tenta agradar excessivamente ao público. Os personagens do general alemão Ludendorff (Danny Huston, na atuação problemática do elenco) e uma colega (Elena Anaya) dialogam mais com o universo de Harry Potter e Animais fantásticos e se sentem um pouco deslocados aqui. Nesse contexto, a figura da Mulher-Maravilha se dá com certa desenvoltura, principalmente quando em Londres se mostra intelectualmente já à frente de seu tempo. Há um subtexto claro aqui de temas voltados ao feminismo, com a determinação de Jenkins em lidar com eles de forma interessante e não pretensiosa.
Além disso, o século de distância que afasta essa Diana de Batman vs Superman, tendo Bruce Wayne em seu encalço, é exatamente aquele em que a heroína fica mais experiente e a mitologia se transforma em fantasia: a Primeira Guerra é o verdadeiro apocalipse que se materializa em Gotham City no filme de Snyder. A ilha Themyscira representa o oposto do mundo masculino, que seria exatamente o da guerra sem nenhuma razão: a oposição se dá não apenas pelo uso das cores na primeira parte em oposição aos momentos em que Diana sai do lugar onde nasceu. A Ilha Paraíso, como também é conhecido o lugar, presencia a queda da humanidade com a chegada do homem. E este, segundo Diana Prince, precisa ser salvo. Mas, no momento em que ela realmente conhece os horrores da guerra, talvez ele não queira exatamente isso. Jenkins procura fazer quase uma análise da guerra à parte de seu filme – que tem o foco evidente na fantasia. Isso por vezes engrandece a temática e por outras desvia o foco do que apresenta em cenas-chave. Já o discurso sobre deuses e humanos e a tentativa de Jenkins em representá-los como pinturas em movimento – quando Snyder expunha o tema por meio da pintura na sala de Lex Luthor em Batman vs Superman – é um tema que vem desde O homem de aço no universo compartilhado da DC.

Com um personagem fundamental criado em 1941 por William Moulton Marston, mesmo com essa parcela de mostrar o primeiro filme grande com uma super-heroína, Mulher-Maravilha não parece carregar o risco de Batman vs Superman e mesmo O homem de aço. Trata-se de uma aventura com elementos clássicos, apresentando um um otimismo mais evidente, na construção que ele faz da relação entre os super-heróis mostrados e suas famílias e na esperança de um mundo melhor, mesmo que de maneira conflituosa – o que é base desses personagens nas HQs e animações contemporâneas. Em Mulher-Maravilha, essa relação se dá desde o início, na ilha de Themyscira e forma a personalidade de Diana, mas, ao contrário de Batman e Superman, ela se sente um tanto desprendida do seu passado, e daí a principal diferença de enfoque. Além de tudo, situado durante os anos 1910, não seria possível Jenkins aplicar em sua personagem o mesmo nervosismo da modernidade em que Batman e Superman estão inseridos, com suas guerras a serem enfrentadas a partir de invasões alienígenas ou psicopatas com acesso à mais recente tecnologia para manipular o governo.

Há méritos evidentes para Jenkins em extrair uma boa atuação de Gal Gadot, que se sentia com uma participação tímida em Batman vs Superman e aqui realmente se encaixa no papel, fazendo uma boa parceria com um Chris Pine à vontade, como se estivesse a bordo da Enterprise, assim como na construção de algumas cenas de ação, em que os efeitos visuais são balanceados entre elementos de realismo e fantasia (o laço da Mulher-Maravilha é especialmente bem feito e confere impacto às cenas em que surge). Lamenta-se que Pine não seja suficientemente aproveitado da metade para o final, o que prejudica bastante a fluidez até então da narrativa, e é justamente ele que provoca uma cena antes do final emocionante.
Mais conhecida antes por participar da série Velozes e furiosos, Gadot apresenta um crescimento dramático, mesmo que não completo, principalmente no terceiro ato, que reduz de forma significativa as qualidades do filme (e a metragem se excede em pelo menos 15 minutos). Ela já havia se mostrado uma boa comediante em Vizinhos nada secretos, ao lado de Zach Galifianakis, e aqui novamente seu timing para humor é muito bom. No entanto, o discurso que ela apresenta sente-se didático demais, mesmo expositivo, pois Jenkins naturalmente está aproveitando a figura da Mulher-Maravilha mais para simbolizar um discurso bem dosado à guerra do que para inseri-la numa trama distribuída em camadas. No entanto, para quem está desconfiado de quem forma a opinião de alguns espectadores, não se engane: é tudo o que eles querem. Nada decisivamente melhorou ou piorou: tudo voa ao sabor das circunstâncias, assim como a Mulher-Maravilha em muitas sequências, desta vez sendo recebida em geral não com uma dose tendenciosa de ver apenas falhas onde há verdadeiros méritos.

Wonder woman, EUA, 2017 Direção: Patty Jenkins Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Robin Wright, Danny Huston, David Thewlis, Connie Nielsen, Elena Anaya, Lucy Davis, Saïd Taghmaoui, Ewen Bremmer, Eugene Brave Rock Roteiro: Allan Heinberg Fotografia: Matthew Jensen Trilha Sonora: Rupert Gregson-Williams Produção: Charles Roven, Deborah Snyder, Zack Snyder, Richard Suckle Duração: 140 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Atlas Entertainment / Cruel & Unusual Films / DC Entertainment

 

A teoria de tudo (2014)

Por André Dick

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Ao longo da história do cinema, não são poucas personalidades que suscitaram a criação de filmes. Embora se possa dizer que nos últimos anos foi criado quase um novo gênero – o da cinebiografia –, também é possível avaliar o quanto essas histórias inspiram não apenas a equipe que as transpõe para as telas, como também o público que pode conhecer muitas  figuras que às vezes não ficariam tão conhecidas de outro modo. Em relação a este segundo ponto, não seria o caso exatamente de A teoria de tudo, que relata parte da história vivida por Stephen Hawking, visto como o maior físico teórico e cosmólogo da atualidade. Lidar com um nome que se torna, dentro de seu campo, numa espécie de mito, não é fácil para um cineasta e para o ator encarregado de interpretá-lo. Por isso, não deixa de ser interessante que A teoria de tudo pareça, à primeira vista, um filme até descompromissado e, dentro daquilo que costuma ser visto como cinebiografia, sem a pretensão de definir o homem que retrata.
Se, por um lado, isso pode impedir o espectador de ter acesso às teorias mais detalhadas de Hawking, por outro, temos acesso à vida do biografado, mesmo que seja pela parcela de relacionamento com sua primeira mulher, Jane, e seus filhos, o que pode ser avaliado como uma oportunidade de instigar um lado mais acentuadamente dramático e explicado pelo fato de o filme se basear no livro Travelling to Infinity: My Life with Stephen, escrito exatamente por ela.

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O filme de James Marsh – o mesmo do elogiado O equilibrista – inicia mostrando Hawking (Eddie Redmayne) numa festa na Universidade de Cambridge, onde conhece Jane Wilde (Felicity Jones). As escolhas de Marsh para a fotografia do filme já se mostram neste instante, quando há uma luz azulada que dá contorno ao ambiente e aos personagens. Essa cor azul se contrapõe logo a uma festa em que os dois vão juntos, na qual o diretor de fotografia Benoît Delhomme faz o amarelo de um carrossel se corresponder com os fogos de artifício no céu. A teoria de tudo reserva esses fogos de artifício como as verdadeiras estrelas para onde os olhos de Hawking apontam. Neste sentido, Marsh está interessado na relação que Hawking estabeleceu com Jane e os filhos que viriam a ter juntos, assim como o dia a dia vivido pela mulher para também se adequar à realidade do marido com quem casou.
O momento em que ele passa a ter mais problemas motores, na universidade, antecipando a doença degenerativa ELA (esclerose lateral amiotrófica), dialoga diretamente com a maneira como Ron Howard apresenta o matemático feito por Russell Crowe em Uma mente brilhante, mas quem realmente consegue proporcionar dosagem às cenas de maneira equilibrada e bastante justificada é o ator Eddie Redmayne. Ele já havia feito alguns anos atrás o assistente que se apaixona por Marilyn Monroe nos bastidores de uma filmagem em Sete dias com Marilyn e Marius, o amado de Cosette (Amanda Seyfried), no musical subestimado Os miseráveis, mas é aqui que ele tem a grande oportunidade de demonstrar seu talento. Sabendo-se que o cinema não é apenas uma maneira de verter um biografado para a tela de maneira convincente, é interessante dizer que Redmayne em nenhum momento foge ao que se espera de uma grande atuação. Ela não é exagerada, tentando acentuar os problemas de Hawking, nem tímida, no sentido de não querer arriscar onde o biografado certamente pensaria se é interessante que sua vida seja revelada de modo aberto na tela, em sua intimidade. Possivelmente se fosse um ator comum, Redmayne cairia numa simples reprodução das dificuldades de Hawking: ele é um ator que, pelo contrário, consegue ser espontâneo nessa reprodução, sem cair em exageros. Nesse campo, só há uma atuação nas últimas décadas que pareça chegar ao que ele alcança em A teoria de tudo: a do escritor e artista plástico Christy Brown, feita por Daniel Day-Lewis, em Meu pé esquerdo, com o qual recebeu seu primeiro Oscar.

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O diretor Marsh conduz os tons amarelos de momentos em que Hawking e sua esposa se casam para ambientes mais fechados, onde Hawking lida com a descoberta de equipamentos que podem ajudá-lo ou mesmo na avaliação em sua universidade – e o professor que mais o ajuda é Dennis Sciama (David Thewlis, dentro do tipo de papel eficiente que costuma desempenhar) –, quando recebe a desconfiança também de alguns pares não tão interessados em aceitar as suas teorias sobre o universo. O que Marsh faz – e não é comum numa cinebiografia de um físico renomado – é trazer humor a algumas situações, principalmente quando ele conhece Elaine Mason (Maxine Peake), apoiado numa trilha sonora não menos do que bela de Jóhann Jóhannsson. Há um limite tênue entre a dificuldade vivenciada por Hawking, e que o espectador normalmente não veria como um espaço para humor, e a verdadeira experiência que mostra Marsh ao revelar os bastidores de sua vida, também desenvolvidos quando Jane conhece Jonathan Jones (Charlie Cox). Nesse momento, o filme desenha uma passagem do ambiente universitário para o conflito familiar e religioso, que acaba dialogando com a própria aversão de Hawking à figura divina.
Se em alguns momentos essa abordagem acaba sendo direta demais, e Marsh não consiga mostrar o suficiente o real conflito entre esses personagens, para suas vidas e em relação à vida do outro, os compromissos assumidos ou abandonados, até onde pode despertar o sentido de manter a família – e às vezes os lances de roteiro se pareçam muito ajustados a um filme que estreia na temporada do Oscar –, quando consegue adotar um equilíbrio, ela mostra a verdadeira dor que ronda A teoria de tudo. É quando o personagem, que abre suas teorias para o mundo e o transforma, não consegue, em termos físicos, realizar movimentos comuns.

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No entanto, muito em razão de Redmayne, este plano não soa emocional demais, pois ele consegue mesclar o humor e alguns elementos de convencimento em suas falas que impedem o filme de ser um aplauso em público comovido a Hawking. Sem dúvida, há um material que poderia se tornar manipulável aqui, em termos emocionais, mas Marsh está mais interessado no que interessa a Hawking em conjugar seus estudos do universo e a criação dos filhos e o quanto não se pode adotar uma visão cosmológica quando não há uma noção familiar e de relação com os outros. Mesmo a relação de Hawking com os ambientes e a matéria suscitam momentos interessantes em A teoria de tudo: quando ele observa, por exemplo, uma escada em espiral, como se ela subisse até o céu, ou o café se integrando ao leite numa xícara, como se observasse o espaço, ou quando tudo parece reduzido depois dos exames que comprovam sua doença e ele está com o rosto contra a cama – num ambiente asséptico e tecnológico, mas não plenamente humano, diante das suas dificuldades –, assim como no momento em que um de seus colegas o coloca nos braços de uma estátua da Rainha Victoria.
Essas relações com pessoas e objetos circulam ao redor do momento em que Hawking consegue adquirir a estrutura necessária para escrever aquele livro que o tornou mais conhecido, Uma breve história do tempo. Mas o filme não está exatamente interessado no sucesso que teve a obra de Hawking ou mesmo em suas possibilidades cosmológicas de perceber as possibilidades de criação do Universo. A teoria de tudo se concentra mais no olhar do físico diante de sua realidade e a possibilidade, afinal, de reverter a própria vida para se atingir de novo a possibilidade de se reinventar – o que o filme de Marsh indica é que não importa o ponto zero da criação, mas as relações infinitas que podem se produzir a partir de um olhar para as pessoas ao redor, como em seu primeiro encontro com Jane. Acometido por uma doença que poderia impossibilitá-lo a pensar sobre o universo, Hawking, na figura de Redmayne, não se torna apenas uma figura de superação e uma inspiração: ele é, de fato, um ser humano, e o que prova isso é a sua busca pelo entendimento do outro.

The theory of everything, ING, 2014 Diretor: James Marsh Elenco: Eddie Redmayne, Felicity Jones, Charlie Cox, David Thewlis, Harry Lloyd, Maxine Peake, Simon McBurney, Emily Watson Roteiro: Anthony McCarten Fotografia: Benoît Delhomme Trilha Sonora: Jóhann Jóhannsson Produção: Anthony McCarten, Eric Fellner, Tim Bevan Duração: 123 min. Distribuidora: Universal Pictures Estúdio: Working Title Films

Cotação 3 estrelas e meia

O novo mundo (2005)

Por André Dick

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Excelente reconstituição de época e fotografia espetacular não salvaram o épico O último dos moicanos, de Michael Mann, baseado no romance clássico de James Fenimore Cooper. Faltou algum elemento para criar um interesse maior pela saga de um homem branco criado por moicanos (Day-Lewis, depois do Oscar por Meu pé esquerdo), na adaptação da história que se passa durante a Guerra dos Sete Anos, em que estiveram envolvidos ingleses, franceses e tribos de índios norte-americanos na América do Norte.
O personagem de Day-Lewis e dois moicanos ajudam duas inglesas (uma das quais Madeleine Stowe) e um soldado inglês a chegarem num forte em guerra com tropas francesas. Surge uma atração entre o moicano e a inglesa, mas logo eles são separados.
Percebe-se em todas as atuações a mão de um diretor que se tornaria talentoso. No entanto, Mann, recém-saído da série Miami vice, esquece de colocar conflitos em seu filme. Neste seu primeiro longa no cinema, seu interesse é pelo luxo da produção, revestida de detalhes (o filme ganhou Oscar de melhor som). É a partir deste filme, de qualquer modo, que Malick parece compor O novo mundo, com o mesmo interesse pelo refinamento da produção, mas uma aspiração mais social e histórica.

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Malick havia passado vários anos sem lançar um filme (oito, desde Além da linha vermelha), quando trouxe às telas este filme baseado numa história com elementos reais (daqui em diante, spoilers). Em 1607, o capitão inglês John Smith (Colin Farrell) chega à América aprisionado, acusado de tentar um motim, junto com a Expedição Jamestown, enviada da Inglaterra, mas logo em seguida é perdoado pelo comandante Christopher Newport (Cristopher Plummer), que volta para a Europa a fim de trazer mais alimentos. Na busca por comida e na exploração das matas, Smith é capturado por nativos, sendo levado ao chefe, Powhatan (August Schellenberg), que tem como braço direito Opechancanough (Wes Studi, de O último dos moicanos). Smith não apenas passará a viver entre eles, entre a liberdade e a prisão, como conhecerá Pocahontas (Q’orianka Kilcher), uma nativa, filha de Powhatan. No entanto, quando ele volta ao forte construído pelos brancos, ele saberá que esta tranquilidade está perto de se encerrar.
Trata-se de um filme que vem no mesmo fluxo de Além da linha vermelha, mas toma um rumo diferente. Em primeiro lugar, porque o diretor utiliza mais em pormenores os pensamentos soltos, divagantes – algo que funciona muito bem em outros filmes, sobretudo em A árvore da vida –, e filma detalhes da natureza à parte das cenas centrais (isso parece acontecer em A árvore da vida, mas a narrativa, tão criticada por alguns, é mais interessante).

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O novo mundo.Cena 8

A impressão é que Malick não efetua, aqui, como em Além da linha vermelha, cenas de ação intensas, preferindo centralizar seus olhos no drama romântico entre Smith e Pocahontas. Se o romance abre perspectivas, em razão de Q’orianka Kilcher, Colin Farrell está inexpressivo. Ele funciona mais quando o filme não depende dele (como quando fez o cantor country de Coração louco). Malick, claro, mostra sua obsessão pela influência da natureza na vida humana, mas aqui ele parece transcender. Há flashes do casal correndo entre árvores, entre o capim alto, à beira do rio, e pensamentos esparsos, como (de Pocahontas): “Quem é esse homem? Quem é esse Deus”? Alguns detalhes não ficam claros: a aproximação cultural de Pocahontas é imediata, inclusive com a língua, e em determinado momento ela precisa alimentar os poucos homens dele com uma caça, mesmo eles tendo armas para matar animais.
Ainda assim, Malick procura dar ao filme um estilo, ao mesmo tempo, íntimo e épico. A única cena de combate, no entanto, se inclina a flashes para o céu, para as árvores. Mesmo os cenários ao longo do filme são iguais, e a montagem, elíptica – dando poeticidade, mas também prejudicando algumas cenas de conflito (como a de Pocahontas com seu pai) ou a presença levemente deslocada de Cristopher Plummer –, faz com que nos mantenhamos à distância dos personagens (embora não pareça, há lacunas aqui que não existem, por exemplo, em A árvore da vidaAmor pleno). Farrell, com isso, não consegue dar vigor ou grandiosidade a seu personagem, parecendo, por um lado, muito triste em ter de esconder um amor tão grande – que, em determinado ângulo, não convence–, e, por outro, feliz em ter de deixá-lo para trás. É visível como sua atuação prejudica o filme quando Christian Bale entra em cena, como John Rolfe, quase ao final, mostrando como o filme seria caso ele fosse o capitão Smith.
No entanto, talvez o ator principal fosse mesmo um detalhe. Malick quer filmar as paisagens com o tom de nascimento e descoberta, ou de tristeza – o sol entre as árvores, como em A árvore da vida, dá às cenas um contexto (o que lá criava um complemento poético, pois é uma história livre, não histórica). Cada personagem simboliza o contato entre o velho e o novo mundo e cada relação pode nascer e vigorar como também voltar às cinzas. Malick tem um sentido muito apurado sobre o Éden que existe em cada um desses personagens, sempre ameaçado pela traição e pela violência. A mentira dos homens brancos passa a ser evidente e seu objetivo, cada vez mais claro. No entanto, Pocahontas acredita numa espécie de amor intocado pelo ser humano, que se mistura à natureza, às árvores, ao capim e aos rios. Ela não acredita que possa ser traída e este sentimento é permanente na filmografia de Malick (vejamos o recente Amor pleno), chegando sempre a um contato próximo com a ideia divina – para o velho mundo, em belíssimos vitrais; para Pocahontas, à beira do rio ou correndo por um campo esverdeado.

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O novo mundo.Filme 5A fotografia bastante elogiada de Emmanuel Lubezki (que deu ao filme sua única indicação ao Oscar) faz predominar as cores que remetem à terra (também dos figurinos), além dos tons de verde, claro e escuro. Para Malick, a aversão à natureza romântica, aqui, pode matar a humanidade. Quando ele deseja oferecer mais emoção ao filme, este está quase terminando – mas são antológicas as cenas feitas na Inglaterra (sobretudo quando um índio caminha num pátio inglês enorme, em meio a árvores podadas, simetricamente, como se fossem um contraponto ao ambiente de onde veio, mas, ao mesmo tempo, um complemento). Falta ao filme uma definição entre o histórico, a ação, o poético e o drama – o que faz de A árvore da vida um filme tão definitivo. Mas, ainda que O novo mundo não consiga alcançar o que poderia, ainda assim responde ao que nos apresenta. Tratando da estranheza e da descoberta de um novo mundo, além do choque que isto pode trazer, há nele, como nos outros filmes de Malick, um elemento enigmático que atrai o espectador e uma sensação de perda e reencontro que poucas obras simbolizam de maneira evidente. Toda a sequência final, com uma montagem fascinante de imagens da natureza, representando o encontro entre as águas do homem branco e dos nativos, assim como da natureza, é implacavelmente belo.

The new world, EUA, 2005 Diretor: Terrence Malick Elenco: Colin Farrell, Q’orianka Kilcher, Christopher Plummer, Christian Bale, August Schellenberg, Wes Studi, David Thewlis, Yorick van Wageningen, Raoul Trujillo, Ben Chaplin, John Savage, Brian Merrick Produção: Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: James Horner Duração: 135 min.  Distribuidora: Não definida Estúdio: New Line Cinema / Sunflower Productions / Sarah Green Film / First Foot Films / The Virginia Company LLC

Cotação 3 estrelas