Twin Peaks – Segunda temporada (1991)

Por André Dick

Este texto apresenta spoilers

A segunda temporada de Twin Peaks inicia com um episódio excelente – dirigido por David Lynch –, no qual o agente Cooper (Kyle MacLachlan) é visitado por um senhor atendente do hotel, Senhor Droolcup (Hank Worden), e, em seguida, por um gigante (Carel Struycken), que lhe dá novas pistas, enquanto se encontra baleado no chão. Vários personagens procuram ainda se recuperar do que aconteceu ao final da primeira temporada: Shelley Johnson (Mädchen Amick) e seu marido Leo (Eric DaRe), Pete Martell (Jack Nance), Dr. Jacoby (Russ Tamblyn) e Ronette Pulaski (Phoebe Augustine) são alguns que estão no hospital da cidade. Shelley passa a cuidar de Leo, junto com Bobby (Dana Ashbrook), enquanto Donna Hayward (Lara Flynn Boyle) começa a trabalhar entregando almoços para Norma Jennings (Peggy Lipton), função de Laura Palmer antes de sua morte, e vai à casa dos Tremond: uma avó (Frances Bay) e seu neto, Pierre (Austin Jack Lynch, filho de David), peças-chaves do filme Twin Peaks – Fire walk with me e que são do Black Lodge. Ambos falam do amigo de Laura, Harold Smith (Lenny von Dohlen), que guarda seu diário secreto e mora na casa ao lado. Mais segredos se pronunciam quando o pai de Laura diz a Cooper e ao xerife conhecer o homem retratado por Philip Gerard (Al Strobel), chamado Bob; seria um antigo vizinho da praia aonde ia com a família, na infância, e o assustava jogando fósforos acesos nele. Mas não apenas com o caso de Laura Palmer Cooper está preocupado: ele teme pelo desaparecimento de Audrey Horne (Sherilyn Fenn), embora tenha pistas de que possa estar no Jack Caolho’s.

O Great Northern se transforma numa espécie de Overlook de O iluminado (há, inclusive, uma arquitetura indígena e Ben Horne (Richard Beymer) encenando a Guerra Civil norte-americana, enquanto seu filho lança flechas contra imagens de búfalos), com fantasmas eventualmente andando pelo hotel, tentando ajudar Dale Cooper e nesse sentido a série deriva para o terror e suspense.
Só isso explica por que no episódio 15, ao mesmo tempo em que vemos Cooper, o xerife Truman (Michael Ontkean) e a Senhora do Tronco (Catherine E. Coulson) na Roadhouse, ouvindo Julee Cruise contra uma cortina vermelha e sob uma luz em tom amarelo, descobrimos o assassino – numa das sequências mais violentas já filmadas para a TV. O mesmo gigante que ofereceu pistas a Cooper surge no palco e avisa: “está acontecendo de novo”. Essa revelação, segundo os planos originais de Lynch, não seria feita, pois ele gostaria de ter conservado o segredo, sem os espectadores saberem a identidade do assassino.
A partir dessa nova tragédia, a luta de Cooper e do xerife Truman (Michael Ontkean) é para descobrir qual espécie de mal ameaça Twin Peaks, fazendo-os se aproximar do Major Briggs (Don S. Davis) – pai de Bobby –, que diz haver na floresta da cidade um Black Lodge, com uma passagem para outra dimensão. As pistas do Major levam Cooper e o xerife à Caverna da Coruja, que ajuda a solucionar a ligação com esse universo paralelo à cidade. Neste ponto, a série se direciona a um contexto mais surreal, pois, ao mesmo tempo, chega à cidade Windom Earle (Kenneth Welsh), um ex-agente federal enlouquecido, querendo se vingar de Cooper.

As críticas a esta segunda temporada em relação à primeira aconteceram sobretudo porque David Lynch teria deixado muitos episódios nas mãos de outros roteiristas e diretores. É visível que seus substitutos tentaram desenvolver tramas paralelas – Nadine (Wendy Robie) se apaixonando por Mike Nelson (Gary Herschenberg), amigo de Bobby; o próprio James Hurley (James Marshall) indefinido entre se envolver com Donna e com uma mulher misteriosa, Evelyn Marsh (Annette McCarthy); negócios escusos de Benjamin Horne com um presidiário, Hank (Chris Mulkey), marido de Norma (Peggy Lipton); a paixão de Audrey Horne por um milionário que chega ao hotel, John Justice Wheeler (Billy Zane); o casamento do prefeito Dwayne Milford (John Boylan) com uma jovem, Lana (Robyn Lively); o triângulo entre Lucy (Kimmy Robertson), Andy (Harry Goaz) e Dick Tremayne (Ian Buchanan), entre outras –, mas o fizeram com uma combinação entre drama, surrealismo e comédia. São essas tramas aparentemente deslocadas, criadas na maior parte por Robert Engels, Harley Peyton, Barry Pullman, Scott Frost e Tricia Brock que conseguem revitalizar o interesse pela trama depois da descoberta de quem assassinou Laura Palmer. Mais do que a primeira, a segunda temporada revela alguns lugares-comuns de uma pequena cidade, mas que adquirem grande significado. Tudo nos faz sentir ser mais uma investigação sobre o comportamento dos habitantes do que exatamente uma procura do FBI em desvendar um crime.

O clima também supera em muitos momentos os defeitos possíveis (a fotografia irretocável de Frank Byers, a direção de arte, a música de Badalamenti), sobretudo aquele que existe no Double R, a lanchonete na qual os personagens se reúnem, e ajuda a desenhar boa parte da série. Temos, com esse clima, o desenvolvimento de novas tramas interessantes: a chegada de um novo agente federal, Denise Byrson (feito por David Duchovny, de Arquivo X); do chefe de Dale Cooper, Gordon Cole (em ótima participação do próprio David Lynch); a descoberta do xerife de que Josie (Joan Chen) tem segredos e que o marido dela, Andrew Packard (Dan O’Herlihy), não morreu como se imaginava; a investigação da chegada de drogas em Twin Peaks, fazendo com que Jean Renault (Michael Parks) aponte Cooper como o responsável pelo “pesadelo em que se transformou Twin Peaks”; o encontro do agente do FBI com uma nova atendente da lanchonete, Annie Blackburn (Heather Graham), irmã de Norma Jennings, por quem se apaixona e é peça-chave no final da série. Blackburn surge na série num momento em que Cooper precisa enfrentar seu passado, por meio da figura de Earle, e é uma personagem complexa. Ela estava num convento antes de sair e tentou cometer suicídio, sendo uma espécie de representação feminina do próprio agente Cooper, à procura da beleza novamente de Twin Peaks depois de passagens tão nebulosas, da paixão que teve pela esposa de Windom Earle e do pesadelo a que se referiu Renault. O interessante é que Annie adentra a série sendo enquadrada junto ao Major Briggs no Double R, como se a figura dela adiantasse o que acontecerá ao final. É Annie também que vai falar a Cooper que o desenho dele, baseado em alguns sinais, lembra o da Caverna da Coruja, que fica na cidade.

Os personagens visivelmente ganham intensidade de uma temporada para outra, como Albert Rosenfield, feito por Miguel Ferrer (um dos melhores da série, e talvez esquecido, em comparação com os demais), embora se perca um pouco o lado juvenil – com um interesse forçado entre Audrey e Bobby Briggs, por exemplo –, não diminuindo, porém, o impacto de vermos essa história contada em detalhes. Nisso tudo, a atuação do elenco, mesmo quando o roteiro não se mostra tão interessante, é excepcional. É interessante perceber como Twin Peaks trouxe novos nomes, como Sherilyn Fenn, Sheryl Lee, Dana Ashbrook, Mädchen Amick, James Marshall, Heather Graham, Billy Zane – que apareceriam, mais tarde, em filmes, em maior ou menor escala, mas ficaram marcados por sua participação aqui (sobretudo Sherilyn Fenn, Sheryl Lee e Lara Flynn Boyle).
As imagens dos semáforos, dos bosques da cidade e da coruja ameaçadora (e da Caverna da Coruja, que ajuda a criar mais elementos para a mitologia da série e se corresponde com o filme e a terceira temporada) intensificam a percepção de medo, assim como o destino de alguns personagens (como o de Leo).

Twin Peaks atravessa um terreno, da realidade para o simbólico e o metafórico, o que acabou afastando muitos espectadores que não conseguiram à época do lançamento desses episódios associar o realismo de uma investigação do FBI  com fatos estranhos. Entretanto, não por acaso, nesse sentido, a série ajudou a antecipar outras de mistério, como Arquivo X. As tortas e as rosquinhas da delegacia sempre escondem algo muito mais problemático, a ser enfrentado, embora o distúrbio seja de origem desconhecida (alguns personagens começam a sentir seus braços dormentes, o que se reproduzirá no filme, com Teresa Banks e Laura Palmer e na terceira temporada com Dougie Jones). Nesse sentido, esta segunda temporada ajuda a estabelecer a terceira, com seus temas misteriosos ligados ao Major Briggs, envolvido com o projeto “Rosa Azul”, do FBI: o White Lodge e o Black Lodge são temas suscitados no acampamento de Cooper com o Major, quando este desaparece, e por Hawk, ligando-os aos temas indígenas da cidade.

Quando Windom Earle (numa ótima atuação de Walsh) surge na perseguição a Cooper tudo parece uma desculpa exatamente para descobrir esses dois lugares que se encontram em Twin Peaks. “O amor e o medo abrem os portais”, diz Briggs em determinado momento, para Cooper entender que o amor abre o White Lodge e o medo o Black Lodge. Quando, em alucinação depois de capturado por Earle, ouve seu nome Garland, o Major Briggs se pergunta: “Judy Garland?”. Lembremos que Philip Jeffries falava em Judy em Twin Peaks – Fire walk with me e o duplo mal de Cooper quer saber quem é ela na terceira temporada. Ou seja, se alguns dos temas apresentados na segunda temporada pareciam deslocados e mesmo mal encaixados, se fazem mais fortes numa revisão. Nesse sentido, os temas que teriam desvirtuado Twin Peaks são exatamente os que mantêm o seu retorno. Do mesmo modo, embora David Lynch tenha dirigido os episódios 9, 10, 15 e 30 (alguns dos melhores das três temporadas), deve-se destacar as direções de Caleb Deschanel (conhecido diretor de fotografia, pai de Zoe), Diane Keaton, James Foley, Tim Hunter (diretor de Tex), Uli Endel (diretor alemão) e Lesli Linka Glatter (que seria reconhecida recentemente pela série Homeland), entre outros, em alguns deles. Esses diretores ajudam a dar uma ambientação clássica à série, mas, ao mesmo tempo, completamente nova, em meio a cenários campestres ou do Greath Northern, sugerindo uma espécie de viagem aos anos 50.

E deve-se dizer que o episódio final da série, dirigido por David Lynch, é, por mais estranho que pareça, o mais fiel ao que vimos antes. Há pelo menos em torno de 20 minutos com material completamente imprevisto para a televisão – quando Cooper entra na sala vermelha do Black Lodge, no Bosque Glastonbury (que Cooper liga ao Rei Arthur), da Floresta Ghostwood, em meio aos sicômoros, e tenta salvar Annie, precisando se deparar com o anão/Braço, com Laura, seu pai, Leland, Bob e seu outro eu. Essas imagens são excepcionalmente fotografadas por Frank Byers (num dos trabalhos mais exitosos da história da TV), e criam um laço direto com o filme de 1992, pois este poderia também ser parte do final daquele, e a terceira temporada. Este episódio final praticamente adianta a questão dos duplos que acompanhamos na terceira temporada, além do surrealismo muito mais explícito e bem dosado que caracterizaria também o retorno da série. Há um diálogo principalmente com o estilo de Coração selvagem, com o qual Lynch havia recebido a Palma de Ouro em Cannes um ano antes, mais exatamente nas sequências do protesto de Audrey no banco de Twin Peaks, contra Ghostwood, da reunião entre o Dr. Jacoby com Big Ed, Nadine e Mike, além do confronto de Dr. Hayward e Ben Horne. Também se destaca que As peças que faltam, extras de Twin Peaks – Fire walk with me, mostram o que acontece exatamente depois do final da segunda temporada, fazendo parte mais uma vez da mitologia que cerca esses personagens de uma série primorosa.

Twin Peaks – Season 2, EUA, 1991 Diretores: David Lynch, Graeme Clifford, Caleb Deschanel, Duwayne Dunham, Uli Edel, James Foley, Mark Frost, Lesli Linka Glatter, Stephen Gyllenhaal, Todd Holland, Tim Hunter, Diane Keaton, Tina Rathborne, Jonathan Sanger Elenco: Kyle MacLachlan, Michael Ontkean, Joan Chen, Piper Laurie, Dana Ashbrook, Mädchen Amick, Richard Beymer, Lara Flynn Boyle, Sherilyn Fenn, Sheryl Lee, James Marshall, Miguel Ferrer, Warren Frost, Russ Tamblyn, Harry Goaz, Michael Horse, Kimmy Robertson, Catherine E. Coulson, Eric DaRe, Peggy Lipton, Don S. Davis, David Patrick Kelly, Russ Tamblyn, Victoria Catalin, Wendy Robie, Gary Hershberger, Michael J. Anderson, Frank Silva, Al Strobel, Heather Graham, Frances Bay, Austin Jack Lynch, Kenneth Walsh, Annette McCarthy, Chris Mulkey, Billy Zane, John Boylan, Robyn Lively, Ian Buchanan, Michael Parks, David Duchovny, Lenny von Dohlen, Hank Worden, Carel Struycken, Dan O’Herlihy Roteiro: David Lynch, Robert Engels, Mark Frost, Harley Peyton, Jerry Stahl, Barry Pullman, Scott Frost, Tricia Brock Fotografia: Frank Byers Trilha Sonora: Angelo Badalamenti Produção: Francis Bouygues, Gregg Fienberg Duração (Temporadas 1 e 2): 1670 min.