Leviatã (2014)

Por André Dick

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Representante da Rússia no Oscar de filme estrangeiro e vencedor do Globo de Ouro, Leviatã talvez seja o filme mais melancólico deste início de ano, no sentido de que faz um retrato direto de seu país de origem, pela quantidade de personagens envolvidos por uma situação delicada, e consegue, em igual tom, ser uma sátira direta a certo comportamento humano ligado ao Estado e aos meios que este domina. Desde o seu início, mostrando imagens das ondas do mar batendo em rochas, passando por restos de um barco perdido na areia (como se fossem esqueletos) até a imagem da casa da família principal, ao longe, há a sensação de abandono do lugar enfocado, a cidade costeira de Pribrezhny. Enquanto Ida, o principal concorrente dele no Oscar, mostra uma Polônia pós-Segunda Guerra Mundial, ainda em recuperação, pela quantidade de desaparecidos e cicatrizes familiares que não se fecham, Leviatã não evita colocar os olhos no próprio sistema em que o diretor Andrey Zvyagintsev, o mesmo de O retorno, vive; ele o faz com determinação e conhecimento cinematográfico, o que torna Leviatã um filme, acima de tudo, com uma estética definida.
O pai da família Kolya (Aleksey Serebryakov), um mecânico de carros, casado com a segunda mulher, Lilya (Elena Lyadova) e pai de um adolescente, Roma (Sergey Pokhodaev), vai à estação de trem receber seu antigo amigo, Dmitriy (Vladimir Vdovichenkov), um amigo dos tempos em que era militar e que agora trabalha como advogado em Moscou para ajudá-lo a manter sua casa. O prefeito do lugar, Vadim (Roman Madyanov), sempre conduzido por seguranças com uma dose etílica a mais, deseja a propriedade, mostrando seu poder não apenas junto às autoridades locais que deveriam ser independentes dele, mas em relação a sua presença na sociedade.

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Se as imagens captadas com excelência por Mikhail Krichman parecem graves o suficiente, e com uma simetria bastante parecida com a de certo cinema que busca influência em Abbas Kiarostami, há, em justas medidas, um humor involuntário em determinadas situações, como aquela em que os juízes dão o seu parecer sobre a terra, em que uma fala ininterrupta provoca nervosismo e enigma no espectador, pela aceleração dada. Não para trás, a figura do prefeito Vadim, mais do que uma crítica à política (que o governo russo não admirou, certamente pelo destaque dado pelo diretor a um retrato na sala da prefeitura), é certamente de uma figura levada ao limite da própria condição e a cena em que ele reúne seus assessores  cria um paralelo risível àquela em que se aconselha com uma figura que guia a pequena cidade. Leviatã não é um filme exatamente sutil – porém, ele não está interessado exatamente em ser sutil, e sim em atacar um estado de coisas que considera semiapocalíptico.
Por trás da melancolia, e a despeito de que seria excessivo, Leviatã é o que se pode chamar de cinema de alta definição. Ele se desenvolve numa lentidão em movimento, como o cinema do turco Ceylan, ou seja, uma lentidão que nunca interrompe o seu fluxo. Aqui se encontra um elenco em grande sintonia com o roteiro e a excepcional fotografia.
A cidade de Pribrezhny adquire uma atmosfera notável com os enquadramentos do diretor, como se colocasse sempre os personagens ou os carros nas estradas em pequenos pontos espalhados por um cenário que não parece abandonado apenas para seus habitantes, como também por uma possível esperança para que todos consigam sair da situação em que se encontram. Eles também bebem muito e esgotam a vodka de todas as estações em uma rodada noturna, como se estivessem entoando Dostoiévski a cada vez que sentam numa mesa ou ficam ao ar livre diante de um lago.
Nenhum deles é exatamente perfeito: Kolya é um personagem complicado, assim como sua esposa, e Dmitriy não é exatamente um exemplo, apesar de sua persuasão e de parecer, por um instante, um agente da KGB em ação; a questão, em Leviatã, é que há figuras ainda mais complicadas, e que dizem respeito a um panorama amplo do que o diretor pretende mostrar, não apenas por meio desses personagens, mas também Pacha (Aleksey Rozin), Angela (Anna Ukolova) e Ivan (Sergey Bachurskiy). Com um olhar interessado em desenhar ligações sem necessidade deixá-las evidentes, Zvyagintsev, a partir de um determinado acontecimento, deixa o espectador indeciso sobre o que exatamente aconteceu numa passagem, o que confere ao filme uma tensão ainda maior e própria de um thriller. E, como no cinema de Ceylan, o amanhecer e o anoitecer adquirem uma atmosfera especial, com as luzes das casas recém-acesas e o movimento das pessoas em estradas quase desertas. Muito da aceitação de Leviatã é perceber justamente nessa falta de movimento o que leva cada um a se modificar ou criar alguma mudança.

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As figuras de um vilarejo onde o prefeito dita os rumos parecem ecoar uma repetição de algo já visto, historicamente falho. Mas, em meio à falta de esperança aparente e concentrada, Leviatã reserva uma possibilidade de mudança. Há uma certa sensação no filme de estar se chegando ao limite, no entanto este conserva o diálogo com as mudanças registradas pela história que o filme critica. Com perícia técnica, o diretor Zvyagintsev aponta que o grande leviatã, seja aquele que simboliza o Estado visto por Thomas Hobbes, ou aquele bíblico não é o mais importante: o que vem à tona, no filme de Zvyagintsev, são as mudanças do mar e da natureza. Este Leviatã que na Bíblia era visto como o maior monstro marítimo, se transforma, neste filme, numa carcaça de baleia na areia da praia, para onde o menino Roma corre em determinado momento. Esta carcaça já está cercada pela areia, embora em outro momento Lylia aviste uma espécie de baleia em alto-mar, nas ondas do impressionante Mar de Barents. Ao mesmo tempo, se há uma figura que Kolya lembra, na Bíblia, como apontam algumas análises do filme, é Jó: como no filme dos irmãos Coen, Um homem sério, há uma série de questões a ser resolvidas também num plano metafísico, o que se acentua com a atuação excelente do elenco, sem exceções e com destaque para Serebryakov e Madyanov, que se enfrentam como se fossem realmente opostos de uma sociedade. Há uma crítica, sem deixar de lado a qualidade artística, de a obra sobreviver por si só – o que torna também admirável este trabalho de Zvyagintsev.
No filme, o leviatã, de forma apropriada, também surge ao som da trilha sonora extraordinária de Philip Glass. Uma carcaça gigante onde é possível sentar – para esperar a próxima maré. Como Ida, seu principal concorrente, Leviatã não tem sobras: pode-se acusá-lo de simples, embora não seja, porque se não teríamos muitos outros filmes assim. Não há, e quando há parece determinante encontrá-los, por mais que traga um retrato por vezes tão cinza.

Leviafan, RUS, 2014 Direção: Andrey Zvyagintsev Elenco: Aleksei Serebryakov, Roman Madyanov, Vladimir Vdovichenkov, Elena Lyadova, Sergey Pokhodaev, Aleksey Rozin, Anna Ukolova, Sergey Bachurskiy Roteiro: Oleg Negin, Andrey Zvyagintsev Fotografia: Mikhail Krichman Trilha Sonora: Phillip Glass Produção: Alexander Rodnyansky, Sergey Melkumov Duração: 140 min. Distribuidora: Sony Pictures Classics

Cotação 5 estrelas

 

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