Coração selvagem (1990)

Por André Dick

Baseado em romance de Barry Gifford – que ajudou na adaptação para o cinema e depois participaria do roteiro de A estrada perdida –, Lynch, aqui, narra a fuga de um casal rebelde, Sailor Ripley (Nicolas Cage) e Lula Pace (Laura Dern) das garras da mãe dela, Marietta (Dianne Ladd, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante), em direção à ensolarada Califórnia. A mãe é uma espécie de bruxa moderna, que não aceita a paixão de sua filha pelo rapaz. Ela tenta persuadi-lo num banheiro no início do filme – lembrando uma situação pela qual passa o Henry Spencer de Eraserhead –, mas, depois de ser rejeitada, um homem aparece para tentar matá-lo. Sailor, ao se defender, acaba cometendo assassinato e vai para a cadeia, de onde sai alguns anos depois para novamente tentar ficar com Lula. Resta a ela impedir que os dois levem sua relação adiante, colocando um detetive, Johnnie Farragut (Harry Dean Stanton), e um assassino, Marselles (J.E. Freeman) – ambos amantes seus – no encalço.

Os dois terços iniciais do filme tratam disso, com cenas de impacto. Durante a viagem, Sailor, com seu casaco de couro de cobra – “símbolo da sua crença na liberdade individual”, conforme ele diz –, e Lula, com uma espécie de lingerie sobre a roupa, encontram uma menina acidentada (Sherilyn Fenn), procurando por um pente de cabelo, discutem sobre cigarros em motéis, vão a uma discoteca, comem hamburgueres, tomam cerveja e fazem sexo. No entanto, apesar de lembrarem, adaptada para os anos 90, a loucura do casal de Terra de ninguém – óbvia inspiração do filme –, em ritmo punk, o casal de David Lynch é mais ligado às obsessões dele como cineasta (quando param num posto de gasolina de beira de estrada, é mostrado um senhor sentado numa cadeira, representando o interior dos Estados Unidos, e Lula no carro, à vontade, contra um belíssimo céu azul, mostrando uma vertente underground).

O universo do cineasta traz pessoas marginalizadas pela sociedade, mas que sempre procuram um complemento, sobretudo num mundo cultural, da qual se tornam um reflexo. Nesse sentido, torna-se comum que Sailor cante, em determinada altura, “Love me tender”, de Elvis, para se firmar diante de um concorrente pela posse de Lula e a imaginar uma Califórnia inexistente e se contentar com uma cidadezinha de beira de estrada, Big Tuna, que lembra mais um campo para a revigoração do faroeste sob letreiros perdidos da Coca-Cola e batatas fritas no sofá, na qual eles param. Se Sailor deseja ser Elvis Presley, com um topete, não há dúvida de que ele também deseja uma espécie de digressão romântica, em meio à violência. Lynch declarou a Ana Maria Bahiana: “Coração selvagem é extremista, e não é para qualquer um. Apesar disso, existe nele uma história de amor, e já que ela é uma interpretação do nosso mundo moderno, a ideia de que ela possa acontecer hoje em dia, e com tanto senso de humor, é uma boa experiência”; “Alguém me disse que isso tem um pouco a ver com Roy Orbinson e com muito do rock’n’roll: é uma coisa muito masculina, mas tem um lado muito terno. E esse é o tipo de coisa que é muito importante no mundo moderno, que essa ternura ainda exista”.

Laura Dern se despe da figura de jovem mais recatada, que mostrava em Veludo azul, e ingressa num universo em que os quartos de motel têm atmosfera ao mesmo tempo lúgubre e colorida, obtendo de sua interação com Sailor um ritmo que consiga reerguê-la do passado, em meio a muitos palitos de fósforo sendo queimados (mostrando a ligação do corpo com queimaduras diversas). Ainda assim, nada, para eles, mesmo com dificudades, é pior do que enfrentar a mãe dela. É na parte final que o destino começa a ser traçado. A mãe de Lula (Diane Ladd) se torna a bruxa de Oz – e o filme ingressa num universo ainda mais paralelo do que o do início –, Lula tenta ser conquistada por um bandido grotesco, Bobby Peru (Willem Dafoe, numa atuação autossuficiente e ótima), que tem relação com uma mexicana (Isabella Rossellini), amiga de Sailor. Por fim, como enlace de todos esses personagens, Bobby convida Sailor a assaltar um banco no deserto, e este aceita para tentar salvar seu amor.

Se as primeiras cenas mostram Sailor matando um jovem, jogando sua cabeça contra um corrimão de mármore, o restante do filme não diminui a estranheza revigorante, como aquela cena em que Sailor conta suas experiências sexuais à Lula e quer ter relação com ela. Para Lynch, pode haver uma incursão no amor, mas sempre permeada com bizarrices: talvez a mão levada por um cachorro em determinado momento ou as manias de um primo de Lula (Crispin Glover) consigam definir melhor esse contexto. Ou quando Bobby Peru entra no quarto de Sailor e começa a dizer palavras que lembram o McGuffin lynchiano aqui: o sexo pervertido, que pode lembrar uma marca barata de cigarro – e o fogo, como em Veludo azul e Twin Peaks, desempenha o papel de catalizador dos personagens e de suas ações.
Neste filme, mais do que em outros, Lynch tenta criar um enlace com a cultura pop, mas, como em Veludo azul, na procura por um certo interior norte-americano. Para ele, as figuras perdida pela estrada – e elas são muitas em Coração selvagem – são estranhas e ajudam a definir a realidade. Por isso, lá estão novamente figuras que parecem saídas de uma loja de vendas tranquila e pacata em atrito ou correspondência com indivíduos que parecem mais nefastos, quando eles não se complementam ou não se enganam entre si.

Coração selvagem não tem a densidade de Twin Peaks (da TV e do cinema), ou do cinema anterior ou posterior de Lynch, mas mostra o diretor trabalhando suas obsessões de maneira clara e interessante, trazendo uma influência clara para o Quentin Tarantino de Pulp Fiction e do roteiro de Assassinos por natureza, dirigido por Oliver Stone – para o mesmo Tarantino, que, no lançamento da versão cinematográfica de Twin Peaks, disse que Lynch o tinha decepcionado, sendo que dois anos depois, e muito em razão de Twin Peaks, colocou cenas pesadas em Pulp fiction. E é curioso que Lynch tenha recebido justamente a Palma de Ouro em Cannes por este filme, aquele em que melhor coloque suas estranhezas e bizarrices num filtro de romantismo e violência explícitos.

Wild at heart, EUA, 1990 Diretor: David Lynch Elenco: Nicolas Cage, Laura Dern, Diane Ladd, Willem Dafoe, Harry Dean Stanton, Isabella Rossellini, Crispin Glover, William Morgan Sheppard, Joe Freeman Produção: Sigurjon Sighvatsson, Steve Golin, Monty Montgomery Roteiro: David Lynch Fotografia: Frederick Elmes Trilha Sonora: Angelo Badalamenti Duração: 124 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Propaganda Films / Polygram Filmed Entertainment

Cotação 4 estrelas e meia