“Não estou quebrado”: diferenças entre as duas versões de “Liga da Justiça”

Por André Dick

Este texto apresenta spoilers

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Zack Snyder, desde a versão estendida de Watchmen – O filme, com 215 minutos, vem se tornando o diretor de Hollywood mais propenso, ao lado de Ridley Scott, a conseguir com que suas versões autorais – ou cortes de diretor – atraiam um público amplo. Isso ocorreu novamente com Sucker Punch, dois anos depois, e com Batman vs Superman – A origem da justiça. Alguns meses depois do lançamento no cinema, a versão estendida, anunciada desde antes da estreia, de Batman vs Superman chegou ao mercado de home vídeo. Sem ter feito um lançamento dessa versão nos cinemas, a Warner Bros sofreu críticas de quem queria assisti-la na tela grande, mesmo porque a original desagradou a muitos fãs e críticos. A metragem passou a ser de 182 minutos, enquanto a dos cinemas é de 154 minutos. Batman vs Superman poderia ser um filme polarizador não tivesse sido lançado numa época estranhamente desigual também no cinema, em que algumas obras sem tanta qualidade adquiriam instantaneamente status de clássicos instantâneos, enquanto outras, como ele, eram consideradas fracassos de realização.
Em 2017, quando Zack Snyder filmava Liga da Justiça, aconteceu o suicídio de sua filha Autumn e o seu afastamento, o que fez com que o estúdio resolvesse tomar outro rumo: uma visão mais leve. Para isso, chamou Joss Whedon, a princípio apenas para reescrever cenas, depois para de fato dirigir novas cenas ou reformular antigas. O resultado, no entanto, descontentou a público e crítica, e passou a se dizer que a versão de Zack Snyder existia, mas havia desagradado profundamente os executivos da Warner. A duração: 219 minutos. Muitos consideraram apenas uma lenda urbana, mas era claro, por trailers antigos de Liga da Justiça e imagens publicadas por Snyder em redes sociais, que esta obra mais extensa existia.
Vendo agora Liga da Justiça de Zack Snyder, pode-se entender como muda a indústria de cinema à medida que um estúdio reconhece a intromissão no trabalho criativo, depois de uma grande pressão nas redes sociais com o movimento ReleaseTheSnyderCut e lhe passa a dar condições de acabá-lo do melhor modo. Para isso, Snyder recebeu 70 milhões de dólares, e o resultado foi uma obra com metragem ainda maior: 242 minutos. Antes o máximo que havia acontecido num filme da DC/Warner foi na produção de Superman II. Originalmente dirigido por Richard Donner, o diretor se desentendeu com os produtores porque quiseram excluir Marlon Brando da sequência em razão do cachê dele. As cenas com ele e a versão de Donner ficaram inéditas até 2006, quando foi complementada usando algumas cenas de Richard Lester, já que o filme de 1980 de Lester também usava imagens da de Donner – e curiosamente com uma profusão maior de gags. No entanto, Donner nunca concluiu uma versão própria, o que se percebe no resultado, sendo, contudo, melhor.

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Passa a ser interessante, ao mesmo tempo, ver como Joss Whedon, contratado para finalizar Liga da Justiça em 2017, e para isso refilmou cenas e editou outras, não estava no caminho que a versão de Snyder anunciava. Whedon inicia o filme, depois da desastrada aparição do Superman com CGI falando com uma câmera segurada por uma criança, tentando homenagear, até de forma acertada, um certo estilo de Watchmen – O filme, com a canção “Everybody nows”, de Leonard Cohen, cantada por Sigrid, e retratando a Terra depois da morte do Superman. Em seguida, ele já emenda com uma sequência de Batman (Ben Affleck) usando um assaltante para atrair parademônios por meio do medo.

Na nova versão, Snyder mostra o grito de Superman depois da batalha contra o Doomsday em Batman vs Superman ecoando nas Caixas Maternas em Atlântida e com as amazonas na Ilha de Themyscira. Sua morte, ao mesmo tempo, sinaliza para as Caixas Maternas e atrai alienígenas, no caso o Lobo da Estepe e seus parademônios. Em seguida, Snyder acompanha a ida de Bruce Wayne, de cavalo, até o vilarejo à beira-mar onde encontra Aquaman. Veja-se que a versão de Snyder já investe na lentidão e a conversa com Arthur Curry/Aquaman (Jason Momoa) termina com mulheres cantando depois que o ser dos mares entra na água, o que remete a alguma adaptação de J.R.R. Tolkien para o cinema. Ao contrário do Liga da Justiça de 2017, Wayne não está ali para tratar de Caixas Maternas, e sim para pedir ajuda para um perigo que vem de fora. Como ele sabe? Lex Luthor lhe contou ao final de Batman vs Superman – e, depois do surgimento de Doomsday, Bruce Wayne certamente não considerou essa pista equivocada. Do mesmo modo, há uma conversa dele com Diana Prince (Gal Gadot) também ao final de Batman vs Superman sobre a necessidade de formar uma equipe para proteger a Terra com a ausência do Superman. Mas, com a necessidade de ser didático, Whedon cria a cena de parademônios sendo atraídos por Batman, uma boa sequência, mas, diante da versão de Snyder, desnecessária.
A versão de Snyder é quase um corte com o ato final angustiante de Batman vs Superman, um ingresso em algo mais tranquilo, o que pode ter feito os produtores da Warner terem temido uma decepção nas bilheterias, convocando Whedon para fazer um filme colorido, quase um passeio num parque de diversões, sem as devidas nuances e elaborações da trama de Snyder. Se havia reclamações de excesso de CGI, aqui Snyder é realista na maior parte das imagens sem seres mitológicos. Ou seja, a impressão que se tinha era que o projeto de Snyder havia sido modificado porque se parecia inclusive esteticamente com Batman vs Superman, mas são dois filmes completamente distintos – e ambos, para mim, de grande qualidade.

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Em Liga da Justiça de Zack Snyder, Wayne, depois da visita a Aquaman, não parece apressado em mostrar a volta para casa, primeiro de helicóptero e depois no avião, junto com Alfred (Jeremy Irons). Essas cenas no avião foram regravadas por Whedon por, ao que parece, puro capricho, por uma estética mais animada. Do mesmo modo, Snyder abre o espaço para trabalhar o personagem de Victor Stone/Ciborgue (Ray Fisher) de maneira mais detalhada. O que Whedon faz com o personagem não se trata apenas de sua responsabilidade, e sim dos que o incentivaram a optar por um caminho mais rápido. Ao simplesmente apresentá-lo apenas em conflito por não aceitar sua condição, ele esquece o que Snyder havia filmado: como ele chegara a esta condição. Mesmo que mantenha certo conflito com o pai Silas (Joe Morton), o drama é perdido de forma significativa. Não apenas isso: apenas a cena em que Victor entra num templo grego, na qual encontra seus poderes como livros na biblioteca, valeria esta versão, além de suas imagens solitárias remeterem a Dr. Manhattan de Watchmen. É também a visão sobre como os valores de um personagem, e no caso de Victor ajudar especialmente uma amiga da faculdade que tem dificuldade, são seculares. Para Snyder, o heroísmo está nas pequenas situações assim como nos deuses do Olimpo.

Whedon também refilmou em 2017 trechos de cenas melhor filmadas por Snyder, como o do ataque de terroristas a um banco, impedido por Mulher-Maravilha (Gal Gadot), levando uma maleta com bomba até quase o céu de uma cidade, ecoando Watchmen – na versão de Whedon ela simplesmente pula até um sótão para jogar a maleta para o espaço –, mas seguindo de modo geral os mesmos planos, ou seja, segundo o diretor de fotografia Fabian Wagner 90% do que havia sido filmado por Snyder foram descartados. Vendo as duas versões, isso me parece questionável, e Whedon não teria tempo para filmar novamente tudo. O que pode ter acontecido é ele ter usado algumas tomadas diferentes das que Snyder coloca agora em sua versão. Há cenas nos dois Liga da Justiça que se diferenciam apenas pela cor – a da versão de 2017 mais colorida, a atual mais cinzenta, sem realçar tanto, por exemplo, a cor dos uniformes dos super-heróis. Na cena do banco, há ainda o acréscimo da Mulher-Maravilha conversar com uma garotinha, que lhe pergunta se pode um dia ser ela. É um momento que acusaram justamente Snyder de não exibir em Batman vs Superman. O super-herói como um exemplo.

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No todo, a estrutura vista no filme de 2021 traz praticamente a narrativa de 2017, mas com uma estética completamente diferente, por causa da edição, complementada por cenas mais longas, mais bem trabalhadas, desenvolvimento de personagens e acabamento técnico superior, principalmente trilha sonora, design de produção e efeitos visuais. Quando as Amazonas avisam a Diana Price sobre a ameaça que se aproxima, a flecha é um artefato de entrada para uma instalação no subsolo de um templo grego a fim de alertar sobre Darkseid. O filme de 2017 evita maiores explicações, interligando tudo muito rapidamente. A visita de Barry Allen (Ezra Miller) ao pai (Bill Crudrup) na prisão é antecedida por rabiscos dele no rosto de um dos visitantes, mais inconveniente – em alguma matéria antiga não reencontrada, li que esta cena era de Snyder, mas ele a excluiu na nova versão talvez por achar que destoava ou que o espectador concluiria que era de Whedon. O encontro inicial do Flash com Bruce Wayne tem um corte de uma gag do jovem ultrarrápido, que funcionava na versão de Whedon, mas talvez tirasse a carga mais soturna do filme de Snyder. Aliás, em Liga da Justiça de Zack Snyder, Flash é um personagem com certo conhecimento científico, o que não aparecia na finalizada por Whedon.

Todas as cenas complementadas por Whedon, ou modificadas, incluem dois elementos: gags e cenas em lugares claros. A reunião de Bruce Wayne e Diana sobre a invasão, em que ela lembra da luta das Amazonas, do povo de Atlântida, de deuses do Olimpo contra Darkseid é subvertida na versão de Whedon, picotada em flashbacks. Na de Snyder, ganha ressonância épica, que remete a 300 e O senhor dos anéis. A conversa entre os dois também se dá em ambientes soturnos – no filme de 2017, eles conversam à beira de um lago, num fim de tarde luminoso, observados por Ciborgue. Este encontra Diana diretamente, depois de um contato cibernético. O seu drama – de passar de jogador de futebol americano a quase vítima fatal de um desastre – é um dos elementos que costuram a drama de Snyder, subjugados por Whedon e os executivos ao quase esquecimento, não fosse o lançamento da nova versão.


Na versão de 2017, também o Lobo da Estepe, além de ser mal acabado visualmente, também não tinha a mesma motivação desenvolvida por Snyder. Aqui ele está a serviço de Darkseid, como se tivesse uma dívida com ele, na conquista de planetas, e o combate dele contra as Amazonas e Aquaman e Mera (Amber Heard), por exemplo, apresentava um impacto muito maior. Do mesmo modo, Whedon tentava facilitar a trama ao colocar uma família em perigo numa cidade radiotiva na Rússia, Pozharnov. Pelo fato de – Liga da Justiça de Zack Snyder esclarece – ser um local radioativo, não poderia ninguém morar ali, mas Whedon imaginou que esse drama fosse mais interessante do que o do Ciborgue, por exemplo, uma noção desviada do foco. O que a obra finalizada por Snyder mais revela é uma sensação de isolamento desses personagens, mas num ritmo mais dramático, sem a faceta pop de Watchmen – O filme, por exemplo, pausa em muitas cenas para mostrar como eles se ligam a cenários desérticos. Há sempre, principalmente no caso de Aquaman, Ciborgue e Flash, a sensação de que vagam solitários pelo mundo – e não querem assumir sua condição de super-heróis. Neste sentido, ele dialoga muito com Watchmen – O filme e seus super-heróis deslocados no tempo e na sociedade.

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O que chama também atenção nesta nova versão de Snyder é como se dá o plano da volta de Superman, muito mais costurado com o tema das Caixas Maternas que o vilão, Lobo da Estepe, tenta reunir para dar a Darkseid o motivo final para dominar a Terra. Há uma especial atenção para o fato de Lobo da Estepe ter de enfrentar Aquaman e Mera para obter a Caixa Materna de Atlântida – e num momento chega a aparecer Vulko (Willem Dafoe), mentor de Aquaman que antes só viria a aparecer no filme de 2018 dirigido por James Wan.
Na versão de Whedon, havia igualmente mais elementos de humor, referências de Barry Allen a O cemitério maldito, de Stephen King, por ter de desenterrar o Superman – gags que, pessoalmente, funcionam. Na de Snyder, ele e o Ciborgue vão até o cemitério, acompanhados de Aquaman e Diana, que ficam conversando no furgão. Esta sequência que segue com os integrantes da Liga da Justiça levando o caixão onde está o corpo de Clark Kent/Superman para a nave kryptoniana para ressuscitá-lo, que foi em boa parte descartada no Liga da Justiça de 2017, é muito representativa, pois é como se todos os personagens levassem também a figura paterna para uma espécie de resssuscitamento, e não por acaso Victor se encontra com o pai, que trabalha no laboratório ao lado da nave do Superman, a caminho do que deve ser feito.

Ao mesmo tempo, Whedon torna Barry um personagem mais como alívio cômico; Snyder tenta ver nele algum conflito com a tecnologia, o que se esclarece depois quando o Superman ressuscita. Esta sequência em que Superman volta em sua maior parte é a mesma da versão do cinema, com exceção feita à visão de Ciborgue antes de o Flash ressuscitá-lo: a Mulher-Maravilha sendo velada pelas Amazonas, o Superman chorando a morte de Lois Lane em seus braços enquanto Darkseid o ameaça – detalhes que possivelmente seriam explorados numa segunda parte planejada de Liga da Justiça e que a Warner, por meio do filme finalizado por Whedon, quis descartar.


Achei que a volta do Superman havia sido filmada por Whedon, mas é um dos núcleos funcionais do filme o embate de Clark, ainda confuso com sua volta, com a Liga da Justiça. Apenas Whedon acrescentou um diálogo posterior entre Batman e Superman que remete ao filme de 2016 – um desperdício, levando em conta que teve de cobrir graficamente o bigode de Cavill (já que ele tinha contrato para mantê-lo por causa de outro filme que filmava à época, Missão: impossível – Efeito Fallout). Ou seja, como muitas outras cenas refilmadas por Whedon não havia necessidade: era apenas para impor uma voz criativa, e ainda por cima encoberta, pois quem de fato assinou o filme foi Snyder. Depois da briga com Clark, a versão de Snyder privilegia o que aconteceu com a Caixa Materna guardada pelo Ciborgue; Whedon se volta para a batcaverna de Clark, com Mulher-Maravilha querendo ajudar Bruce Wayne a melhorar de um problema de torção no braço deixado pelo confronto com Superman. Snyder está mais interessado em pequenas cenas, de Diana preparando um chá sob o olhar constrangido de Alfred, ou de Batman relembrando o Knightmare de Batman vs Superman.

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A volta de Clark à sua antiga casa em Smalville, onde morava com a mãe, Martha, em O homem de aço é abrupta na versão de Whedon e na de Snyder tem uma ressonância referente a lembranças muito longínquas, desde o super-herói vendo o balanço onde brincava pela janela até uma borboleta voando sobre sua mão quando visita o milharal, como se lembrasse de sua condição. É lírica diante da obra finalizada por Whedon, que brinca com os aromas de perfume Clark por meio de Lois Lane (Amy Adams).
Aliás, Lois, antes, é colocada em cena para imagens que registram a saudade de Clark. Sem conseguir voltar a trabalhar no Daily Planet, ela visita a estátua demolida de Superman todos os dias. O processo no filme de Snyder é de melancolia. Na versão de Whedon, não há esse processo, porque o personagem não pode se permitir a isso: a melancolia é negada num filme de super-heróis em 2017 (e hoje é melhor aceita por causa de Logan e Coringa, por exemplo, curiosamente bastante influenciados pelo normalmente criticado Batman vs Superman). Acontece uma conversa com Martha (Diane Lane) nas duas versões, e na de Whedon é apropriadamente divertida, ecoando muito a época de Donner, antecedida por uma gravação na TV sobre invasão de aliens, enquanto na de Snyder é em tom semibaixo, quase apagado, mostrando de forma apropriada, no entanto, a ausência deixada por um personagem fundamental. É excelente, na versão de Snyder, o paralelo que se cria com Lois descobrindo estar grávida (e isso é confirmado ao final, quando ela segura um berço em vez de caixas, como aparecia na versão lançada nos cinemas) e a volta do Superman, como se um círculo se completasse na vida de ambos.
Do mesmo modo, Whedon elimina referências a qualquer figura religiosa, usada por Snyder. Quando Batman entra na espaçonave antes da batalha, perguntado por Alfred por que acha que Superman irá reaparecer, ele explica que por ter “fé”. Whedon descarta essa fala porque em sua versão não possivelmente se evitava esses paralelismos depois do que muitos consideraram excessivo em O homem de aço: deve ser direto, objetivo e sem diálogo com a religiosidade. Do mesmo modo, ideias relacionadas à morte, como aquelas de Victor Stone, são completamente descartadas no filme de 2017 – sua ida ao cemitério, por exemplo, para ver o túmulo da mãe, ao lado do qual enterra uma das Caixas Maternas que está sendo buscada pelos parademônios, é excluída – porque poderiam pesar no espectador mais infantojuvenil que se pretendia atingir naquele momento.

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Antes da batalha, é aqui que Whedon mostra por que foi chamado pela Warner: era preciso fazer os super-heróis falarem e brincarem mais entre si, como ao longo do primeiro Os vingadores. Na versão de Snyder, durante as reuniões da Liga, Aquaman é geralmente mal-humorado e Wayne está quase sempre de braços cruzados. Whedon cumpre sua finalidade em dar certo movimento, mas isso porque elimina toda a parte em que os super-heróis discutem sobre a Caixa-Materna depois da morte de Silas Stone e vê esses personagens sem a tensão com a qual Snyder os imagina. Ou seja, Whedon foi contratado para tornar a história didática. Finalmente, na batalha final, tudo converge para uma reunião mais circunspecta, perdendo um dos acréscimos na versão de Whedon, a cena em Aquaman diz certas verdades, mas porque está sobre o laço da Mulher-Maravilha, tentando tornar o personagem descontraído, assim como na sequência, também incluída na versão de Whedon, em que brinca com o uniforme de Batman (cenas que funcionavam no filme de 2017 e não necessariamente prejudicariam o corte final).
Por outro lado, o fato de Whedon ter cortado a cena em que Superman adentra novamente na nave de Krypton de Zod, com seus uniformes, é inexplicável, porque mostra como ele está recuperando sua memória, por meio das palavras dos pais de Krypton (Russell Crowe) e da Terra (Kevin Costner). É como se fosse eliminado qualquer material mais reflexivo e menos agitado do que o que deve fazer a trama fluir para a frente.

No novo Liga da Justiça, quando a Liga confronta o Lobo da Estepe, Snyder utiliza uma bela homenagem a Superman, de Richard Donner, com o Flash precisando retroceder no tempo para salvar a Terra e o Ciborgue. É uma sequência muito bela que, se existia na versão original, realmente se mostra injustificável a sua ausência, já que no Liga da Justiça de 2017 Whedon foca apenas no confronto com o Lobo da Estepe. Quando Ciborgue imagina por um momento outro futuro – no cenário do Knightmare de Batman vs Superman –, ele encontra a família já falecida e a si mesmo antes da transformação. Sugerindo que ele pode voltar a ser como era, Ciborgue diz: “Não estou quebrado”. Isso fala da própria versão de Snyder. Já Whedon está preocupado em mostrar a fuga de uma família do desastre anunciado em Pozharnov, o que seria impossível de a história justificar, já que o local está isolado por causa da radioatividade.

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De modo geral, Liga da Justiça de Zack Snyder também mostra a importância do livro Justice League – The art of the film,  de Abbie Bernstein, lançado em 2017, que mostra story-boards do Lobo da Estepe com este visual finalizado por Snyder, por exemplo. Para quem acredita que esta nova versão de Liga da Justiça foi em boa parte criada agora, só ver que os atores estão jovens, como em 2017. Tirando alguns minutos de acréscimo, boa parte deste filme, editado ou não deste modo com que foi lançado, já existia há quatro anos. Os trailers de quando Snyder estava à frente do projeto em 2017 traziam cenas que foram inseridas nesta versão final. Os produtores ou Whedon parecem ter feito uma última edição quase em cima do lançamento do filme, principalmente eliminando o passado do Ciborgue, todas as cenas intensificando relações e a atmosfera bem construída por Snyder. E claramente a versão de Liga da Justiça de 2017 não teve orçamento para acabar os efeitos visuais, mais especificamente no terceiro ato. Snyder usou muito bem os 70 milhões de dólares que recebeu de acréscimo. Nesse final, Snyder também mostra mais detalhes da batalha contra os parademônios, com o Batman utilizando um maior arsenal de armas, além de evitar a coloração vermelha imposta por Whedon ao cenário.

Entendo, no entanto, que haja comentários de que o Liga da Justiça de Zack Snyder tem a mesma base do de 2017. Claro: Joss Whedon apenas refilmou ou acrescentou cenas com luz mais clara e inseriu gags e uma parte inicial mais didática. Quem considera que Zack Snyder apenas inseriu cenas para estender seu filme e torná-lo mais gigante parece não se importar muito com desenvolvimento de personagens, mesmo que às vezes apenas por meio de imagens, sem diálogos, ou como isso pode criar uma base emocional. Seu cuidado visual, como já mostrou outras vezes, não é simplesmente estético, como também serve à narrativa, por meio das ambientações e atmosfera. As entrevistas de Zack Snyder mostram um diretor muito mais próximo hoje de um cinema contemplativo, como mostra em quase toda a sua versão de Liga da Justiça. Por isso, a diferença entre estas versões, além de uma grande novidade no cinema, porque, apesar de trazerem uma estrutura interna parecida, quase todo o mesmo elenco e motivações semelhantes de narrativa, aponta duas formas de fazer cinema. Uma é mais voltada, mesmo que a tentativa não tenha surtido o efeito desejado, para o grande público; outro é para um público que, na maior parte das vezes, se diz que é apenas do diretor, mas também é formado por aqueles que se considera muitas vezes “grande público”. Considerando-se também que as cenas de ação, todas sem exceção, desde aquela na ilha de Themyscira, passando por aquela embaixo do porto de Gotham City até o final, são muito melhor resolvidas por Snyder.

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O que a versão de Snyder mostra é que não se deve subestimar o conhecimento do público, que às vezes o caminho mais fácil na edição de uma narrativa pode subtrair pontos realmente importantes e a própria característica geral de uma obra. Mesmo o epílogo, feito em novas filmagens ao longo do ano passado, apesar de sugerir uma possível continuação da história, pode ser visto apenas como uma extensão do sonho do Knightmare de Batman, em que o Superman se alia a Darkseid e seus parademônios, como se vê numa sequência de Batman vs Superman (esse duelo aconteceria porque o Superman acredita que Batman causou a morte de Lois Lane).
Chega a ser constrangedor, vendo a nova versão, que Whedon tenha assumido este projeto (claro que por causa do dinheiro e possivelmente de um futuro projeto do DCU, do qual acabou sendo excluído em razão de polêmicas) e praticamente usado toda a sua estrutura, apenas modificando alguns diálogos e acrescentando poucas cenas, ou modificando as já existentes, que eram melhores, para apenas, mais do que cumprir a uma solicitação, colocar o ego em funcionamento, o que o descredencia como autor criativo. Mais: que os produtores tenham liberado dinheiro extra para transformar um filme que era de excelente qualidade para fazer algo rápido e que pudesse dialogar rapidamente com o público aceitando a regravação de cenas ou acréscimos que nada alteraram substancialmente o projeto original (o orçamento final foi de 300 milhões de dólares). O resultado: um fracasso de público e bilheteria (embora eu tenha gostado dele no seu lançamento e em visualizações posteriores, hoje, perto da nova versão, se mostra muito questionável, principalmente pelas decisões criativas de Whedon em relação a este material que tinha em mãos inicialmente). Nesse sentido, Liga da Justiça de Zack Snyder é o filme oficial desta equipe de super-heróis, exemplo do quanto a edição, o apuro na parte técnica e o acréscimo de uma visão dedicada transformam de forma decisiva o resultado de uma obra.