Dália negra (2006)

Por André Dick

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O cineasta Brian De Palma sempre teve um atrativo pela adaptação de obras literárias, principalmente a partir de Carrie, a estranha, baseado em livro Stephen King, nos anos 70, e Pecados da guerra, baseado em romance de Daniel Lang. O melhor filme já feito sobre a estrutura socioeconômica dos Estados Unidos, A fogueira das vaidades, baseou-se, por sua vez, em Tom Wolfe. Nele, Quando Sherman McCoy (Tom Hanks) vai buscar sua amante Maria Ruskin (Melanie Griffith) no aeroporto, não desconfia que, na volta para casa, atropelará um homem, no Bronx, causado pela amante. O problema é que a notícia invade os jornais, colocando McCoy numa situação difícil. Ele não pode dizer que a culpada foi sua amante, caindo numa situação ainda mais grave. Procurado pela polícia, que desconfia dele, McCoy se rende à pressão da sociedade e dos jornais, confessando estar envolvido com o atropelamento, não revelando nada à esposa (Kim Catrall). Quem se aproveita do fato é o repórter Peter Fallow (Bruce Willis), com problemas etílicos, que enxerga nisso uma possibilidade de fama. Na história, ainda se envolve um candidato à prefeitura (F. Murray Abraham, divertido) e uma série de traidores, levando McCoy à desgraça e ruína, tanto na Bolsa de Valores, onde trabalha, quanto em casa. Só lhe resta uma saída: mentir. Este é o caminho que Brian De Palma toma para tornar verossímil e divertida uma história complicada, baseada no romance de Wolfe: um universo de traição. Para isso, compara a situação de McCoy a óperas burlescas, presente nas cenas que vai a julgamento. A fogueira é um dos grandes trabalhos de De Palma.

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Levaram 16 anos, no entanto, para que De Palma filmasse sua principal adaptação, desta vez de um livro de James Elroy, cujo Los Angeles – Cidade proibida foi resultado de outro filme seu, uma década antes. Trata-se de um tema diferente daquele visto em A fogueira das vaidades, mas visualizando a fundo a sociedade norte-americana. Alguns filmes têm uma recepção oposta à sua qualidade: difícil uma obra como Dália negra ter sido recebida do modo como foi no mesmo ano em que Scorsese recebeu o Oscar por um de seus filmes menos interessantes, Os infiltrados. O seu parceiro de direção de arte Dante Ferretti é responsável pela reconstituição de época desta obra-prima esquecida de Brian De Palma, talvez um de seus filmes com menos maneirismos na movimentação de câmera, certamente pela presença de Vilmos Zsigmond, responsável pela única indicação ao Oscar do filme e pela fotografia de O portal do paraíso: seu trabalho em Dália negra não se mostra menos excepcional.
A sensação é de que o espectador é transportado para a época e lugar em que se passa a história: a Los Angeles de 1947. Com transições de cena que lembram exatamente as de filmes desse período, De Palma, no entanto, não é sobrepujado pela tentativa de fazer metalinguagem, apesar de suas referências ao cinema de todos os modos, na investigação que empreendem dois detetives, Dwight “Bucky” Bleichert (Josh Hartnett), um ex-boxeador, e Lee Blanchard (Aaron Eckhart), para o assassinato da atriz Elizabeth Short (Mia Kirshner), a quem a imprensa atribui o apelido que nomeia o filme, a “dália negra”. Nessa investigação, Bucky terá de lidar com Madeleine Linscott (Hilary Swank) e Kay Lake (Scarlett Johansson), mulher de Lee.

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A trama é sinuosa, adotando uma carga de influência noir, e dialoga muito com Hammett, de Wim Wenders; De Palma, em meio a essas influências, não interrompe o fluxo da narrativa, conhecido inesperadamente por ser estático. Um cineasta que entregou nos anos 80 obras como Vestida para matar, Os intocáveis e Scarface, e nos anos 90 Síndrome de Caim e O pagamento final deve ser reconhecido como um daqueles que melhor sabe costurar a narrativa com a atmosfera. Em Dália negra, é principalmente esta combinação que leva o filme para frente.
Vejamos, por exemplo, a sequência em que Bucky, interessado em Madeleine, encontra os pais dela, Emmett (John Kavanagh) e Ramona (Fiona Shaw), para um jantar. E a investigação dele possui todos os elementos de um filme de De Palma: Elizabeth Short possuía uma vida secreta, inclusive relacionada ao cinema de Hollywood não tão reconhecido. Em termos de De Palma, possuir esses elementos similares também é perceber que Dália negra apresenta vários momentos de metalinguagem, embora, em relação ao restante de sua obra, relativamente contida. O principal diálogo parece ser com a obra daquele que o cineasta escolheu como principal precursor: Hitchcock. Mas aqui já é distante o tempo em que De Palma escolhe até os mesmos temas. Em Dália negra, é surpreendente como o diretor incorpora sua influência e joga, ao mesmo tempo, com todo o cinema dos anos 40 e 50, sem diluir, e sim entregando uma obra nova.
Seria compreensível que a parte mais sensível do filme fosse a atuação de Josh Hartnett, mas ele tem um desempenho muito convincente, assim como Eckhart. Ainda assim, as atuações femininas de Kirshner, Swank e, principalmente, Johansson (possivelmente em sua melhor atuação depois de Ela) transportam a obra ainda mais para a época considerada áurea de Hollywood. Há comentários satirizando a presença de Swank como femme fatale – ela aparece com o habitual talento no filme, e De Palma sempre foi conhecido por extrair grandes atuações de atrizes.

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De resto, há algo estranho quando um filme como Dália negra ser recebido da maneira como foi, enquanto Sin City faz sucesso a ponto de virar uma série – embora tenham propostas diferentes, há uma condescendência com este universo quando tratado sob uma ótica mais pop quando De Palma adapta Elroy da melhor maneira: entregando uma atmosfera excepcional e uma narrativa intrincada, em que não se sabe ao certo o que ocorre.
Pelo seu resultado junto à crítica e nas bilheterias, Dália negra parece ter custado a De Palma um afastamento de Hollywood, pois depois dele o cineasta só fez Guerra sem cortes e Paixão. É um filme que merece ser descoberto, pois talvez tenha, depois de O pagamento final, o melhor momento do cineasta desde os notáveis anos 80. Mas, mesmo em relação a seu conhecido Os intocáveis, Dália negra se sente ainda mais deslocado, um cinema assumidamente nostálgico, por outro lado apresentando uma carga moderna e uma atmosfera noturna fascinante. E ele definitivamente não é o que falam.

Black dahlia, EUA, 2006 Diretor: Brian De Palma Elenco: Josh Hartnett, Scarlett Johansson, Aaron Eckhart, Hilary Swank, Mia Kirshner, Mike Starr, Fiona Shaw, Patrick Fischler, James Otis, John Kavanagh, Troy Evans, Anthony Russell, Pepe Serna, Angus MacInnes, Rachel Miner, Victor McGuire, Gregg Henry, Jemima Rooper, Rose McGowan, Richard Brake, William Finley Roteiro: Josh Friedman Fotografia: Vilmos Zsigmond Trilha Sonora: Mark Isham Produção: Art Linson, Moshe Diamant, Rudy Cohen Duração: 119 min. Distribuidora: Universal Pictures

Cotação 5 estrelas

Chamada.Filmes dos anos 2000