Terra de ninguém (1973)

Por André Dick

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Poucos filmes são como Terra de ninguém, a estreia de Terrence Malick, no sentido de influenciar não apenas a geração seguinte, como também a sua própria e o cinema contemporâneo, sobretudo aquela leva de diretores-autores. Embora David Lynch seja o maior diálogo dessa obra de Malick, não apenas para o evidente Coração selvagem, como também para o discreto e com filiações a Buñuel Veludo azul, pode-se dizer que Tarantino também o escolhe como referência, principalmente quando escreveu Assassinos por natureza (um pouco mais do que no roteiro de True Romance), dirigido por Oliver Stone e um carbono em ritmo de MTV das cores interioranas e planas de Malick. Se a sátira que Tarantino e Stone fazem aos meios de comunicação é contundente, da mesma forma que seu estilo, afeiçoado a técnicas cada vez mais tortuosas (que Stone intensificaria em Um domingo qualquer e Reviravolta), ao centralizar suas lentes num casal psicopata (interpretado por Woody Harrelson e Juliette Lewis), que sai matando pelas estradas americanas, tratando da violência alimentada pela mídia, Terrence Malick apresenta uma versão que define a base do relacionamento entre dois jovens transviados, em que a cultura desempenha papel fundamental, com um conjunto de visões que deslumbra o espectador.

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No caso de Terra de ninguém (daqui em diante, spoilers) temos Kit Carruthers (Martin Scheen), 25 anos, que se apaixona por Holly Sargis (Sissy Spacek), de 15 anos, órfã de mãe, em Fort Dupree, na Dakota do Sul. Ele é uma espécie de réplica de James Dean, ou seja, é a cultura de seu tempo personificada – lembremos que em Coração selvagem Nicolas Cage gostaria de ser Elvis Presley. Kit inicia o filme catando lixo em becos da cidade, e logo em seguida encontra Holly brincando no jardim de casa, como se fosse uma Lolita, e a convida para passear– Malick é minucioso ao filmar as ruas cheias de árvores e tranquilidade, como se nada pudesse afetar este ambiente. Eles passam a se encontrar seguidamente, no entanto sem aprovação do pai (Warren Oates), que trabalha como pintor e pune a filha colocando-a em aulas de música. Quando Kit é menosprezado por ele, há um acerto de contas.
Ele e Holly, então, seguem pelas pistas do estado para Montana cometendo uma variedade de crimes. A narração de Holly (como em outros filmes de Malick) se contrapõe às ações que ambos exercem, e quando a polícia começa a caçá-los certamente temos uma narrativa que precede a de outros filmes conhecidos nesse sentido, como Louca escapada (de Spielberg) e Thelma & Louise (de Ridley Scott), enquanto a ingenuidade estranha dela certamente influenciou a menina do fraco Killer Joe. O filme de Malick dialoga com um casal que realmente existiu, Charles Starkweather e Caril Ann Fugate, que cometeram assassinatos entre 1957 e 1958. Sem dúvida, é o momento de estreia de Malick, e o momento em que mais procura dialogar, embora de maneira original, com a plateia. No entanto, Malick ainda não consegue, como em seus filmes posteriores, transformar essa rebeldia em mais do que um retrato do vazio e da tentativa de um jovem sem perspectiva – no caso, Kit – em se destacar agindo como um serial killer e exercendo um domínio sobre a namorada, ainda que apresente uma desenvoltura incomum na apresentação da narrativa.

Terra de ninguém.Sissy Spacek

Terra de ninguém.Martin SheenO que se destaca, em todas as impressões de Terra de ninguém, é que ele se compõe como uma espécie de faroeste contemporâneo, em que o personagem central sobe, sem nenhuma espécie de sentimento, em cima de uma vaca, em meio à sua procura por um novo trabalho, em que a paisagem é um lugar para os personagens deslizarem rumo ao desconhecimento e, como em toda obra de Malick, à natureza. Assim como são figuras comuns e distorcidas, Kit e Holly querem permanecer deslocados, à margem, e focalizam no desastre pessoal uma maneira de chamar a atenção. Não por acaso, na fuga do primeiro crime – em relação ao qual Holly parece não ter consciência, simplesmente obedecendo ao namorado –, eles se refugiam no meio de um bosque, onde passam a conviver com a natureza. Enquanto Holly fica na sua cabana em cima da árvore, Kit vai pescar com uma lança de madeira. Dentro do universo contemporâneo, Malick fecha os personagens numa espécie de redoma que evoca um Éden, que se anuncia em seus filmes mais recentes (há alguns detalhes visuais de Holly à beira do rio parecidos com aqueles que envolvem o casal de Amor pleno na maré perto da abadia de Saint-Michel). Esta névoa em busca de uma ingenuidade perfeita e que constitui o melhor momento do primeiro longa de Malick – até a primeira meia hora – logo se dissipa para dar lugar a uma série de refúgios e crimes. A maioria deles se torna um tanto redundante pela frieza e inexpressividade do casal (talvez aquele momento que melhor exemplifique isso seja quando os dois entram na casa de um ricaço, como se estivessem chegando para uma festa anunciada no local, mas cuja finalidade não tem um sentido capaz de alcançar de maneira decisiva o homem).
Malick quer mostrá-los, mais do que um como um casal perturbado, como indivíduos que desejam se afastar do mundo. Há, como no filme de Stone com base no roteiro de Tarantino, uma crítica à mídia. Kit, em determinado momento, acredita realmente que lembra James Dean, mas, enquanto este certamente se concentra no mundo idealizado pela pintura do pai de Holly, Kit se revela uma espécie de assustadora coincidência com o seu tempo desgovernado. A narração em off de Holly, porém, se constitui no elemento que coloca todos os outros em situação de estranheza: ainda assim, é capaz de lembrar mais um diário de adolescente sem visão sobre os próprios acontecimentos do que uma espécie de filosofia em imagens, como vemos na filmografia posterior de Malick. Delicada e sensível, a narração imagina um mundo totalmente à parte daquela ação que Malick está mostrando por meio de seus personagens. Holly é também Hollywood.

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Terra de ninguém.Cena 15As paisagens ficam cada vez mais desoladas, como os próprios personagens do filme e não existe aqui a noção de que “é tudo limpo e honesto”, como narra a personagem central de Amor pleno. Inevitável perceber como os personagens, que não conseguem implicar nenhum afeto em suas ações, são extremamente solitários e restritos a apenas um olhar: aquele que conduz os outros a partir de suas ações. Nesse sentido, o fato de ser um faroeste contemporâneo deixa claro que, aqui, quem pretende evocar a linha dos cowboys precisa não enfrentar os fora da lei, mas um corpo policial de fazer cada personagem enfrentar sua rotina derradeira. Não se deve esquecer que o filme foi lançado há 40 anos atrás, ou seja, uma série de abordagens até então não havia sido feita, o que não o impede de não trabalhar com toda sua propriedade o material que tem à mão, não no sentido estético – Terra de ninguém continua sendo um dos mais belos filmes já feitos –, mas de conteúdo. Isso não tira, de qualquer modo, a evidência de que, se não consegue ser tudo o que prenuncia, e mesmo justificar o culto que há em torno, em razão de ser a estreia de um cineasta fundamental como Malick, é um dos filmes mais importantes e decisivos para os rumos do cinema depois da década de 1970.

Badlands, EUA, 1973 Diretor: Terrence Malick Elenco: Martin Sheen, Sissy Spacek, Warren Oates, Ramon Bieri, Alan Vint, Gary Littlejohn, John Carter, Bryan Montgomery, Gail Threlkeld, Charles Fitzpatrick, Howard Ragsdale, John Womack Jr., Dona Baldwin, Ben Bravo Produção: Terrence Malick Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Tak Fujimoto, Stevan Larner, Brian Probyn Trilha Sonora: George Aliceson Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Carl Orff, Nat King Cole, Erik Satie Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Pressman-Williams Productions / Jill Jakes Production / Badlands Company

4 estrelas

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