Zona de interesse (2023)

Crítica sobre “Zona de interesse”, de Jonathan Glazer, no canal do YouTube.

Pobres criaturas (2023)

Crítica sobre “Pobres criaturas”, de Yorgos Lanthimos, no canal do YouTube.

Melhores filmes de 2023

Por André Dick

O cinema em 2023 parece ter escapado um pouco das impressões desde o início desta década, com a mais forte restrição que a humanidade experimentou em escala mundial. De certo modo, a greve de roteiristas e de artistas não chegou a impedir a circulação de obras que acabaram chegando a uma boa escala universal de cinemas. Embora o streaming não esteja mais tão fortalecido quanto antes, lançando obras de destaque apenas esporadicamente e quase sempre apenas com o intuito de chegar às premiações, há ainda muito que se descobrir, embora o cinema blockbuster continue conseguindo surpresas, como aquelas de Oppenheimer e Barbie. Mesmo quem passou longe dos cinema deve ter ouvido falar dessas duas obras. E deve ter ouvido falar que praticamente só há salas hoje em dia com filmes dublados, o que para a experiência do cinema não é a melhor das novidades (a dublagem é um trabalho importantíssimo, mas deve haver a versão original disponível).
De modo geral, o cinema em 2023 esteve calcado em sequências, e pode-se ver pelos personagens: John Wick, Indiana Jones, Creed, Shazam, Guardiões da Galáxia, Magic Mike, Homem-Formiga e a Vespa, Hercule Poirot, Aquaman, mas também tentou buscar novos ares, principalmente por meio de diretores renomados. Por sua vez, a bilheteria do ano, Barbie, conseguiu encantar o espectador muitas vezes com seu design de produção animado e um figurino cuidadoso, além das atuações muito bem recebidas de Margot Robbie e Ryan Gosling.

As animações mais uma vez estiveram em alta, não apenas aquelas da Pixar, como também da Universal, com o sucesso de Super Mario Bros. Homem-Aranha – Através do aranhaverso novamente foi um fenômeno, com sua tentativa de mesclar animação e arte nos moldes de um Pollock. O terror se mostrou tanto por meio das franquias, como Sobrenatural, Evil dead, O exorcista e Pânico, como por meio de peças específicas, a exemplo de Piscina infinita, Skinamarink e Pearl. Enquanto Snikamarink seria levado a sério se fosse realizado pelos meninos de Super 8, Fale comigo foi um destaque entre o público e tinha tudo para ser impactante como Corrente do mal, um dos melhores exemplares do gênero da década passada. Os diretores Danny Philippou e Bill Hinzman sabem o que fazer com os cenários delimitados e os recursos de efeitos sonoros, e Sophie Wilde tem uma boa atuação; são os pontos positivos. Porém, é muito curto para criar um impacto diferenciado e se apega demais a uma ideia de franquia para estabelecer suas premissas, não soando independente e sim como parte de uma fabricação pronta para perdurar, não importa o quanto canse o espectador. Nesse sentido, Piscina infinita, de Brandon Cronenberg, prosseguindo seu talento exibido em Possessor, busca uma acolhida mais em ideias do cinema independente, ao trazer também Mia Goth, que havia se destacado em Pearl, para o centro dos olhares nessa narrativa estranha e incômoda, apesar de por vezes se exceder na sua própria pretensão.

Mesclando terror e fantasia, baseado numa franquia de games, o ignorado Five nights at Freddy’s – O pesadelo sem fim acompanha Mike (Josh Hutcherson, em boa participação) que aceita trabalhar como segurança num lugar abandonado, Freddy Fazbear’s Pizza, mas que deve ser cuidado para que não haja invasões. Ele faz isso para poder manter sua saúde mental, assim como sua irmã, Abby (Piper Rubio), sendo constantemente ameaçado de perder a custódia dela para uma tia maléfica (Mary Stuart Masterson). Nesse lugar, há alguns animatrônicos que podem assustar. O filme de Emma Tammi, com certo talento na composição de cenas de suspense a partir de poucos recursos, tem uma primeira hora com bom trabalho de atmosfera e certa tensão, além da boa homenagem aos anos 80. Depois ele vai, aos poucos, perdendo o ritmo inicial. Ele está em seu melhor quando lembra Creepshow, de George Romero, com bom trabalho de cores e design e certo uso razoável do fantástico. Também parece haver uma influência de M. Night Shyamalan quando há algumas cenas passadas numa floresta.

Entre as comédias, Que horas eu te pego? foi consistente: Jennifer Lawrence se destaca como sempre, num papel que apenas ela poderia fazer, e Andrew Barth Feldman é bastante eficiente. Parece aquelas comédias que os irmãos Farrelly faziam nos anos 90 e início dos 2000, com uma certa influência ainda de Negócio arriscado, dos anos 80. Clube da luta para meninas igualmente é bem divertido. É influenciado por As patricinhas da Beverly Hills, mas não tem roteiro tão bom. Ainda assim acima da média, um passo adiante na trajetória de Emma Seligman, que estreou com o superestimado Shiva Baby. Ela conseguiu neutralizar a atmosfera indie artificial do seu filme de estreia com uma fotografia mais viva, além de administrar melhor elenco. O filme é uma variação, como o título aqui no Brasil sugere, do Clube da luta de David Fincher, procurando fazer uma miscelânea de sátiras tanto ao universo juvenil quanto ao sistema de ensino ao qual se tenta arduamente se adaptar em meios aos conflitos de mudança de geração. O elenco todo é ótimo, começando por Rachel Sennott, do filme de estreia de Seligman, e Ayo Edebiri. Há um senso muito agudo de percepção aqui que parece faltar na maioria dos exemplares dedicados a analisar esta fase da vida, embora não seja nada especialmente original.

Das misturas entre drama, suspense e terror, O mundo depois de nós, novo filme de Sam Esmail, que fez anteriormente a série Mr. Robot e o romântico Eu estava justamente pensando em você, lida com uma história cheia de teorias e enigmas e conta com grande elenco: Julia Roberts, Ethan Hawke e Mahershala Ali. Esmail trabalha agora, em termos de estilo, nos moldes de um M. Night Shyamalan. No entanto, o diretor não consegue tornar a história tão orgânica e plausível mesmo que lide com elementos fantásticos. Há uma tentativa de transformar a narrativa numa espécie de representação da sociedade moderna, contudo os personagens nunca parecem ser desenvolvidos como o esperado. Eles ficam parecendo figuras apenas simbólicas, restritas apenas a um discurso previamente montado, sem deixar muito para o espectador explorar. Pode-se dizer que os melhores diálogos são aqueles nos quais há alguma despretensão, diferente dos objetivos do roteiro de maneira geral. De qualquer modo, em termos técnicos e de atuação o filme é muito bom e se tornou um destaque no fim do ano.

Entre as sequências de ação, eu estava mais inclinado a gostar do estilo clássico de um Indiana Jones e a relíquia do destino do que do estilo incessante de John Wick 4 e das manobras de Missão: impossível – Acerto de contas – Parte 1, embora esses tivessem sequências finais extraordinárias. De qualquer modo, vale ressaltar a mistura entre Refn e Tarantino muitas vezes de Chad Stahelski na série com Keanu Reeves. Mangold não conseguiu suprir a humanidade que Spielberg insere em meio às cenas de ação, nem mesmo repete a eficiência de Encontro explosivo e Ford vs Ferrari, mas foi um esforço que teve seus méritos, principalmente na parceria entre Harrison Ford e Phoebe Waller-Bridge, muito mais eficiente do que se imaginava ou do que se fala. O fator nostalgia pesa em muitas sequências, abrindo diálogo com acontecimentos anteriores, e há um clima ao longo do roteiro de certa fadiga do personagem sob o peso também das mudanças de época, abrindo talvez mais espaço para uma melancolia antes quase inexistente. Ford faz isso muito bem, completamente dedicado ao papel, mesmo que já sem a força física de antes. A se lamentar a despedida tão precária nas bilheterias, já que se trata de um personagem histórico da cultura pop.

No subgênero de super-heróis, Guardiões da galáxia – Vol. 3 é um desfecho à altura da trilogia projetada por James Gunn. Ele consegue mesclar a nostalgia do primeiro filme com certo experimentalismo do segundo e de O esquadrão suicida para compor uma narrativa interessante. James Gunn desenvolve bem a atmosfera e o design de produção, com algumas boas referências a 2001 – Uma odisseia no espaço na cor do uniforme da equipe em determinado momento. Seu estilo visual se aprimora depois de O esquadrão suicida e mostra como consegue acrescentar elementos autorais à composição dos ambientes, com criatividade: ele realmente cria um universo à parte, como se mostrava principalmente no segundo. Dentro dos limites do bom humor que James Gunn gosta, o terceiro Guardiões teve bom diálogo com outros filmes do ano, a exemplo de Super Mario Bros – O filme e Dungeons & Dragons, na maneira como se formam equipes nesses filmes imbuídas de uma real tentativa de dar certo. E, dentro do universo de super-heróis, ficou muito além de peças como Homem-Formiga e a Vespa – Quantumania, As Marvels e Aquaman 2, inclusive nas bilheterias.

A diretora Sofia Coppola sempre teve muito interesse por como a figura feminina é recepcionada pela sociedade, desde sua estreia em As virgens suicidas no final dos anos 90. Tudo se encaminha de maneira mais ou menos parecida em Encontros e desencontros, em que se espera de uma jovem um comportamento que a faça se emancipar do namorado jovem por meio de uma figura mais velha (Bill Murray), em Maria Antonieta, no casamento imposto, e em Bling Ring, com as meninas querendo ser Paris Hilton sem nenhuma espécie de tendência a analisar as ações porque simplesmente querem ser aceitas numa high society. Em Priscilla, ela acompanha os primeiros contatos entre a adolescente Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) e o cantor e já astro Elvis Presley (Jacob Elordi) numa festa. Sofia desenha esse encantamento como a chegada de Maria Antonieta a seu novo palácio, mas talvez Presley não seja o príncipe encantado. Spaeny apresenta uma atuação digna de prêmios, muito contida e marcante, e Elordi faz um Elvis que parece ir jogando várias teias para capturar o que seria apenas uma extensão do depósito de seus problemas pessoais. Sofia faz de Elvis uma figura bem menos simpática do que aquela apresentada na cinebiografia de Baz Luhrmann, no entanto é uma outra visão sobre o astro do rock. Em alguns momentos, percebe-se que Sofia não está muito à vontade com a própria visão que pretende passar, o que talvez mostre um impasse em relação ao cinema que fazia, que é melhor do que apresenta em Priscilla, ainda assim sendo este digno de ser assistido e apreciado com a merecida atenção.

Em Magic Mike – A última dança, Steven Soderbergh fecha a trilogia com seu personagem, iniciada nos anos 2010. O personagem feito por Channing Tatum se depara com uma mulher de meia-idade, Maxandra Mendoza (Salma Hayek), que atrai Magic Mike para um universo de sonho envolvendo a dança, que é só dela a princípio; ele a acompanha e a partir daí surge uma série de irregularidades no sonho estabelecido por Maxandra no início. Hayek tem uma atuação muito eficiente, e Soderbergh sabe extrair sempre da atmosfera e da trilha sonora as principais virtudes para seu olhar apurado. Por mais que os dois primeiros sejam muito bons, eles ficam mais dentro de uma visão festiva. Este é um pouco mais denso, mais introspectivo e por vezes melancólico. Quem aprecia os outros dois talvez não entenda o que Soderbergh quis aqui: mostrar que a pretensa projeção de Mike em relação às mulheres se volta para ele mesmo, o que ele não existia nos filmes anteriores. Na verdade, aqui, Magic, antes de tudo, se apaixona pela primeira vez por si mesmo na figura de Maxandra. E isso é um passo à frente na análise de Soderbergh sobre o universo contemporâneo, que ele entende como poucos. Além de tudo, o filme é uma homenagem a musicais dos anos 70, como All That Jazz.

Wonka, de Paul King, certamente foi um dos melhores filmes de fantasia do ano. Baseado no personagem criado por Roald Dahl, ele mostra o que acontece com Willy Wonka no início de sua trajetória, antes da história que conhecemos pelos clássicos dos anos 70 e dos anos 2000 intitulados A fantástica fábrica de chocolate, embora já mostre pistas para o que irá acontecer. O jovem ator Timothée Chalamet ocupa o lugar de Gene Wilder e Johnny Depp com competência e, embora não seja engraçado como esses, ele acrescenta um tom mais ingênuo e despretensioso que os outros não tinham tanto. Com um design de produção e figurinos notáveis, o filme, ao mesmo tempo, comprova a versatilidade do diretor Paul King para histórias de fantasia, como já havia mostrado nos dois As aventuras de Paddington, às vezes revelando uma influência de Wes Anderson. Os vilões são caricatos no melhor estilo de filmes infantojuvenis clássicos (a ótima Olivia Colman contribui), com grande exagero na sua condução, mas quem se destaca mesmo é Hugh Grant num papel-chave e que só um ator como ele aceitaria fazer sem receio de ser satirizado. Sua participação é exitosa, sendo ele um dos atores mais subestimados na linha de humor desde os anos 90. É uma obra com atmosfera mais próxima dos filmes de Peter Jackson para o universo de Tolkien e dos de Harry Potter e, tendo feito o sucesso merecido, vai constituir uma nova franquia. Pela qualidade, merece.

Num ano em que se destacaram figuras da música, como o Maestro de Bradley Cooper, Tár tem direção de Todd Field  e mostra a trajetória da pianista Lydia Tár (Cate Blanchett), regente principal feminina do Berlin Filarmônica. Ela pretende fazer uma gravação ao vivo da Quinta Sinfonia de Mahler. Sua assessora é Francesca (Noémie Merlant, de Retrato de uma jovem em chamas) e sua esposa, Sharon (Nina Hoss), com as quais vai estabelecendo seus elementos de loucura interna. Por meio de cenários que parecem blocos frios, salientados pela fotografia apurada de Florian Hoffmeister, Field os torna a própria representação da alma dessa personagem. Tecnicamente o filme é uma beleza inóspita, mas, ao mesmo tempo, é puro cálculo matemático. Não há nenhuma emoção, nenhum drama nessa narrativa que ressoe junto ao espectador. Cada ação de Tár é como se fosse apenas um estilo de filmagem, um olhar adotado para mostrar certo requinte cinematográfico. Isso acaba atraindo o espectador porque certamente há um enigma nas imagens, mas, ao fim, não entrega mais do que uma arquitetura perfeita e distante de qualquer emoção. No entanto, é um cinema com ponto de vista, e isso o torna muito acima da média: é possível descobrir sensações mesmo num bloco de gelo.

Em parte, eu estava cansado de ver Spielberg tentar mais uma vez conseguir Oscar com Os Fabelmans (ele talvez tivesse  feito melhor na sequência de Indiana Jones), ficando nos tópicos mais automáticos e sem emoção, um cineasta que pode até agradar novos espectadores, ou com a tentativa de soar existencial de Os banshees de Inisherin, mas são filmes que agradaram ao público. Triângulo da tristeza trouxe um Östlund irreconhecível. Algumas obras quase artísticas eram visualmente lindas, como Os delinquentes, mas eu não conseguia ver muito mais do que histórias contadas com uma lentidão extrema para talvez dar saudades de um filme de Ceylan ou Kiarostami, e mesmo EO, de Jerzy Skolimowski, apesar de se sobressair, parecia uma reunião de videoclipes experimentais, sem formar muito uma unidade a não ser por aquela imposta pela figura do burro que vaga pelo mundo, embora Folhas de outono compensasse com sua mistura entre comédia agridoce existencial e drama sem peso, assim como Jafar Panahi conseguisse conciliar uma beleza documental ao vislumbre artístico em Sem ursos.

Eu conseguia ver mais elementos de filmes europeus em uma peça blockbuster como Jogos vorazes – A cantiga dos pássaros e das serpentes, na qual Francis Lawrence retoma a franquia, uma obra visualmente incrível, e Steven Caple Jr., reafirmando talento mostrado em Creed II, capturava belas imagens em Transformers – O despertar das feras. Do mesmo modo sinto que Larraín quis fazer algo mais artístico em O conde, no entanto esqueceu de tirar material na sala de edição. Com suas imagens contemplativas, outro destaque foi Retorno a Seul foi escrito e dirigido por Davy Chou, tendo estreado no Festival de Cannes de 2022. A história acompanha jovem Freddie Benoit (Ji-Min Park), que foi adotada por um casal francês e vai pela primeira vez à sua terra natal, a Coreia do Sul, tentando encontrar pistas do seu passado. Este é o tipo de filme que parece feito verdadeiramente em trânsito: Chou se inspira principalmente em alguns experimentos de François Ozon e Olivier Assayas do final dos anos 2000 (principalmente Boarding gate), mostrando um clima de metrópole sobre a vida dos personagens e de confusão moderna, em que não há segurança de origem ou descendência. A atriz Park efetua o papel de maneira muito eficiente, discreta, ao mesmo tempo que Chou vai lançando sua personagem em cenários de encontro consigo mesma (aqueles da natureza) ou de turbulência (não raramente envolvendo o que Freddie procura fazer para fugir de sua própria mudança. 

Publico aqui os melhores filmes de 2023, especificamente lançados no Brasil, por isso não há alguns concorrentes possíveis ao Oscar de 2024 e sim alguns que concorreram no ano passado. Às vezes não é tão simples saber o que foi lançado comercialmente, nos cinemas ou streaming, por isso será avaliado se haverá outra lista ainda, mais adiante, apenas dos melhores oficialmente de 2023 no meu canal do YouTube (inaugurado em fevereiro de 2023). Ainda antes menções honrosas e filmes vistos. No canal do YouTube, há vídeos sobre alguns destes filmes citados a seguir. Agradeço apoiar o canal (aqui e no YouTube) e desejo um excelente 2024.

Menções honrosas

John Wick 4 – Baba Yaga (Chad Stahelski)
Clube da luta para meninas (Emma Seligman)
Piscina infinita (Brandon Cronenberg)
Folhas de outono (Aki Kaurismäki)
Que horas eu te pego? (Gene Stupnitsky)
Guardiões da galáxia – Vol. 3 (James Gunn)
Tár (Todd Field)
Magic Mike – A última dança (Steven Soderbergh)
Indiana Jones e a relíquia do destino (James Mangold)
EO (Jerzy Skolimowski)
Jogos vorazes – A cantiga dos pássaros e das serpentes (Francis Lawrence)
Dungeons & Dragons – Honra entre rebeldes (John Francis Daley, Jonathan M. Goldstein)
Sem ursos (Jafar Panahi)

Também vistos

Triângulo da tristeza (Ruben Östlund)
Broker – Uma nova chance (Hirokazu Koreeda)
Os banshees de Inisherin (Martin McDonald)
A garota silenciosa (Colm Bairéad)
Homem-Aranha – Através do aranhaverso (Joaquim Dos Santos, Justin K. Thompson, Kemp Powers)
Skinamarink (Kyle Edward Ball)
Nimona (Troy Quane, Nick Bruno)
O exorcista – O devoto (David Gordon Green)
Super Mario Bros – O filme (Aaron Horvath, Michael Jelenic)
Shazam! – Fúria dos deuses (David F. Sandberg)
Barbie (Greta Gerwig)
Saltburn (Esmerald Fennell)
Pearl (Ti West)
O urso do pó branco (Elizabeth Banks)
O conde (Pablo Larraín)
Resistência (Gareth Edwards)
Five nights at Freddy’s – O pesadelo sem fim (Emma Tammi)
Os Fabelmans (Steven Spielberg)
Rye Lane – Um amor inesperado (Raine Allen Miller)
Creed III (Michael B. Jordan)
Megan (Gerard Johnstone)
A noite das bruxas (Kenneth Branagh)
O mundo além de nós (Sam Esmail)
As Marvels (Nia DaCosta)
Uma boa pessoa (Zach Braff)
Transformers – O despertar das feras (Steven Caple Jr.)
Os delinquentes (Rodrigo Moreno)
A morte do demônio – A ascensão (Lee Cronin)
Fale comigo (Danny Philippou, Michael Philippou)
Homem-Formiga e a Vespa – Quantumania (Peyton Reed)
Pânico VI  (Tyler Gillett, Matt Bettinelli-Olpin)
Elementos (Peter Sohn)
Close (Lukas Dhont)
Missão impossível – Acerto de contas – Parte 1 (Christopher McQuarrie)
Besouro Azul (Angel Manuel Soto)
Blue Jean (Georgia Oakley)
Aquaman 2 – O reino perdido (James Wan)

O diretor Andy Mushietti assumiu The Flash como um projeto inacabado pelos diretores John Francis Daley e Jonathan M. Goldstein, que foram fazer Dungeons & Dragons. Não exatamente com a melhor estrutura, com o universo planejado por Zack Snyder para a DC se desmanchando, Mushietti colocou Ezra Mlller e Michael Keaton retomando seu Batman dos anos 80 para salvar o filme – e o salvou, com dignidade, apesar e certa turba ter delirado com o fracasso financeiro do filme. Com uma mescla do bom humor que funcionou em Shazam, por causa do talento de David F. Sandberg, com o melhor da introdução da DC, em O homem de aço, trazendo de volta a figura de Zod (Michael Shannon), The Flash tenta debater como se dariam realidades paralelas, tempos diferentes que se encontram e convivem com conflitos ou de modo até harmonioso e de como escolhas pessoais podem interferir na passagem do tempo. No universo da DC planejado por Snyder, essa intervenção se dá sempre sob a comoção dos pais e aqui não é diferente: tudo está ligado ao destino da mãe e do pai do personagem central. Miller consegue dedicar algumas notas de interesse para o personagem já exploradas em filmes de Snyder anteriores, com certo encontro dele com a obscuridade de sua outra faceta. Não há nada aqui em termos de CGI também que não esteja em outros filmes do subgênero de super-heróis, com o acréscimo de que Mushietti, desde It, é um dedicado cineasta a favor da concepção visual capaz ao mesmo tempo de corresponder aos termos do blockbuster mais comum e também a uma variação contemporânea bem-vinda, excetuando seu final, quase tão desanimador quanto aquele que fechou o DCU nos cinemas, em Aquaman 2 – O reino perdido.

Vencedor da mostra Un certain regard no Festival de Cannes neste ano, How to have sex mostra o encontro de amigas de dezesseis anos, Tara (Mia McKenna-Bruce), Em (Enva Lewis) e Skye (Laura Peake) num resort festivo de Malia, na ilha grega de Creta. Tudo indica no início que a diretora Molly Manning Walker vai tentar emular Spring breakers, de Harmony Korine, mas o objetivo dela é outra. Tentando romper com a ideia da adolescência como uma fase simplesmente divertida, Walker encaminha sua personagem Tara, em atuação sensível e expressiva de Bruce, possivelmente uma estrela se conseguir adqui por diante bons papéis, para uma realidade afastada exatamente das discotecas que as amigas querem frequentar. A visão que se dá também dos relacionamentos efêmeros e sem acréscimo já nesta fase é levemente impactante, mesmo que em nenhum momento a maneira de filmar seja exatamente ousada. O filme indica como se deve ser sem se submeter à expectativa ou espera de outros que estão em torno, e é nessa busca de sentido que se constrói a experiência do roteiro, mais trabalhado do que aparenta.

O live action de A pequena sereia foi surpreendente e teve recepção atenuada pela comparação com o filme dos anos 80, que reergueu a Disney na época num período em que o grande nome do gênero era Don Bluth. Na nova versão, destacam-se as atuações de Halle Bailey e Jonah Hauer-King, que conseguem passar uma ideia de real amor romântico, e dos coadjuvantes Javier Barden e Melissa McCarthy, esta em especial momento da trajetória. O cuidado com a ambientação é metade do caminho para apresentar uma ideia sólida de fantasia, e o diretor Rob Marshall entrega um trabalho apurado, mais do que no já cuidadoso O retorno de Mary Poppins. As cenas no fundo do mar são espetaculares especialmente, deixando com a sensação de terem utilizado já até algumas técnicas de Avatar – O caminho da água, de Cameron, o que não seria surpreendente, sendo ambos da Disney. Há também grandes sequências de tempestade em alto mar muito bem feitas. A parte inicial tem um clima que evoca, em determinado instante, até Tubarão, e a entrada da vilã combina com o ingresso das canções clássicas. Cada personagem acaba atendendo a um determinado percurso predeterminado, mas isso não tira a empatia com eles, muito por causa da competência do elenco. Dentro dos moldes de fantasia a que se propõe, é um exemplar de real qualidade, que remete, principalmente, aos filmes da Disney nos anos 70.

Dirigido por Albert Serra com o olhar em Apenas Deus perdoa, de Nicholas Winding Refn, e Cemitério do esplendor, de Apichatpong Weerasethakul, Pacifiction apresenta um funcionário do governo francês, de Roller, em interpretação extraordinária de Benoît Magimel, que trabalha na ilhado Taiti , na Polinésia Francesa. Ele tenta tanto agradar a pessoas de um universo a princípio mais acadêmico e sofisticado quanto pessoas mais populares que habitam a região. Pacifiction é um triunfo visual por causa do trabalho de fotografia de Artur Cort, que captura uma espécie de sol dos anos 80 nessa ilha paradisíaca, quando De Roller fica parecendo até Tony De Marco, a persona de Al Pacino em Scarface. Nos arredores também surge um possível submarino trazendo novamente testes nucleares da França, o que não é garantido, parecendo trazer aos 165 minutos de filme algum sentido de ação, o que obviamente se dilui a cada vez que Serra estende cada vez mais cada sequência, levando o espectador a uma experiência de estar literalmente nesse lugar, aguardando um sobreaviso de partida. Parece um universo meio de sonho, perdido no espaço e tempo, como os barcos que chegam e partem da ilha e o pôr-do-sol que avança sobre as águas antes de a música soar no clube noturno.

O que mais me surpreendeu em Rebel moon – Parte 1 – A menina do fogo foi o trabalho de fotografia também assinado por Zack Snyder. Praticamente ninguém fala disso, porque em geral se procura mais falhas em seu trabalho, mas a paleta de cores do filme é extraordinária. O universo construído tem influência clara e direta, como qualquer FC com elementos de ação, de Star Wars, assim como de Tolkien e de Kurosawa. A primeira meia hora de mostra como seria Snyder num ambiente mais dramático histórico (mesmo que aqui seja FC), assim como víamos em Sucker Punch, uma homenagem aos anos 40 e 50 do cinema em muitos momentos, e em Watchmen – O filme, com elementos dos 60/70. Desse modo, tem uma narrativa contemplativa mais ou menos até a metade e depois ingressa numa edição com elementos mais de blockbuster. No entanto, o Snyder que fica é aquele com mais influência de cineastas europeus, como vemos em seu Liga da Justiça. Tudo é muito discreto. Snyder parece, nisso, ter perdido certo interesse em tornar as sequências mais bombásticas, como havia até Batman vs Superman. Mesmo Army of the dead é tudo muito concentrado em pausas de imagens e sem grandes efeitos sonoros para aumentar impacto das cenas. A câmera lenta, claro, está lá. Não se sabe como será a versão estendida, porém se fala em bem mais cenas de violência, o que pode mudar estilo. O trabalho de Sofia Boutella no elenco de Rebel moon é muito bom, mas eu destacaria em seguida o de Michiel Huisman, um ator que parece saído da fase áurea de O senhor dos anéis de Jackson: atuação sem recursos expositivos, contudo bastante empática. E os efeitos visuais são notáveis. Como adversários este ano, só vejo os de Godzilla minus one e os de Napoleão (neste, efeitos que não parecem efeitos). Design de produção incrível também: se não fosse de Snyder, trabalho seria lembrado em prêmios.

Este filme dirigido por Julia Murat foi o grande vencedor do Festival de Locarno, levando o Leopardo de Ouro, e dá sequência ao seu projeto cinematográfico antecedido por Pendular. Com roteiro da diretora em parceria com Gabriela Capello, Rafael Lessa e Roberto Winter, Regra 34 acompanha Simone (Sol Miranda), uma jovem advogada negra e defensora pública que atende casos de violência doméstica. Ao mesmo tempo, ela faz performances sexuais na internet e luta kung fu, ao lado da amiga Lucia (Lorena Comparato). O mais interessante talvez de Regra 34 seja como o filme expõe o conflito entre teoria (principalmente das aulas de direito, com discussões sobre os direitos dos clientes) e a realidade. A personagem vive uma trajetória ambígua, pois, ao mesmo tempo que ouve relatos de violência, parece querer experimentar aquilo do ponto de vista de seus interesses de prazer. A atriz Sol Miranda tem uma atuação fora de série, conseguindo exatamente tornar essa duplicidade muito evidente. Do mesmo modo, o filme ao expandir discursos de mudança parece, ao mesmo tempo, tomar certa distância para mostrar que talvez seja muito difícil separar essa teoria e essa realidade; parece que, para Murat, tudo se dissolve e não há exatamente referenciais seguros. O filme é concebido nesse sentido com uma fotografia não raro excepcional de Léo Bittencourt, tentando equilibrar os espaços mais expansivos do tribunal com o ambiente do quarto fechado. Em certos momentos, o filme parece ter algum diálogo com Bling Ring, de Sofia Coppola, com a presença constante do universo virtual no que está se fazendo, conversando, debatendo – e esse universo passa para o mundo real, fazendo com que desapareçam os limites. Trata-se de um cinema que procura ousar não apenas na sua temática, como também na maneira como a apresenta. Um cinema autoral, com busca de uma dramaturgia e estilo diferenciados que encontra exatamente na performance de Sol Miranda sua principal justificativa.

Crescendo juntas é um cooming of age escrito por Kelly Fremon, a mesma do agradável Quase 18. Aqui ela acompanha uma menina de 11 anos, interpretada pela excepcional Abby Ryder Fortson), que se muda com os pais (Rachel McAdams e Bennie Safdie) para uma cidade do interior. Tendo origem cristã por parte de mãe e judaica por parte de pai, sendo que o destaque é sua avó Sylvia, em desempenho cativante de Kathy Bates, ela vive conflitos adequados à sua idade, os primeiros interesses por colegas de aula ou amigos de rua e uma tentativa de enfrentar os primeiros passos para as descobertas mais sensíveis da existência, capazes de demarcar toda a vida. Fortson e McAdams possuem uma ótima química juntas, fazendo as sequências em que aparecem muito íntimas e, ao mesmo tempo, bem-humoradas, emprestando à narrativa uma atmosfera de liberdade que outros volumes destinados a essa idade não possuem.

Martin Scorsese foi um dos destaques para a crítica em geral, com seu Assassinos da lua das flores, com suas 3h30 tentando atravessar o vale de aniquilação da nação Osange com uma série de atuações de relevo, como as de Robert De Niro, Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone sem em nenhum momento dar voz realmente aos indígenas, mas apenas tratando tudo como uma espécie de universo da máfica deslocado no espaço e tempo. Ainda assim, Scorsese eleva qualquer material com a fotografia linda de Rodrigo Prieto e o design de produção primoroso; mesmo quase completamente perdido na sala de edição com Thelma Schoonmaker, ele entrega ainda uma peça a ser vista, na qual se destaca a primeira hora, antes de cair num momento de repetições constantes do roteiro, e retomar um pouco mais o fôlego depois da segunda hora, quando entram em cena Jesse Plemons e Brendan Fraser. Com ritmo evidentemente irregular, Scorsese mostra o lado mais crítico da sociedade predominantemente branca tendo de dar espaço para uma comunidade indígena com muito dinheiro. Se as ações dos personagens soam muitas vezes implausíveis, Scorsese, porém, não consegue fazer o movimento de voz para os Osange, mesmo quando praticamente tira a melhor personagem, feita por Lily Gladstone, praticamente de cena. Ele se mantém pelo olhar de Prieto para paisagens incrivelmente emolduradas, parecendo trazer o melhor cinema dos anos 50, um olhar quase de George Stevens em Assim caminha a humanidade. O melhor do seu filme está em evidenciar esta tradição.

Com o fluxo de imagens que apenas Christopher Nolan consegue proporcionar, Dunkirk é uma verdadeira ópera visual em que o criador da bomba atômica, feito por um excepcional Cillian Murphy, não deseja mais do que concretizar o que acha que deve fazer. No meio do trajeto, a figura de um apoiador notável, feito por Robert Downey Jr. É de se lamentar que filme tão lindamente filmado, com fotografia lembrando quadros, tenha uma hora inicial tão intensa, talvez a melhor em toda a trajetória de Nolan (e se destaque as atuações de Florence Pugh e Matt Damon, principalmente), e seja tão prejudicado no terceiro ato, quando Nolan tenta emular muito JFK de Oliver Stone e acaba se excedendo, sobretudo ao querer trazer uma revelação que pouco acrescenta além do que já se sabia por trás dos bastidores da história. Mas tudo compensa: em matéria de efeitos sonoros e de análise sobre como a bomba atômica interferiu no curso da humanidade Oppenheimer é um filme que deve ser visto. Nolan efetua pela primeira vez em sua trajetória um caminho para a discussão mais abrangente sobre um tema histórico específico, mais do que sobre a guerra em Dunkirk. É interessante perceber como ele faz algumas analogias visuais com Batman – O cavaleiro das trevas ressurge, que também lidava com uma bomba atômica, porém na cidade de Gotham City. Em igual escala, a tranquilidade de Murphy na maior parte do filme às vezes é interrompida por uma versão dele mais intranquila, mais parecendo o Espantalho de Batman begins, com os olhos esbugalhados, como se ele estivesse obcecado por sua invenção.

Brendan Fraser ganhou seu inesperado Oscar de melhor ator por este papel como um professor de redação on-line. O diretor Darren Aronofsky mostra a condição de sobrepeso do personagem como aquilo que o mantém preso em casa, à sua cadeira, onde ele exerce seu trabalho. Visitado por uma amiga que ajuda a cuidar de sua saúde (Hong Chau) e de uma filha com quem não tem boa relação (Sadie Sink), A baleia tenta apresentar os melhores elementos da filmografia do diretor: a maneira como o personagem se encontra à margem, como aquele de O lutador ou a menina de Cisne negro, que a companhia parece não querer, e como ele quer transcender para além, o que se encontra principalmente no belo Réquiem para um sonho, assim como em mãe! Este é um filme baseado em atuações, com uma organização semelhante à de um teatro e um espaço caseiro nunca tendendo ao cansaço de que parece um estúdio. Os personagens e os ambientes de A baleia parecem reais e o filme não é, como alguns apontaram, uma condenação ao estado do personagem nem um alívio a essa condição: suas premissas são muito mais densas, profundas e ressonantes, especialmente no diálogo do personagem com o mundo fabular da literatura, tornando a história bastante comovente ao final.

A tradição do Kaiju, que envolve filmes de monstros, esteve muito representada por vários filmes feitos nos Estados Unidos desde os anos 70, principalmente, com outro estilo para além daquele do cinema japonês. No entanto, Godzilla minus one parece ser o.melhor encontro entre as duas tradições. O diretor Takashi Yamazaki tenta, ao mesmo tempo, recuperar um certo cinema mais experimental, na paleta de cores, dialogando até com O mestre, de Paul Thomas Anderson, e Dunkirk , de Christopher Nolan, com o clássico do monstro lançado nos anos 50. Com um domínio técnico notável, em cima de um orçamento irrisório de 15 milhões de dólares, para os padrões de blockbusters, o filme ainda possui uma leitura histórica sobre os efeitos da Segunda Guerra Mundial e um bom diálogo com Tubarão, de Steven Spielberg. Ele desenvolve um núcleo de personagens específico de maneira interessante, mas se destaca mesmo nas sequências de ação em que os efeitos visuais e sonoros alcançam estágio poucas vezes visto no cinema. Talvez por isso o filme esteja sendo cotado inclusive para premiações importantes, o que não é tão comum para o gênero. Um filme que pode em termos narrativos não trazer nada de muito novo, principalmente pela falta de desenvolvimento de um bom núcleo de personagens que apresenta, entretanto sua experiência na grande tela do cinema principalmente traz impressões muito boas.

Este é um filme nos moldes da trajetória de Park Chan-wook, uma inusitada mescla entre romance, suspense e policial tendo como protagonista um casal interpretado por Tang Wei e Park Hae-il. Park tem pelo menos uma obra-prima, A criada, além de filmes experimentais de vampiros (com destaque para Sede de sangue) e sempre foi eficiente na construção de uma atmosfera estranha, a exemplo do que já se via no seu referencial Oldboy. Com o passar do tempo, porém, Park foi ficando um diretor que utiliza o aspecto clássico para acrescentar certas novidades narrativas, e por isso este Decisão de partir lembra muitas vezes Hitchcock e até David Dincher. Lançado no Festival de Cannes, onde ele venceu o prêmio de melhor direção, o seu roteiro confunde o espectador ao nunca especificar o que principalmente a sua protagonista deseja. Hae-il, por sua vez, é um primor como um detetive que se apaixona pela suspeita de crime, conseguindo, ao mesmo tempo, enveredar por um caminho de insegurança, afeto e certeza de que há algo muito estranho ocorrendo nos passos que dá, enquanto Wei faz com perfeição uma figura misteriosa que poderia rivalizar com a Sharon Stone de Instinto selvagem, embora de maneira mais comedida. Além de tudo, o final deste filme é um dos mais impactantes do cinema recente.

Depois de Nasce uma estrela, Bradley Coooper ingressou neste seu segundo projeto como diretor, já com a expectativa à altura da recepção do primeiro. Ele não foi tão bem aceito, principalmente por sua intenção como ator: fazer o músico Leonard Bernstein nas primeiras sequências com uma espécie de overacting. No entanto, ao longo da metragem, ele vai modulando o personagem e acaba por refiná-lo. Carey Mulligan no papel de sua mulher está excelente, como de praxe em seus papéis mais recentes, entre os quais se destaca Bela vingança em 2021 (ano em que tiraram dela um Oscar de melhor atriz para dar a Frances McDormand, como vão fazer este ano, para dar a Lily Gladstone, que tem ótima atuação em Assassinos da lua das flores, mas não tem um papel exatamente de atriz principal). Por vezes, Maestro lembra, pela linda fotografia de época do extraordinário Matthew Libatique (parecendo trazer de volta os anos 40, depois os anos 60 e 70), um pouco de Paolo Sorrentino, e Cooper de certo modo entrega fragmentos de uma vida, não exatamente uma sequência narrativa linear. Para um projeto que se pretende isca para o Oscar, bastante evidente, ele acaba, por outro lado, negando esse traço bastante recorrente: de contar uma história bastante mastigada. Tanto que se vê o filme como uma obra sobre um músico, não sobre um músico determinado, o que talvez explique algumas notas negativas, pois se esperava ver mais sobre especificamente Leonard Bernstein. Cooper continua mostrando, como em Nasce uma estrela, um talento vigoroso para filmar, principalmente por meio de alguns enquadramentos e determinadas discussões entre os personagens. Também é notável como ele dispõe a passagem de tempo, de forma ao mesmo tempo abrupta e orgânica. Ele parece também, pela maneira como filma, acompanhar a própria história do cinema, e são incríveis alguns cenários de época. Um filme que conversa com seu tempo, contudo também com a tradição de uma Hollywood que quase não mais existe, Maestro aplica a tradição narrativa de modo também a trazer novidades. Num instante em que Cooper parece ver seu talento colocado em dúvida, o filme lembra por que ele é um dos maiores artistas hoje em Hollywood.

Difícil entender como 1917, um filme em que predominava a técnica, foi tão exaltado e este seguinte de Sam Mendes foi tão criticado. Talvez haja a questão de debate racial durante a narrativa, o que não seria visto de maneira equilibrada por ele… porém, indo ao filme é notável como ele, ao mostrar o funcionamento de um cinema, o Empire, na cidade litorânea de Margate, em que o projecionista Norman (Toby Jones) tem verdadeira paixão por passar os filmes, é delicado e sensível. No lugar trabalha Hilary (Olivia Colman), que tem um caso com o superior, Ellis (Colin Firth), e acaba se afeiçoando a um jovem funcionário Stephen (Micheal Ward), afrodescendente que sofre preconceito. Se em certo momento Mendes mostra Stephen sofrendo uma abordagem de rua violenta que remete a Laranja mecânica, Mendes não foca exatamente nesta questão, mas no afeto entre Hilary e Stephen. Colman e Ward funcionam muito bem juntos e o cinema é um ponto de luz para este encontro: a fotografia de Roger Deakins destaca a fachada do cinema, a recepção, o próprio interior diante da tela. Tudo se mostra equilibrado e iluminado. A afeição do casal é a representação dessa tentativa de buscar um ânimo longe da realidade mais bruta. Do mesmo modo, a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross é absolutamente memorável, como se dialogasse com a condição desses personagens. Os cenários destacando a solidão dos personagens, o figurino discreto de cada um mostrando a tentativa de ser independente do contexto em que se situam e a cadência narrativa levam Império da luz a um lugar certamente humano. Inevitável pensar o que faz com que filmes de tanta qualidade quanto este e Babilônia se mostram divisivos ao contrário daquele grupo de eleitos tão incontestável nas premiações, e é inegável perceber que está sendo tirado do público um tipo de experiência mais ligado à carga de subjetividade de personagens. Os roteiros bem aceitos costumam expor didaticamente seus temas e quando um filme como este de Mendes surge parece que as tentativas de ele discutir determinados aspectos da sociedade soam irremediavelmente deslocados. Isso faz com que boa parte do público não acesse essas obras e fiquem sem conhecer um olhar diferente sobre a arte.

Shyamalan nunca foi muito afeito a discursos existenciais sobre a humanidade, preferindo deixar a cargo da solidão de seus personagens sempre um aceno para certa incredulidade diante da morte. O sexto sentido já era assim: partindo de uma sequência de morte, ele dava o tom de toda a história sob o ponto de vista de um menino. Em Batem à porta, Shyamalan acaba se arriscando e, mesmo com algumas sequências remetendo ao subestimado Fim dos tempos, joga na relação entre Eric e Andrew o núcleo emocional da história – e a consequente adoção de Wen. Os flashbacks da história são extremamente funcionais: eles jogam o espectador para dentro da situação absurda, afinal quatro pessoas que surgem do nada avisando sobre o possível fim do mundo parecem ser decisivamente fora da realidade. Há todo um mistério que pode envolver elementos bíblicos – não por acaso a menina captura gafanhotos, remetendo à praga do Egito, no início da narrativa – e também componentes de seitas religiosas fanáticas. Por isso, é irretocável a atuação, num extremo, de Dave Bautista, como o calmo e conciliador Leonard, e de outro a de Jonathan Groff, ator que deveria ser mais considerado depois de sua participação na série Mindhunter, de David Fincher. Esses personagens representam uma espécie de calma diante do desespero, que não existe em Andrew, por exemplo, numa atuação magnífica de Ben Aldridge. Forma-se um tom emocional em torno desses personagens e do dilema, à la Buñuel, no entanto o surrealismo de Shyamalan surge mais em camadas de suspense e desespero diante do ato que pode se consumar ou não, o que também pode se colocar na bela atuação de Amuka-Bird. Muito difícil imaginar que haja quem não fica tenso o tempo todo para ver que atitudes os personagens terão, mas isso pode existir, claro.

O diretor Ira Sachs já havia feito alguns filmes sobre família e relacionamentos anteriormente, a exemplo de O amor é estranho, mas guardou o seu melhor para a versão com estilo francês de sua filmografia, em Passagens. Com ótimas atuações de Franz Rogowski e Ben Whishaw, que são ora apaixonados, ora desiludidos, e trazendo Adèle Exarchopoulos de volta ao estrelato que ela merece para compor um triângulo amoroso, Passagens é um filme evidentemente sobre a dor que alguns relacionamentos trazem, sem atenuar em nenhum ponto. Não apenas Rogowski é plausível como um artista completamente instável e indefinido sobre o que quer, como Wishaw parece querer se afastar de qualquer diálogo mais denso, sobrando para a personagem de Exarchopoulos imaginar um futuro diferente, no entanto que parece sempre traçado de antemão. Um filme sobre pessoas que gostam de fazer jogos amorosos sem se importar muito com nada à sua frente, ao mesmo tempo sobre o medo de solidão, também com elementos tóxicas de narcisismo desencontrado. Sachs dispõe os personagens em cena como se fossem integrantes de uma peça teatral e lhes entrega um roteiro à altura para mostrarem a que vieram nessa narrativa. Não há muito o que comemorar em Passagens, contudo há muito de cinema aqui.

Conhecido por filmes como Seven e O curioso caso de Benjamin Button, David Fincher volta ao cinema com O assassino, um estudo de personagem sobre um psicopata feito por Michael Fassbender. A atuação dele é excepcional, quase sem falas ou diálogos, contida, e a atmosfera utilizada por Fincher ressalta um universo, como o personagem sempre fala, sem empatia. A narrativa é linear e não possui muitas relações entre personagens possivelmente para ressaltar o isolamento que Fincher pretende. Tudo faz com que as situações representem a própria frieza do personagem-titulo, com uma visão de mundo circular, sem ver nada além do que ele próprio pensa e repete incansavelmente para justificar seus movimentos, como é comum na obra do diretor, bastante pessimista, quando se encaminha a um determinado encontro derradeiro. Não é filme para todos os públicos, mas Fincher filma como poucos. Seu início como diretor de videoclipes de Madonna e Billy Idol ainda traz um domínio sobre a imagem e o que ela pretende passar para o espectador tanto em termos técnicos como de fluidez. Montagem exata, sem sobras, também como é comum nos filmes do diretor, que às vezes parece também buscar uma espécie de autorretrato: ele é comum ou é raro? Em se tratando da Hollywood atual, Fincher é uma peça rara.

Holy spider é uma espécie de suspense com thriller dirigida pelo iraniano Ali Abbasi. Ele se baseia na história real de um serial killer que visava garotas de programa no Irã. Com uma espécie de fluxo na linha de David Fincher, acompanhado do realismo de Kiarostami e de Asghar Farhadi, Zar Amir Ebrahimi interpreta uma jornalista que investiga as vítimas desse assassino na cidade de Masshad. A atmosfera noturna, ao mesmo tempo de perigo e de tentativa de se descobrir o que acontece, poderia muito bem caber num filme de Kathryn Bigelow, como A noite mais escura, mas se manifesta aqui por meio de um thriller de arte cujas bordas nunca parecem óbvias. Isso é um estudo sobre personalidades perturbadas e de como a sociedade pode lidar com elas, em que a recepção ao que é inaceitável se confunde com determinadas interpretações sobre regras ou preceitos.

Ben Affleck já foi mais reconhecido como diretor do que como ator principalmente por causa de Argo, vencedor do Oscar, mas seus outros filmes também são muito interessantes, a exemplo de A lei da noite. Neste ano, ele está à frente de Air – A história por trás do logo, mostrando a tentativa de uma grande empresa ligada ao universo dos esportes em assinar contrato com o jogador de basquete Michael Jordan nos anos 80. O principal responsável por essa tentativa é Sonny, interpretado por Matt Damon, que estabelece parceria de novo com Affleck depois do clássico Gênio indomável dos anos 90. Affleck, aqui, faz o líder dessa grande empresa. O roteiro é bastante simples, direto, porém funciona, e, mesmo se o espectador conhece a história verdadeira, há um real interesse em saber como os personagens vão agir, assim como a montagem não deixa cenas sobrando ou em excesso. Tendo no grande elenco coadjuvante ainda Viola Davis, Chris Tucker, Chris Messina e Jason Bateman, Air – A história por trás do logo é despretensioso e eficiente na mesma medida. Isso não é mais comum; parece simples. Acredite: você verá isso poucas vezes daqui em diante no cinema.

O diretor alemão Christian Petzold sempre demonstrou talento, sobretudo em Barbara e Phoenix, e Afire talvez seja seu melhor filme. Acompanhando Leon (Thomas Schubert) e o amigo Felix (Langston Uibel) em férias numa região de natureza propícia a passagens de incêndio, Afire tenta registrar o momento em que um escritor tem um livro em mãos, mas não consegue fazer com ele o que mais deseja: publicar. A atriz preferida do diretor, Paula Beer, faz Nadja, que trabalha na localidade e acaba ficando amiga de ambos, ao lado de Devid (Enno Trebs). Afire tem diálogos muito bem escritos, como é comum na filmografia de Petzold, e uma influência bem-vinda de Éric Rommer, principalmente Pauline na praia. O filme lida com os conflitos entre arte e realidade, deslocamento e encontro com uma fotografia muito contemplativa de Hans Fromm, sempre tentando trabalhar as nuances de cada personagem, com a ajuda fundamental do elenco. A generosidade ou falta de, os gestos calculados, as intenções expostas e escondidas: tudo parece caber nesta obra fundamental, com rara beleza. Sua principal habilidade é lidar com o fato de o escritor ser ou não alguém apto a aceitar a rotina e o cotidiano em seu trabalho, e isso Schubert traduz por meio de sua interpretação sempre parecendo deslocado das situações.

Damien Chazelle destaca principalmente a desilusão com que às vezes se vê às vezes a indústria do cinema, porém, ao mesmo tempo, o sonho e o otimismo que podem existir a partir dela. Segundo alguns analistas, para o diretor é preciso ter aqueles que se sacrificam e sofrem para que exista o cinema. Pode-se fazer uma avaliação mais justa ao entender que o filme é sobre artistas falhos e às vezes limitados que ajudam a fazer a indústria e muitas vezes não são reconhecidos. E eles fazem parte literalmente do sangue que é dado em termos de paixão. Chazelle trata disso como poucos. Para ele, as filmagens e a alegria, a confusão e o excesso caracterizam a própria história do cinema. Não por acaso, tudo desliza para uma sucessão de imagens em experimentação nos moldes de Godard com uma grandiosidade que representa a passagem do cinema dos anos 20 para o dos anos 30, com uma carga de nostalgia impressionante. É muito difícil homenagear a arte do cinema depois de tantas obras antológicas. Para Chazelle, é essa transição do sonho inicial para a realidade também coberta pelos sonhos que move a narrativa da humanidade para sempre.

O mais recente filme de Ridley Scott, Napoleão, é um épico nos moldes que o diretor costuma apresentar desde Gladiador, passando por Cruzada, até Êxodo – Deuses e reis. Sem entrar na polêmica entre o diretor e historiadores, que contestam algumas informações do filme, que não corresponderiam ao que aconteceu, Napoleão mostra por que Scott é, desde os anos 70, um dos maiores cineastas em atividade. Napoleão mostra a trajetória do conhecido líder francês que durante um certo período estabeleceu um grande número de vitórias em batalhas contra vários países. Joaquin Phoenix no papel principal está mais uma vez excelente, alternando melancolia, um humor involuntário e insegurança, assim como Vanessa Kirby no papel de Josephine está irretocável. As duas atuações estão entre as melhores do ano, e o roteiro de David Scarpa é muito exitoso ao mesclar uma série de informações sem perder de vista esta relação. Não me parece que seja um filme cômico disfarçado de filme de história: a escala de Napoleão é épica e dramática, com design de produção e figurinos simplesmente levando o espectador para o período enfocado. Também a fotografia lembra uma sequência de pinturas e a trilha sonora pontua com fluidez toda a narrativa. Como é de se esperar em Ridley Scott, as cenas de batalha impressionam, são ainda mais impactantes do que as de Gladiador e Cruzada, fazendo com que os 158 minutos transcorram parecendo menos. Muito contestado em geral, nenhuma crítica, boa ou negativa, será lembrada futuramente mais do que o próprio filme de Scott, que fez este épico com 85 anos em apenas dois meses e ainda precisa ouvir lições de como se deve dirigir um filme de críticos jovens que acham que Cahiers du Cinéma é uma marca de caderno.

O diretor Kleber Mendonça Filho é autor de O som ao redor, possivelmente o melhor filme brasileiro dos anos 2010, que justamente deveria ter sido ao menos nomeado ao Oscar, além de Aquarius e Bacurau. Ele estabeleceu uma espécie de obra-prima em sua estreia em longa-metragem, com uma visão sobre eventos e pessoas num bairro do Recife, e como se manifesta a inter-relação entre elas, mas sempre com tom narrativo universal. Kleber então faz o movimento para um documentário que, no início, soa talvez pessoal demais para funcionar num escopo mais amplo, no entanto vai se abrindo para algo maior. É uma espécie de homenagem ao O som ao redor, recuperando cenários que serviram de base para o filme de 2012. Daí, Kleber parte para o centro do Recife e este movimento é um ingresso na própria intervenção do cinema norte-americano a partir da segunda metade do século XX, principalmente, com uma investigação sobre lugares e salas de cinema abandonadas pelo tempo como também a memória. Kleber consegue algo aqui que ele tentava nos filmes anteriores ficcionais, porém sem o mesmo impacto: ele encontra afeto nas ausências, nas imagens perdidas, nos lugares em ruínas, em fotografias para as quais só ele dá importância – e, ao dar essa importância, ele ressignifica essa importância para milhares de pessoas cuja existência passou a ser, como alguns lugares que ocupavam, fantasmagórica. Por isso, um passeio por dentro de um cinema que leva a memória do diretor para sua síntese humana e pessoal parece lembrar também uma reentrada no Hotel Overlook de O iluminado, guiado por Stanley Kubrick. Dois homens separando letreiros para a estreia de Vitor e Vitoria parecem saídos de uma sequência de Soshanna em Bastardos inglórios. Fotos de artistas de Hollywood no Recife soam literalmente de um século longínquo. Kleber Mendonça busca o cinema no que parece mais árido e sem a presença da grande arte, mas ele sabe que o cinema é que conta a história dos lugares pelos quais está passando, mesmo que quase ninguém mais perceba isso. Tudo parecia estar ali, ao alcance, ele parece dizer (os estúdios de Hollywood num prédio), para, de repente, tudo sumir. Kleber sintetiza a saudade do “cinema de rua”. É um cinema que lida mais com o afeto e as recordações do que principalmente o seu anterior, feito com Juliano Dornelles, Bacurau. Retratos fantasmas é um filme brilhante justamente porque o diretor deposita sua humanidade nele, algo que ele fazia principalmente em O som ao redor. Ele sabe que aqui ele entrega parte da sua memória, que vai permanecer como a memória do que não parece mais existir, do que parece estar em ruínas e vai desaparecer. Como diretor, ele não pensa duas vezes em querer sumir junto com essas memórias, com o apoio da fotografia fora de série de Pedro Sotero. É isto que lhe oferece sua permanência mais extraordinária e imprevisível. Ele fica literalmente dentro desses “retratos”, para sempre.

O novo filme de Wes Anderson, Asteroid City, traz grande elenco como seus anteriores: Tom Hanks, Scarlett Johansson, Steve Carell, Adrien Brody, Margot Robbie, entre muitos outros. Novamente com a fotografia de Robert Yeoman (com sequências em preto e branco), Anderson faz uma captura de cores fantástica, reproduzindo uma homenagem ao cinema dos anos 50, nos melhores moldes de Paul Thomas Anderson em O mestre, da década passada, com uma espécie de homenagem à cultura que reúne faroeste, perseguições policiais no deserto e naves pousando num cenário desértico, remetendo a Contatos imediatos do terceiro grau e Guerra dos mundos – o medo do desconhecido, simbolizando o estrangeiro. Às vezes parece uma animação, como Anderson já deixava evidente em O grande Hotel Budapeste, para não lembrar de suas stop-motions O fantástico Sr. Raposo e Ilha dos cachorros, mas com um trabalho de design de produção e atmosfera ainda mais fora de série, reproduzindo uma vida longe da cidade grande. À frente do elenco está Jason Schwartzman, que já aparecia em destaque anteriormente em filmes do diretor, a exemplo de Viagem a Darjeeling e Moonrise Kingdom, capaz de levar adiante a imagem que Anderson quer passar por meio de seus personagens principais, aqui numa ligação com o universo da dramaturgia. Um filme não muito comercial, como outros do diretor, Asteroid City se caracteriza por uma visão inventiva do universo e por mostrar que é possível fazer cinema fora do terreno que já se espera.

Com dois dos melhores filmes de terror da década passada, Hereditário e Midsommar, Ari Aster resolve ingressar em novo terreno em Beau tem medo. Desde a primeira sessão de Joaquin Phoenix num terapeuta e a reflexão sobre a culpa, o filme de Aster é uma mistura de comédia, drama, terror, suspense, tendo como pano de fundo o real-simbólico-imaginário de Lacan, levando o personagem central a uma jornada de encontro com o passado, com o presente e com o futuro, numa miscelânea de referências a Leos Carax (Holy Motors), David Lynch, Charlie Kaufman ou a filmes infantis da Disney, até que tudo seja assustador como um sótão nunca visitado. Este projeto de Aster com três horas de duração empreende uma jornada áspera e intranquila para o espectador, como se fosse lançando diferentes camadas da existência por meio de uma figura a princípio comum e pedestre. Os medos de Beau, na verdade, são os medos com que se depara a própria plateia, seja num dia de claridade ofuscante ou numa noite com paisagem indefinida, na floresta, como nos contos de fada infantis. Tudo aqui se mostra turvo e irreal, mas é nisso que Aster colhe a mais autêntica verdade de sua obra, uma verdade notavelmente incômoda e que se espalha nas águas culposas como sua verdadeira obra-prima.

Melhores de 2023 (diretores, atores, atrizes… e categorias técnicas)

Por André Dick

Cinematographe apresenta, a seguir, listas dos melhores nas categorias principais (diretor, ator, atriz, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, elenco, roteiro original e roteiro adaptado) e técnicas (fotografia, trilha sonora, montagem, design de produção, figurino, maquiagem, efeitos visuais e som) de filmes disponibilizados comercialmente nos cinemas e streaming do Brasil ao longo de 2023. Nas categorias de atores e atrizes, selecionam-se mais nomes para destacar ao leitor diversas atuações. Não há, nelas, ordem de preferência. O próximo post apresentará os melhores filmes do ano.

Melhor diretor

Ari Aster (Beau tem medo)
Kleber Mendonça Filho (Retratos fantasmas)
Ridley Scott (Napoleão)
Damien Chazelle (Babilônia)
Christian Petzold (Afire)

Melhor ator

Brendan Fraser (A baleia)
Joaquin Phoenix (Napoleão)
Michael Fassbender (O assassino)
Bradley Cooper (Maestro)
Cillian Murphy (Oppenheimer)
Benoît Magimel (Pacifiction)
Thomas Schubert (Afire)
Park Hae-il (Decisão de partir)
Jason Schwartzmann (Asteroid City)
Morgan Freeman (Uma boa pessoa)

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Melhor atriz

Vanessa Kirby (Napoleão)
Mia McKenna-Bruce (How to have sex)
Carey Mulligan (Maestro)
Aby Rider Fortson (Crescendo juntas)
Caille Spaeny (Priscilla)
Olivia Colman (Império da luz)
Paula Beer (Afire)
Sol Miranda (Regra 34)
Jennifer Lawrence (Que horas eu te pego?)
Adèle Exarchopoulos (Passagens)

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Melhor ator coadjuvante

Diego Calva (Babilônia)
Robert Downeyy Jr. (Oppenheimer)
Dave Bautista (Batem à porta)
Robert De Niro ((Assassinos da lua das flores)
Jason Bateman (Air – A história por trás do logo)

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Melhor atriz coadjuvante

Lily Gladstone (Assassinos da lua das flores)
Florence Pugh (Oppenheimer)
Hong Chau (A baleia)
Viola Davis (Air – A história por trás do logo)
Rachel McAdams (Crescendo juntas)

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Melhor roteiro original

David Scarpa (Napoleão)
Damien Chazelle (Babilônia)
Kleber Mendonça Filho (Retratos fantasmas)
Ari Aster (Beau tem medo)
Ali Abassi (Holy spider)

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Melhor roteiro adaptado

Christopher Nolan (Oppenheimer)
M. Night Shyamalan/Steve Desmond/Michael Sherman (Batem à porta)
Samuel D. Hunter (A baleia)
Andrew Kevin Walker (O assassino)
Simon Farnaby/PaulKing (Wonka)

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Melhor fotografia

Rodrigo Prieto (Assassinos da lua das flores)
Linus Sandgren (Babilônia)
Pawel Pogorzelski (Beau tem medo)
Darius Wolzki (Napoleão)
Artur Cort (Pacifiction)
Robert Yeoman (Asteroid city)
Hoyte von Hoytema (Oppenheimer)
Matthew Libatique (Maestro)
Zack Snyder (Rebel moon)
Pedro Sotero (Retratos fantasmas)

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Melhor trilha sonora

Martin Phipps (Napoleão)
Justin Hurwitz (Babilônia)
Trent Reznor & Atticus Ross (O assassino)
Bobby Krlic (Beau tem medo)
Ludwig Göransson (Oppenheimer)

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Melhor montagem

Beau tem medo
Oppenheimer
Asteroid City
Napoleão
Babilônia

Melhor design de produção

Maestro
Napoleão
Babilônia
Asteroid City
Assassinos da lua das flores

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Melhor figurino

Napoleão
Wonka
Babilônia
Assassinos
Maestro

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Melhor maquiagem e cabelo

Napoleão
Maestro
Assassinos da lua das flores
Guardiões da galáxia – Vol. 3
Rebel moon – Parte 1 – A menina do fogo

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Melhores efeitos visuais

Godzilla minus one
Napoleão
Rebel moon – Parte 1 – A menina do fogo
Guardiões da galáxia – Vol. 3
A pequena sereia

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Melhor som

Godzilla minus one
John Wick 4 – Baba Yaga
Napoleão
Guardiões da galáxia – Vol. 3
Oppenheimer

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Rebel moon – Parte 1 – A menina do fogo (2023)

Crítica sobre “Rebel moon – Parte 1 – A menina do fogo”, de Zack Snyder, no canal do YouTube.

 

Godzilla minus one (2023)

Crítica sobre “Godzilla minus one”, de Takashi Yamazaki, no canal do YouTube.

A visão de Napoleão de Ridley Scott

Por André Dick

O mais recente filme de Ridley Scott, Napoleão, é um épico nos moldes que o diretor costuma apresentar desde Gladiador, passando por Cruzada, até Êxodo – Deuses e reis. Com uma duração determinada para o cinema de 158 minutos, já se anuncia uma versão de 4 horas a ser exibida no streaming da Apple TV+, que produziu o filme. A princípio, é muito tentador entrar na polêmica entre o diretor e historiadores, que contestam algumas informações do filme, que não corresponderiam ao que aconteceu, mas se vê que isso é apenas uma isca para tentar capturar o espectador e o público pelo que não importa tanto aqui. Tentador, como se diz.
Ridley Scott inicia o filme tecendo uma crítica virulenta contra a Revolução Francesa – é o pontapé inicial dele contra o próprio status com que se vê a cultura francesa, sem ter aqui nenhum demérito, porque ele é coerente com as ações desses personagens que expõe. Seria difícil que isso contentasse a historiadores e a críticos em geral; é justamente contra eles que Scott coloca sua visão para mostrar por que é, desde os anos 70, um dos maiores cineastas em atividade e certamente um dos mais subestimados. O requinte visual e narrativo de Scott é tão superior quanto à maior parte dos pares de sua geração e de gerações mais novas que soa como uma falta de generosidade explícita o que fazem com muitos de seus filmes, para selecionar apenas alguns Prometheus, O último duelo e Casa Gucci, nos últimos 10 anos. Geralmente, tirando talvez Thelma & Louise, nunca se interessou por subtextos políticos, embora os apresente muito bem algumas vezes, como em Gladiador, Falcão negro em perigo Cruzada.
Napoleão mostra a trajetória do conhecido líder francês (Joaquin Phoenix mais uma vez excelente, alternando melancolia, um humor involuntário e insegurança) que durante um certo período estabeleceu um grande número de vitórias em batalhas contra vários países. Ele alterna paisagens da França, Egito, Rússia, mas o que menos interessa aqui a Scott é como se dão os efeitos da Revolução Francesa, tendo a figura de Paul Barras (Tahar Rahim, eficiente) como proeminente na era napoleônica. Os efeitos dela se dão como qualquer outra: são incorporados ao sistema (em determinado momento uma autoridade diz que é só misturar os ideais da revolução com o que eles, políticos, sempre faziam) e passam a fazer parte dele. Ridley Scott distribui isso numa sequência de reuniões, conversas sem uma solidez aparente, para exatamente comunicar o que permite ao espectador entender o que seria a História com letra maiúscula: é aquela que se passa longe do burburinho e do campo de batalha.

A maior História é a que se trava nos bastidores, com a própria miséria do personagem diante principalmente da sua amada Josephine (uma excepcional atuação de Vanessa Kirby), e a luta para ter um filho e herdeiro quando já está num posto de muito maior respeito. Por isso, não é surpreendente que o filme seja tomado por muitos como uma comédia, porque isso dá uma premissa exata para descredenciar o que Scott está expondo principalmente por imagens e negar essas relações internas e interiores faz com que apenas uma História dita pública e verdadeira se sobressaia e seja realmente importante. Ao se anular a história mais subjetiva de Napoleão e Josephine, tenta-se anular a história do indivíduo em prol da coletividade que Ridley Scott começa por acusar na primeira frase do seu filme. Ou seja, o que deveria importar são as manifestações públicas, as ações que movimentam para esses críticos o povo nas ruas, quando à parcela deles o que menos importa (nunca importou) é a condição de olhar que se dá a esse povo ou sua condição de subsistência. O povo continua miserável, mas como Scott não tentou pelo menos atenuar isso? Ele discretamente expõe a relação entre Josephine e Napoleão por cartas em alguns momentos, evitando o discurso expositivo capaz de levar o espectador a pensar de um determinado modo. Nesse ponto, o roteiro de David Scarpa é muito exitoso ao mesclar uma série de informações sem perder de vista esta relação. Destaque-se a fluidez das passagens do roteiro de Scarpa nesta versão, independente daquela ainda desconhecida de 4 horas (para a qual aparecerão admiradores posteriores do que já estava aqui) e a maneira como ele conduz a ideia de uma personagem a princípio supérflua no tratamento, como Josephine, a uma visão feminina realmente em camadas. Certamente ela é outro motivo para as críticas, pois Scott não segue também o previsível: Josephine começa se apresentando a Napoleão como Sharon Stone a Michael Douglas em Instinto selvagem. Não há em nenhum momento uma indicação de que ela o impeliu a fazer isso ou aquilo em sua trajetória – isso é indesculpável, mas, mesmo não tendo existido, não estando na história “verdadeira”, certamente seria muito bem-vindo para alguns que lidam com a história, entre aspas, exata.

Napoleão, nesse sentido, é uma espécie de retrato de sua época: ao não abraçar o coletivismo e sim a individualidade, ele está simplesmente indo contra os manuais que se apresentam para aquilo “tudo” que está em “todo o lugar ao mesmo tempo”; e ao enaltecer a individualidade (nisso se expondo a falta de certeza em relação a qualquer manobra de existência) ele está buscando seu calabouço e sua ilha de exílio. Mas é para isso que Ridley Scott jogou seu filme e jogou com todas as suas fichas. Sua postura em relação a declarações de historiadores pode ser precipitada e pouco calibrada, mas ele sabe que muito mais do que o relato da história há a “perspectiva do relato” da história, ou seja, esta é às vezes muito mutável, dependendo de quem a conta, que pode ressaltar episódios nem tão importantes como destacáveis e ignorar outros muito mais necessários para o entendimento da própria história. Será, nesse sentido, um erro histórico colocar Napoleão assistindo à cena da guilhotina de Maria Antonieta? Não seria apenas uma liberdade criativa, fílmica? Para o filósofo Gianni Vattimo, a história é sempre contada do ponto de vista do vencedor. Teria sido Napoleão um vencedor? As batalhas de Toulon e Austerlitz, por exemplo, são filmadas por uma larga escala de homens aglomerados ou em marcha e, consequentemente, com o destino deles inserido no cenário que os cerca, mas será que Ridley não está usando essas batalhas para contar exatamente algo que escapa ao movimento ininterrupto. Ora, Ridley está claramente falando, do início até o fim da narrativa, da solidão de Napoleão Bonaparte, em sua complexidade de atingir a grandeza como político ou estrategista, daí, em determinado momento, Josephine se referir a ele como amigo mostra a lacuna do que ele nunca parece ter encontrado exatamente na maneira como dispôs a sua existência.
Em se tratando de opulência visual, não há nada no cinema na última década em termos de filme de guerra que se compare a Napoleão: ele tanto lembra Barry Lindon e Maria Antonieta no trabalho de design de produção e figurinos, com a fotografia irretocável de Dariusz Wolski, quanto lembra Mistérios de Lisboa e outros filmes de Manoel de Oliveira, que capturam uma atmosfera europeia que apenas Scott e Malick, e antes David Lynch, entre os cineastas que produziram a partir dos anos 70, conseguem reverter para o cinema norte-americano.
Por isso, deve-se destacar que a escala de Napoleão é épica e dramática, com design de produção e figurinos simplesmente levando o espectador para o período enfocado. Também a fotografia lembra uma sequência de pinturas e a trilha sonora pontua com eficácia toda a narrativa. Como é de se esperar em Ridley Scott, as cenas de batalha impressionam, são ainda mais impactantes do que as de Gladiador e Cruzada, fazendo com que os 158 minutos transcorram parecendo menos, conduzindo tudo a uma ilha ou a um sonho de tudo ser revivido ou não, porque, afinal, é preciso passar pela experiência que move toda a história. Nenhuma crítica, boa ou negativa, será lembrada futuramente mais do que o próprio filme de Scott, que fez este épico com 85 anos em apenas dois meses e ainda precisa ouvir lições de como se deve dirigir um filme de críticos imberbes e outros já muito sábios que acham que Cahiers du Cinéma é uma marca de caderno.

Napoleon, EUA/ING, 2023 Direção: Ridley Scott Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Raim Roteiro: David Scarpa Fotografia: Dariusz Wolski Trilha Sonora: Martin Phipps Produção: Ridley Scott, Kevin J. Walsh, Mark Huffam, Joaquin Phoenix Duração: 158 min. Estúdio: Apple Studios Scott Free Productions Distribuidora: Columbia Pictures

Napoleão (2023)

Crítica sobre Napoleão, de Ridley Scott, com Joaquin Phoenix, no canal do YouTube. Se puder, deixe seu apoio se inscrevendo. Você vai encontrar lá críticas recentes sobre Asteroid city, Assassinos da lua das flores, Beau tem medo, Guardiões da galáxia – Vol. 3, Barbie, Oppenheimer, Besouro Azul, entre outros.

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