Hair (1979)

Por André Dick

O cinema dos anos 70 pode ser referencial em alguns gêneros, mas talvez nenhum tanto quanto o musical. Pode-se dizer que foi a última grande década deste gênero, em razão de exemplares como Um violinista no telhado, Jesus Cristo Superstar, New York, New York, Cabaret e All That Jazz. Nenhum representa tanto a época em que foi lançado quanto Hair. Sendo originalmente um musical da Broadway, Hair: An American Tribal Love-Rock Musical, criado por Gerome Ragni e James Rado, foi levado ao cinema pelo cineasta checo Milos Forman, que quatro anos antes havia recebido os Oscars de filme e direção por Um estranho no ninho.
Forman trabalhou sobre um roteiro de Michael Weller, mostrando um jovem do interior, Claude Hooper Bukowski (John Savage), que sai de Oklahoma para a cidade de Nova York depois de ter sido convocado para o exército. Na metrópole, ele conhece o líder de um grupo de hippies, George Berger (Treat Williams), que tem como principais amigos LaFayette “Hud” Johnson (Dorsey Wright), Jeannie Ryan (Annie Golden) e Woof Dacshund (Don Dacus). Numa situação inusitada, eles se deparam com Sheila Franklin (Beverly D’Angelo), de uma família de ricaços, andando a cavalo no parque, pela qual Bukowski subitamente se apaixona. No dia seguinte, Berger mostra ao novo amigo uma foto de jornal em que se encontra Sheila.

Hair tem uma história tão direta quanto precisa ser a de um musical cuja concepção se sustenta nas canções. E a trilha é absolutamente brilhante, com uma sucessão de hits invejável: “Hair”, “Age of Aquarius” e “Let the Sunshine In”, por exemplo (deve ter sido o primeiro vinil que ouvi realmente com interesse). Se logo vemos os hippies e Bukowski na festa de Sheila na cena seguinte, é natural que, mais adiante, todos estejam encrencados com a lei. Forman não dá muita importância à ligação entre os personagens e, mesmo assim, os conduz de maneira sensível. O breve interesse de Bukowski e Berger por Sheila é plausível, assim como o de Jeannie, esperando um filho, pelo convocado para a guerra.
Forman adota uma imagem dedicada ao mundo dos hippies e sua contestação à Guerra do Vietnã com figurinos de muitas cores e um ambiente solar, como aquele comício pela paz no Central Park, que remete a Woodstock e conduz Bukowski a uma imagem excêntrica e à canção “Hare Krishna”, que representa basicamente o interesse originário do Ocidente pelo mundo oriental nos anos 60 e 70, principalmente quando John Lennon e os Beatles, assim como intelectuais, a exemplo de Roland Barthes, viam os orientais como uma referência. Do mesmo modo, o universo da contracultura já era interesse de Forman em Procura insaciável, no qual mostrava alguns pais que queriam conhecer o universo jovem para se aproximar dos filhos.

Procura insaciável tinha uma atmosfera que remete à festa de Sheila em Hair, por exemplo, em que vemos dispostas mesas para convidados avessos a qualquer ideia de se pensar sobre a guerra que está lá fora. Há um clima natural de contestação contra instituições, principalmente o exército norte-americano, subvertendo algumas imagens icônicas, assim como lida com temas que começavam a ser discutidos, ainda com certo romantismo, no entanto Forman não se concentra nisso porque se tornaria datado. No centro de tudo está a amizade entre um rapaz do interior comportamento e um grupo de contestação, entretanto o que os aproxima é justamente o mesmo: a imaginação com um mundo em que se pode batalhar pelas próprias coisas, sem estar a cargo de um governo decidir por isso. Obviamente, Forman exibe a faceta conhecida do universo hippie, como uma espécie de convite ao espectador interessado procurar mais informações sobre o que aconteceu. Hair, nesse sentido, é extraordinário, assim como, em termos de montagem e dança, movimenta-se como um musical de verdade. Os cortes em cenas rápidas ou mudanças repentinas de cenários e personagens em coreografias movimentadas são notáveis – a sequência em que Berger canta na calçada –, evocando Amor, sublime amor e preparando tudo para o terceiro ato sentimental e doloroso ao extremo.

Cineasta de grande talento, Forman faria em seguida Na época do Ragtime e mais adiante Amadeus, ganhando novamente os Oscars de filme e direção. Hair não chegou a mostrar potencial no Oscar, sendo indicado ao Globo de Ouro de melhor comédia ou musical e exibido no Festival de Cannes, porém é uma peça para entender a cultura dos anos 60 e 70 e o que a solidifica. Ao mesmo tempo que possui uma ideia de cinema popular, ele se alimenta de elementos mais underground (em seu final, lembra Nashville, de Altman, e antecipa O resgate do soldado Ryan), assim como trabalha com uma fotografia estupenda de Miroslav Ondříček, iluminando Nova York nos dias de sol e tornando-a cinzenta em dias menos calorosos, no entanto sem deixar de cativar o espectador. E o elenco é de grande destaque: apesar de Savage e D’Angelo, além de Golden, se sobressaírem em vários momentos, a história pertence a Williams, numa mistura de empatia e revolta que torna seu personagem antológico e numa espécie de símbolo dessa era de Aquarius que o filme simboliza com competência.

Hair, EUA, 1979 Diretor: Miloš Forman Elenco: John Savage, Treat Williams, Beverly D’Angelo, Dorsey Wright, Annie Golden, Don Dacus Roteiro: Michael Weller Fotografia: Miroslav Ondříček Trilha Sonora: Galt MacDermot Produção: Michael Butler e Lester Persky Duração: 121 min. Estúdio: CIP Filmproduktion GmbH Distribuidora: United Artists Pictures

 

O novo mundo (2005)

Por André Dick

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Excelente reconstituição de época e fotografia espetacular não salvaram o épico O último dos moicanos, de Michael Mann, baseado no romance clássico de James Fenimore Cooper. Faltou algum elemento para criar um interesse maior pela saga de um homem branco criado por moicanos (Day-Lewis, depois do Oscar por Meu pé esquerdo), na adaptação da história que se passa durante a Guerra dos Sete Anos, em que estiveram envolvidos ingleses, franceses e tribos de índios norte-americanos na América do Norte.
O personagem de Day-Lewis e dois moicanos ajudam duas inglesas (uma das quais Madeleine Stowe) e um soldado inglês a chegarem num forte em guerra com tropas francesas. Surge uma atração entre o moicano e a inglesa, mas logo eles são separados.
Percebe-se em todas as atuações a mão de um diretor que se tornaria talentoso. No entanto, Mann, recém-saído da série Miami vice, esquece de colocar conflitos em seu filme. Neste seu primeiro longa no cinema, seu interesse é pelo luxo da produção, revestida de detalhes (o filme ganhou Oscar de melhor som). É a partir deste filme, de qualquer modo, que Malick parece compor O novo mundo, com o mesmo interesse pelo refinamento da produção, mas uma aspiração mais social e histórica.

O novo mundo.Cena 3

O novo mundo.Filme

Malick havia passado vários anos sem lançar um filme (oito, desde Além da linha vermelha), quando trouxe às telas este filme baseado numa história com elementos reais (daqui em diante, spoilers). Em 1607, o capitão inglês John Smith (Colin Farrell) chega à América aprisionado, acusado de tentar um motim, junto com a Expedição Jamestown, enviada da Inglaterra, mas logo em seguida é perdoado pelo comandante Christopher Newport (Cristopher Plummer), que volta para a Europa a fim de trazer mais alimentos. Na busca por comida e na exploração das matas, Smith é capturado por nativos, sendo levado ao chefe, Powhatan (August Schellenberg), que tem como braço direito Opechancanough (Wes Studi, de O último dos moicanos). Smith não apenas passará a viver entre eles, entre a liberdade e a prisão, como conhecerá Pocahontas (Q’orianka Kilcher), uma nativa, filha de Powhatan. No entanto, quando ele volta ao forte construído pelos brancos, ele saberá que esta tranquilidade está perto de se encerrar.
Trata-se de um filme que vem no mesmo fluxo de Além da linha vermelha, mas toma um rumo diferente. Em primeiro lugar, porque o diretor utiliza mais em pormenores os pensamentos soltos, divagantes – algo que funciona muito bem em outros filmes, sobretudo em A árvore da vida –, e filma detalhes da natureza à parte das cenas centrais (isso parece acontecer em A árvore da vida, mas a narrativa, tão criticada por alguns, é mais interessante).

O novo mundo.Filme 8

O novo mundo.Cena 8

A impressão é que Malick não efetua, aqui, como em Além da linha vermelha, cenas de ação intensas, preferindo centralizar seus olhos no drama romântico entre Smith e Pocahontas. Se o romance abre perspectivas, em razão de Q’orianka Kilcher, Colin Farrell está inexpressivo. Ele funciona mais quando o filme não depende dele (como quando fez o cantor country de Coração louco). Malick, claro, mostra sua obsessão pela influência da natureza na vida humana, mas aqui ele parece transcender. Há flashes do casal correndo entre árvores, entre o capim alto, à beira do rio, e pensamentos esparsos, como (de Pocahontas): “Quem é esse homem? Quem é esse Deus”? Alguns detalhes não ficam claros: a aproximação cultural de Pocahontas é imediata, inclusive com a língua, e em determinado momento ela precisa alimentar os poucos homens dele com uma caça, mesmo eles tendo armas para matar animais.
Ainda assim, Malick procura dar ao filme um estilo, ao mesmo tempo, íntimo e épico. A única cena de combate, no entanto, se inclina a flashes para o céu, para as árvores. Mesmo os cenários ao longo do filme são iguais, e a montagem, elíptica – dando poeticidade, mas também prejudicando algumas cenas de conflito (como a de Pocahontas com seu pai) ou a presença levemente deslocada de Cristopher Plummer –, faz com que nos mantenhamos à distância dos personagens (embora não pareça, há lacunas aqui que não existem, por exemplo, em A árvore da vidaAmor pleno). Farrell, com isso, não consegue dar vigor ou grandiosidade a seu personagem, parecendo, por um lado, muito triste em ter de esconder um amor tão grande – que, em determinado ângulo, não convence–, e, por outro, feliz em ter de deixá-lo para trás. É visível como sua atuação prejudica o filme quando Christian Bale entra em cena, como John Rolfe, quase ao final, mostrando como o filme seria caso ele fosse o capitão Smith.
No entanto, talvez o ator principal fosse mesmo um detalhe. Malick quer filmar as paisagens com o tom de nascimento e descoberta, ou de tristeza – o sol entre as árvores, como em A árvore da vida, dá às cenas um contexto (o que lá criava um complemento poético, pois é uma história livre, não histórica). Cada personagem simboliza o contato entre o velho e o novo mundo e cada relação pode nascer e vigorar como também voltar às cinzas. Malick tem um sentido muito apurado sobre o Éden que existe em cada um desses personagens, sempre ameaçado pela traição e pela violência. A mentira dos homens brancos passa a ser evidente e seu objetivo, cada vez mais claro. No entanto, Pocahontas acredita numa espécie de amor intocado pelo ser humano, que se mistura à natureza, às árvores, ao capim e aos rios. Ela não acredita que possa ser traída e este sentimento é permanente na filmografia de Malick (vejamos o recente Amor pleno), chegando sempre a um contato próximo com a ideia divina – para o velho mundo, em belíssimos vitrais; para Pocahontas, à beira do rio ou correndo por um campo esverdeado.

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O novo mundo.Filme 5A fotografia bastante elogiada de Emmanuel Lubezki (que deu ao filme sua única indicação ao Oscar) faz predominar as cores que remetem à terra (também dos figurinos), além dos tons de verde, claro e escuro. Para Malick, a aversão à natureza romântica, aqui, pode matar a humanidade. Quando ele deseja oferecer mais emoção ao filme, este está quase terminando – mas são antológicas as cenas feitas na Inglaterra (sobretudo quando um índio caminha num pátio inglês enorme, em meio a árvores podadas, simetricamente, como se fossem um contraponto ao ambiente de onde veio, mas, ao mesmo tempo, um complemento). Falta ao filme uma definição entre o histórico, a ação, o poético e o drama – o que faz de A árvore da vida um filme tão definitivo. Mas, ainda que O novo mundo não consiga alcançar o que poderia, ainda assim responde ao que nos apresenta. Tratando da estranheza e da descoberta de um novo mundo, além do choque que isto pode trazer, há nele, como nos outros filmes de Malick, um elemento enigmático que atrai o espectador e uma sensação de perda e reencontro que poucas obras simbolizam de maneira evidente. Toda a sequência final, com uma montagem fascinante de imagens da natureza, representando o encontro entre as águas do homem branco e dos nativos, assim como da natureza, é implacavelmente belo.

The new world, EUA, 2005 Diretor: Terrence Malick Elenco: Colin Farrell, Q’orianka Kilcher, Christopher Plummer, Christian Bale, August Schellenberg, Wes Studi, David Thewlis, Yorick van Wageningen, Raoul Trujillo, Ben Chaplin, John Savage, Brian Merrick Produção: Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: James Horner Duração: 135 min.  Distribuidora: Não definida Estúdio: New Line Cinema / Sunflower Productions / Sarah Green Film / First Foot Films / The Virginia Company LLC

Cotação 3 estrelas