A árvore da vida (2011)

Por André Dick

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O filme A árvore da vida, de Terrence Malick, tem despertado polêmica desde a sua estreia. Assim como ganhou a prestigiada Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para quem pretende ver imagens filmadas com poeticidade raras vezes vistas no cinema e um diálogo aberto tanto com o sentimento religioso quanto com a ciência, envolvendo a formação do indivíduo como sujeito, buscando, porém, as suas contradições, é uma obra diferenciada, embora o fio de sua história seja bastante claro (não se equiparando, por exemplos, aos filmes mais enigmáticos de David Lynch). Mesmo seu aparato mercadológico, de promoção, mostra esse objetivo. Três de seus cartazes são complementares: um com o olhar do pai  por trás do pé do filho que acaba de nascer, comparando um de seus dedos da mão com o tamanho do pé do filho; outro que mostra uma colagem de imagens do filme, criando um quebra-cabeças visual; e ainda um que foca o pé do filho que acaba de nascer em meio aos dedos da mão do pai que o segura, e uma luz por trás: a luz da criação do universo e dos seres, talvez. Importante dizer que, a partir daqui, há spoilers.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.

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O filme começa com a morte de um filho do casal O’Brien, que perturba o seu filho mais velho, Jack (Sean Penn), arquiteto que trabalha num arranha-céu de Dallas. A sua mãe se pergunta como Jó – citado na epígrafe do filme – onde está Deus para tê-la abandonado, pois sempre acreditou na graça, mas o divino quer mostrar sua grandiosidade por meio da natureza, e Malick filma tudo como se fosse uma mescla entre o criacionismo e o evolucionismo. Em Jó, Deus busca uma proximidade com o ser humano para explicar sua criação e que a dor que Jó está sentindo não se compara à sua força. Esse é o motivo de Malick para retroagir até a criação do mundo, mostrando a criação das partículas, dos seres das águas, dos dinossauros. Essa digressão, para muitos, é uma tolice (elas têm tomadas cinematográficas e não simplesmente documentais, com efeitos especiais de Douglas Trumbull, o mesmo de 2001 e Blade Runner, que não aprecia efeitos digitais, e a fotografia brilhante de Emmanuel Lubezki), mas é ela que torna A árvore da vida um filme tão interessante, à medida que ingressa na poesia e na fusão de imagens estranhas e elípticas.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.

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A árvore da vida.Malick.Cena 2

Difícil ver nesses artifícios de Malick apenas uma grandiosidade ou um sentimento épico – apesar da música sacra, de igreja, pontuar ao fundo, muitas vezes. Na verdade, a queda-d’água na cachoeira representa, mais do que a natureza, os próprios personagens, em direção a um rio que não tem origem exata, independente das figuras que neles passeiam – constituindo a própria árvore da vida.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.

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Nesse sentido, Malick não chega a nos impor nenhum maniqueísmo, ou seja, sua obra tem uma sutileza que apenas as grandes obras possuem. A trilha sonora não convence o espectador a sentir determinada emoção, apenas faz parte da história, nem leva a uma catarse. Tampouco as aproximações de câmera dos personagens. Se as suas tomadas embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), e por isso são por vezes cansativas e tornam o filme um pouco mais longo do que deveria, nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento. Tudo é meticulosamente calculado nas cenas da criação do mundo, por exemplo, não deixando nenhum espaço para a simples pirotecnia ou imagens calculadas para documentários. A câmera mostrando, embaixo, as ondas se formar depois da queda do meteoro, por exemplo, é o significado de uma busca radical do diretor pelo sentido de origem, mesmo que, como a água, o fogo, a terra e o ar (os quatro elementos que circulam frequentemente nas imagens de A árvore da vida), não tem uma explicação exata.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.

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A árvore da vida.Cena 8

O fato de que o personagem de Sean Penn caminha em meio a um deserto ou a um chão recém-abandonado pela água, lembrando algas do fundo do mar, quando, na verdade, está numa cidade grande, pode fazer com que o filme seja visto de modo excessivamente alegórico. Ou quando ele passa por uma porta sem sustentação no meio do deserto. Cada imagem parece sempre dizer mais do que uma simples alegoria. Ele pode olhar para cima e ver arranha-céus, assim como pode lembrar, em sua infância, do teto da igreja no alto, por onde perpassa a luz solar, ou dos galhos da árvore, pois na verdade as imagens, como a criação e o fim, estão dentro dele mesmo. E, mesmo se não o fossem, são elas que tornam A árvore da vida um achado em termos poéticos no meio cinematográfico. Porque se é bem verdade que as imagens de Malick não são absolutamente originais, é também verdade que ele coloca a poesia como ponte entre uma história que poderia ser linear e comum e uma história que adquire grandiosidade também pela maneira com que é filmada e pensada, com a corrida das crianças em meio a um matagal; banhando-se num rio (em que a água pode dar e tirar a vida); pulando numa cachoeira, em meio a rochas onde se formaram os primeiros seres; subindo em árvores; indo ao circo pela primeira vez; ou jogando bola entre as árvores da rua. E o filme impacta, de igual modo, porque, ao buscar a transcendência, refere-se ao nosso dia a dia: os girassóis estão ao nosso redor, e se guiam pelo sol, contudo não transcendem, como nós – ou, ao menos, parecem não transcender. Enquanto o sol é atraído pela terra, nossos olhares são atraídos pelo sol, e este está a cada fotograma do filme de Malick, pois ele sempre está ali, nos vigiando, assim como para o dinossauro ferido no início do filme. Os girassóis representam uma terceira via, entre a graça e a natureza, para o diretor. A transcendência, nesse caso, sempre é um ponto de vista. Nesse sentido, não se pode cogitar que Malick seja expulso da cidade por ser um poeta-cineasta, mas como um artista capaz de filmar algo de profunda densidade, que foge ao lugar comum e, por isso mesmo, merece ser visto e entendido.

The tree of life, EUA, 2011 Diretor: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Fiona Shaw, Jessica Chastain, Hunter McCracken, Kari Matchett, Dalip Singh, Joanna Going, Jackson Hurst, Brenna Roth, Jennifer Sipes, Crystal Mantecon, Lisa Marie Newmyer Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 138 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Cottonwood Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment / Brace Cove Productions

Cotação 5 estrelas

Publicado originalmente em 11 de setembro de 2012

Especial Terrence Malick

Terrence Malick.Especial.Diretor.Cinematographe

Terrence Malick nasceu em 30 de novembro de 1943 em Ottawa, Illinois, ou Waco, Texas, filho de Irene e Emil A. Malick, que trabalhava como geólogo. Ele estudou na St. Stephen’s Episcopal School em Austin, Texas, enquanto sua família morava em Tulsa, Oklahoma. Malick tinha dois irmãos mais novos: Chris e Larry.
Como Peter Biskind relata, em Como a geração sexo-drogas-rock’n’roll salvou Hollywood:

Ele (Malick) era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu a Terry que fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhode Escolar, e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso opressivo da culpa.

A árvore da vida.Música

A árvore da vida.Música 2

Parece o prenúncio de A árvore da vida: Malick parece ser o menino O’Brien que carrega a lembrança do irmão que gostava de música. A presença desta se dá em todos os filmes de Malick, mais diretamente pelo símbolo do piano. Desde aquele do pai de Holly, em Terra de ninguém, passando por aquele que o Sr. O’Brien utiliza para ensinar a seus filhos em A árvore da vida, até aqueles que tanto Neil quanto Marina se mostram próximos em Amor pleno, mais ainda pela utilização das composições de Carl Orff, George Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Nat King Cole e Erik Satie (em Terra de ninguém), de Wagner e Mozart (em O novo mundo) e de Zbigniew Preisner, Gustav Mahler, Ottorino Respighi, Johann Sebastian Bach e Mozart novamente (em A árvore da vida), Malick transforma a música quase numa referência para seus filmes.

A árvore da vida.Piano

Terra de ninguém.Cena 3

To the wonder.Piano

Malick estudou filosofia na Universidade de Harvard, e seguiu para a Magdalen College, Oxford. Depois de se desentender com seu tutor, Gilbert Ryle, a respeito do conceito de mundo em Heidegger, Wittgenstein e Kierkegaard, ele deixou Oxford sem o doutorado (em 1969, a Northwestern University Press chegou a publicar a tradução de Malick de Vom Wesen des Grundes, de Heidegger). De volta aos Estados Unidos, ensinou filosofia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, enquanto trabalhou independentemente como jornalista, escrevendo artigos para a Newsweek, The New Yorker e Life.
Malick foi iniciar a carreira de cineasta após receber um MFA do American Film Institute, em 1969, na direção de Lanton Mills. No AFI, ele conheceu, por exemplo, Jack Fisk, que seria seu colaborador de longa data, e o agente Mike Medavoy , que colocou Malick para revisar roteiros. Ele acabou sendo creditado pelas primeiras versões de Dirty Harry (1971), Deadhead Miles (1972) e Meu nome é Jim Kane (1972), além de ter feito uma das primeiras versões de Great balls of fire, sobre a trajetória de Jerry Lee Lewis.

Terra de ninguém.Filme 3

Depois do roteiro de Deadhead Miles, ele conseguiu realizar seu primeiro filme, Terra de ninguém, com a ajuda do produtor Ed Pressman:

“Malick havia escrito um roteiro chamado Terra de ninguém. Queria que Pressman financiasse o projeto. Brian estudou Pressmann com a intensidade de um zoólogo e lhe deu alguns conselhos. Desajeitado como era, Pressman parecia um convite aberto ao abuso, e De Palma sugeriu que Malick alternasse elogios com maus-tratos. Conta-se que Malick, que tinha o dobro do tamanho de Pressman, certa vez tinha se levantado de uma cadeira segurando a orelha de Pressman e fazendo força para se erguer.
Malick convenceu Pressman a financiar Terra de ninguém […] Foi filmado com minguados recursos próprios num total de 350 mil dólares, no Colorado. Não havia dinheiro suficiente nem para dailies. Era a primeira experiência de Malick como diretor, mas estava determinado a fazer tudo do seu jeito. Certa vez, disse a uma pessoa da equipe: ‘Vou colocar (o ator) na frente da janela, então, quando escurecer, você pode continuar a filmar, você vai ter mais luz’.

‘Terry, você pode colocá-lo onde  quiser, a gente ilumina.’

‘Não precisa me dizer isso. Já fiz dois filmes de 8mm.’

[…]

Malick estava obcecado pelo filme. Mesmo quando o dinheiro acabou, ele continuou filmando cenas de cobertura sozinho, com a ajuda de alguns locais”.

Elogiado no Festival de Cinema de Nova York, Terra de ninguém obteve inúmeros elogios, embora Pauline Kael considerasse (não sem nenhuma exatidão) um filme frio. Roger Ebert o colocou na sua galeria de grandes filmes, assim como Dias de paraíso (embora seja A árvore da vida que figure no seu Top 10 de todos os tempos). A Warner acabou por comprar o filme.
A Paramount produziria o seu filme seguinte, Dias de paraíso, que se passa na Fazenda de Panhandle, no Texas, no início do século passado.

Dias de paraíso.Casa

As filmagens foram extenuantes e complicadas:

“A produção começou no outono de 1976. Como De Palma, Malick era um diretor que trabalhava essencialmente dentro da sua cabeça. Os atores e a equipe achavam-no frio e distante, ele estava tendo dificuldades em conseguir desempenhos razoáveis. Com duas semanas de filmagem, bastava olhar para os dailies para ver que nada estava funcionando, parecia teleteatro ruim. Malick decidiu jogar fora o roteiro, ir na direção de Tolstoi em vez de Dostoievski, amplidão no lugar de profundidade, e filmou quilômetros de película na esperança de poder consertar os problemas na mesa de montagem.
A produção seguia a passo de cágado. As velhíssimas ceifadeiras mecânicas viviam quebrando, o que significava que as filmagens só começavam no final da tarde, com poucas horas até o fim do dia até que ficasse escuro demais para continuar; apesar disso, as imagens embebidas da luz dourada do poente, eram lindas, ainda que o diretor de fotografia Nestor Almendros estivesse ficando cego. Um de seus assistentes tirava polaroides da cena, que ele examinava usando óculos fortíssimos para fazer os ajustes necessários.

[…]

E depois ainda teve a montagem, que levou mais de dois anos – Malick era famoso por sua indecisão. Ou apenas meticuloso, dependendo de quem esteja pagando as contas.

[…]

À medida que mais e mais pedaços de diálogos iam para o lixo, a trama tornava-se incompreensível e Malick se debatia entre várias maneiras de trazer alguma lógica para a trama, finalmente optando por uma voz over”.

Após o lançamento de Dias de paraíso, Malick começou a desenvolver, também para a Paramount, o filme Q, que pretendia contar a origem da Terra, o que acabou servindo como projeto para a A árvore da vida. No entanto, nessa época, ele viajou para a Europa e refugiou-se em Paris, onde ficou recluso um bom período de sua vida, quando seu desaparecimento havia já se tornado conhecido. Em 1997, regressou com Além da linha vermelha.

Além da linha vermelha.Cena 2

O novo mundo.Cena 4

Antes de realmente filmar A árvore da vida, Malick chegou a se envolver com o filme sobre Che Guevara, que seria, afinal, feito por Steven Soderbergh. Em meio aos preparativos, ele teve a oportunidade de realizar O novo mundo.
Contando a história romântica entre o oficial inglês John Smith e Pocahontas, O novo mundo teve três versões de tamanhos variados e foi nomeado apenas ao Oscar de melhor fotografia. Embora interessante, ele não tem o magnetismo dos demais filmes de Malick.
Sob o ponto de vista do magnetismo, há uma notória influência da pintura de Edward Hopper em Malick, assim como em David Lynch. Vejamos, por exemplo, que a casa de Dias de paraíso (imagem acima) dialoga com Hopper, da pintura “House by the railroad”.

Edward Hopper.House-by-the-railroad

E os trilhos de trem, habituais em Hopper, tanto no quadro acima (em frente à casa) como em “Queensborough bridge”, como se Malick trabalhasse a ideia de travessia, de continuidade e dois pontos interligados, como seus personagens:

Edward Hopper.Queensborough Bridge 2

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Cena

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Malick

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 10

Em Amor pleno:

To the wonder.Trilhos

Malick também é influenciado pelo pintor Andrew Wyeth, sobretudo em Dias de paraíso e Amor pleno (abaixo as pinturas  “Christina’s world” e “Wind from the sea”, esta capturada em vários instantes de Amor pleno quando os personagens Neil e Marina ficam próximos às cortinas):

Andrew Wyeth.Christina's World.Pintura

Andrew Wyeth.Wind from the sea

A pintura, inclusive, é a profissão do pai de Holly, e uma cena-chave de Terra de ninguém é quando ele conversa com Kit enquanto faz um de seus trabalhos, num imenso outdoor com uma imagem tipicamente norte-americana em meio a uma planície.

Terra de ninguém.Cena 4

Um dos filhos da família O’Brien também pinta numa página em A árvore da vida, criando, em seguida, um conflito:

A árvore da vida.Pintura

Com essa influência pictórica, vem a simbologia do contato com a natureza, sobretudo, em todos seus filmes, com a água, elemento que revigora os personagens em uma determinada trajetória. Vejamos:

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Filme 7

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Água

Em Além da linha vermelha:

Além da linha vermelha.Filme 6

Em O novo mundo:

O novo mundo.Cena 1

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 11

Em Amor pleno:

To the wonder.Água

Junto com a presença da água, a filmografia de Malick compõe personagens envolvidos por incertezas e ligações metafísicas. Se o primeiro casal de sua carreira, em Terra de ninguém, cometia crimes pelo interior dos Estados Unidos, mergulhados numa espécie de vazio contínuo, diante das paisagens mais belas, em Dias de paraíso o Éden era ameaçado por gafanhotos, numa cena de origem bíblica. Em Além da linha vermelha, a natureza fazia o papel de Deus em meio à batalha, com suas árvores e rios, assim como em O novo mundo, com a figura de Pocahontas auxiliando neste contato. Em A árvore da vida e Amor pleno, a base religiosa é ainda mais forte, com as figuras do luto e do amor sendo compreendidos à luz da igreja, não ligando-se a uma determinada religião, mas, de forma mais ampla, à espiritualidade e à criação do mundo. Os personagens de Malick, ainda assim, não são porta-vozes de alguma ideia religiosa, mas sim vagam em meio à incerteza. É de se pensar que os casais de Malick (Kit e Holly em Terra de ninguém; Bill e Abby em Dias de paraíso; John Smith e Pocahontas em O novo mundo; o casal O’Brien de A árvore da vida; e Neil e Marina em Amor pleno) jamais conseguem desenhar, a partir de suas relações, uma verdade sobre o universo; pelo contrário, parecem sempre perseguir um horizonte inalcançável.

Terra de ninguém.Filme 4

Dias de paraíso.Cena 2

O novo mundo.Filme 3

A árvore da vida.Casal

To the wonder.Malick 16

A fotografia de seus filmes é extraordinária. Também com costume de trabalhar com fotógrafos diferentes a cada filme, tem repetido a parceria com Emmanuel Lubezki desde O novo mundo, e A árvore da vida e Amor pleno se constituem em dois dos mais belos filmes já feitos. Isso para não atestar que o trabalho de Brian Probyn, Tak Fujimoto e Stevan Larner para Terra de ninguém; de Nestor Almendros para Dias de paraíso; e de John Toll para Além da linha vermelha são irrepreensíveis.
As paisagens dos filmes de Malick são sempre familiares. Waco, onde teria nascido, foi utilizado em A árvore da vida, assim como Smithville. Seu raríssimo Amor pleno foi filmado em Tulsa, Oklahoma, onde morava sua família. Perceba-se nos filmes Terra de ninguém, Dias de paraíso, A árvore da vida e Amor pleno que Malick mostra a paisagem do Texas – e a própria obsessão de Malick por figuras do interior ou inseridas no interior. Mesmo em Além da linha vermelha, com a paisagem da II Guerra Mundial, a natureza cria uma redoma ao redor dos personagens, e os flashbacks sempre tentam alcançar o outro lado do oceano.
Sob esse ponto de vista, parece que as voice overs adotadas por Malick em seus filmes também existem para que não haja um excesso de diálogos que interfiram diretamente no ambiente, resguardando sempre uma aproximação à distância. Se essa voice over foi utilizada em Dias de paraíso, que ele julgava problemático, é de se pensar que constituiu, desde o início, uma referência original de sua obra, uma maneira de reelaborar a filosofia que existia em seus roteiros de modo mais transparente. O filme em que este elemento parece menos orgânico é O novo mundo.

A árvore da vida 8

A árvore da vida.Cena 13

Malick ganhou a Palma de Ouro de diretor por Dias de paraíso e a principal por A árvore da vida. Enquanto Além da linha vermelha e A árvore da vida foram indicados aos Oscars de melhor filme e direção, Dias de paraíso e A árvore da vida foram indicados nessas mesmas categorias ao Globo de Ouro. Recebeu o Urso de Ouro por Além da linha vermelha e o Prêmio Signis do 69º Festival Internacional de Cinema de Veneza por Amor pleno.
Ao contrário de David Lynch, com quem compartilha afinidades estéticas e está se dedicando apenas à carreira musical e de diretor de videoclipes no momento, Malick já tem três projetos em filmagem ou em processo de montagem. Um deles se chamava Lawless, com Ryan Gosling, Natalie Portman, Cate Blanchett e Rooney Mara, atualmente ainda sem título. O outro é Knight of cups, com Christian Bale. Há ainda o documentário Voyage of time, com imagens feitas para a A árvore da vida, sobre a criação da terra, com a narração de Brad Pitt, e que vem sofrendo alguns problemas de produção.
Conhecido por não conceder entrevistas, o que é estipulado em seus contratos, Malick também dificilmente se deixa fotografar, sendo raras suas aparições. Podemos vê-lo numa ponta de sua estreia, Terra de ninguém.

Terra de ninguém.Terrence MalickDe 1970 a 1976, Malick foi casado com Jill Jake; de 1985 a 1998, com Michele Morette; e é casado atualmente com Alexandra  “Eckie” Wallace.
A partir de amanhã, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por Terrence Malick.

2001 – Uma odisseia no espaço (1968)

Por André Dick

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Este é um dos maiores clássicos da ficção científica com efeitos impressionantes para sua época (e ainda hoje) de Douglas Trumbull, um roteiro, baseado no conto “A sentinela”, de Arthur C. Clarke, que lançaria o livro homônimo quase simultaneamente ao lançamento do filme, e uma direção impecáveis. Kubrick está interessado em mostrar o isolamento do homem não apenas em sua aurora, mas no espaço sideral, assim como fez com o jovem Alex, que servia de cobaia para experimentos químicos em Laranja mecânica, e o Jack Torrance, de Nicholson, em O iluminado. E mostra que, por meio da experiência da solidão, o homem pode mudar e avançar contra o passado e contra o futuro, ao mesmo tempo.
2001 (spoilers a partir daqui) inicia com homens-macacos em algum lugar remoto do passado, descobrindo a defesa – atacados por leopardos ou ameaçados por outras tribos – e a violência – ao esfacelar o crânio de um animal – e entrando em contato com um monólito, perto de rochas onde eles dormem. Essas imagens revitalizam qualquer gênero, e o filme de Kubrick contradiz a ficção científica como um gênero apenas baseado no fantástico e não no histórico, mesmo como narrativa, ao mesmo tempo em que é um cinema praticamente sem diálogos, o que é apontado como um motivo de tédio, isso se 2001 não fosse também uma revitalização da forma de narrar.
Depois de lançado um osso ao espaço – numa transição antológica –, este se transforma em espaçonave, transportando o espectador para 2001, que carrega o Dr. Heywood Floyd  (William Sylvester), depois de uma conversa com Elena (Margaret Tyzack), cientista russa, e seu colega Dr. Smyslov (Leonard Rossiter), em direção à lua, em que foi desencavado um monólito negro misterioso, igual àquele que os homens-macacos cercavam.

2001.Kubrick.Filme

2001 kubrick

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Esta mudança de lugar e tempo é típica do talento de Kubrick, que move sempre a narrativa para espaços diferentes daqueles que naturalmente se esperava – aqui, vai até a Pré-História, numa reconstituição que impressiona a cada vez que assistimos, para, a partir daí, se deslocar rumo ao infinito e ao vazio do espaço inexplorado pela Discovery (em Nascido para matar, o espaço do Vietnã é também o da loucura e de um regresso às origens, assim como o Overlook, de O iluminado, é um traçado do labirinto da mente humana e De olhos bem fechados, uma saga noturna em busca da autossatisfação), em missão até Júpiter, através de novos sinais do monólito – e talvez de presença alienígena. Em nenhum momento, é suscitada uma presença divina, ou algum vínculo exatamente religioso, mas 2001 também traz – como A árvore da vida, de Malick, em que há sequências que lembram o filme de Kubrick – este aspecto de discussão. Também traz o embate não mais entre os homens-macacos e os animais, mas entre os homens e os computadores.
O computador da nave, o HAL 9000 (com voz marcante de Douglas Rain), em plena expansão da IBM – letras seguintes de HAL –, o único a realmente saber sobre a missão, começará a se rebelar contra os tripulantes, deixando os astronautas David Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood) perplexos. Ele acredita, pois, antes de tudo, tem uma concepção humana, que a missão deve ser abortada. É inevitável perceber que HAL tem traços mais humanos do que os tripulantes da Discovery, sobretudo David, que recebe um cumprimento de aniversário sem mostrar o menor ânimo ou sentimento, e, quando se aproxima de seu desligamento, acaba demonstrando o mesmo medo humano. Ao mesmo tempo, os astronautas parecem mais um experimento e correm e se alimentam sem tratarem de nenhum aspecto da missão.
Mas o mistério maior está no monólito negro, uma peça que se desloca entre tempos distintos (estava na Pré-História, cercado por macacos, e agora flutua pelo espaço). É ele que mostra a atemporalidade da vida, o que Kubrick quer constantemente ressaltar. Não sabemos se é o monólito aquele que confunde HAL 9000, ou o conduz à tentativa de encerrar a missão. Quando David se vê numa situação extremamente difícil, resta a ele continuar sua trajetória. E Kubrick continua, em cada frame, notável. O final é enigmático e, ao mesmo tempo, precursor de imagens relacionados ao futuro, mostrando os limites do espaço, em busca de Deus. O quarto nos moldes vitorianos em que o astronauta vai parar, com seu piso iluminado (uma espécie de ambiente precursor dos ambientes de Barry Lindon e do salão de festas de O iluminado, além do piso de Os embalos de sábado à noite, cuja discoteca se chama exatamente 2001), é, do mesmo modo, a contemplação da história e da juventude nos olhos de um ser que passou por todos os momentos de sua vida num piscar de segundos.

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Kubrick realiza tudo com exatidão e detalhamento, pontuados pela direção de arte, tendo à frente Anthony Masters, que havia feito a de Lawrence da Arábia e faria a de Duna, e pela fotografia de Geoffrey Unsworth, que trabalhou na série Superman, Cabaret, entre outros filmes. É a junção entre direção de arte e fotografia – com a trilha sonora clássica de fundo, pontuando as cenas de transição da Pré-História para o futuro, como o “Danúbio azul” – que torna o filme um objeto tão brilhante, a ser examinado sempre, uma espécie de ficção científica baseada num conceito de inovação e ruptura.
Nada a ver, portanto, com sua sequência, 2010, que, mesmo com excelentes efeitos especiais de Richard Endlund (de Indiana Jones e Guerra nas estrelas) e uma direção de arte irretocável (de Syd Mead, de Blade Runner) e cuja narrativa trata de americanos, comandados pelo doutor Floyd (Roy Scheider), e russos numa missão – encontrar a nave Discovery, desaparecida no final do primeiro filme, que foi localizada pela última vez perto da lua de Saturno –, não apresenta novidades. É claro que os americanos comandam os soviéticos e há patriotismo na trama, mas a mensagem do filme, embora com ar de Guerra Fria, é interessante. Sua meta é explicar, o que não aconteceu em 2001, vagamente por que o computador HAL 9000 enlouqueceu no primeiro e parte do mistério do monólito negro.
Por sua vez, Kubrick deseja uma espécie de mistério inexplicável sobre a origem do universo e para onde somos conduzidos, seja pela mão de uma força superior, seja por nossas próprias forças. Sua visão sobre nossa origem e como a evolução traz detalhes semelhantes (os homens-macacos ao redor do monólito, assim como os astronautas na Lua) revela uma extrema sensibilidade, sobretudo porque apresenta uma síntese para nossos receios e desejos. Como diz Kubrick: “Tentei criar uma experiência visual, que contorne o entendimento para penetrar diretamente o inconsciente com seu conteúdo emocional” (em Claude Beylie, As obras-primas do cinema).

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Por isso, ao mesmo tempo, o brilho do sol em Kubrick tenta revelar uma espécie de verdade. Se muitas tomadas de A árvore da vida embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento, em 2001 a luminosidade é uma tentativa de alinhar os planetas e as naves. Difícil entrar em contato com imagens tão profundamente enigmáticas como aquelas que cercam a aurora do homem – com seu horizonte alaranjado –, passando pela missão na Lua, em que a sombra, antes dos ossos animais no amanhecer, agora é das espaçonaves passando por elevações, até a sequência final, que conduz a um labirinto de cores fortes eclodindo nos olhos e a leveza da imagem do feto, do bebê, dentro da forma de um planeta, na qual Kubrick eleva a imagem a um símbolo, a uma metáfora, de tudo que havia sido observado antes. É exatamente o “conteúdo emocional” das imagens que conduz 2001 ao patamar de obra-prima.

2001 – A space odyssey, EUA/ING, 1968 Diretor: Stanley Kubrick Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Dan Richter, Douglas Rain, Leonard Rossiter, Margaret Tyzack, Robert Beatty, Sean Sullivan, Frank Miller, Penny Brahms. Produção: Stanley Kubrick  Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke Fotografia: Geoffrey Unsworth Trilha Sonora: Alex North, Gyorgy Ligeti Duração: 139 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) / Stanley Kubrick Productions

Cotação 5 estrelas

A árvore da vida (2011)

Por André Dick

O filme A árvore da vida, de Terrence Malick, tem despertado polêmica desde a sua estreia. Assim como ganhou a prestigiada Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para quem pretende ver imagens filmadas com poeticidade raras vezes vistas no cinema e um diálogo aberto tanto com o sentimento religioso quanto com a ciência, envolvendo a formação do indivíduo como sujeito, buscando, porém, as suas contradições, é uma obra diferenciada, embora o fio de sua história seja bastante claro (não se equiparando, por exemplos, aos filmes mais enigmáticos de David Lynch). Mesmo seu aparato mercadológico, de promoção, mostra esse objetivo. Três de seus cartazes são complementares: um com o olhar do pai  por trás do pé do filho que acaba de nascer, comparando um de seus dedos da mão com o tamanho do pé do filho; outro que mostra uma colagem de imagens do filme, criando um quebra-cabeças visual; e ainda um que foca o pé do filho que acaba de nascer em meio aos dedos da mão do pai que o segura, e uma luz por trás: a luz da criação do universo e dos seres, talvez. Importante dizer que, a partir daqui, há spoilers.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.

O filme começa com a morte de um filho do casal O’Brien, que perturba o seu filho mais velho, Jack (Sean Penn), arquiteto que trabalha num arranha-céu de Dallas. A sua mãe se pergunta como Jó – citado na epígrafe do filme – onde está Deus para tê-la abandonado, pois sempre acreditou na graça, mas o divino quer mostrar sua grandiosidade por meio da natureza, e Malick filma tudo como se fosse uma mescla entre o criacionismo e o evolucionismo. Em Jó, Deus busca uma proximidade com o ser humano para explicar sua criação e que a dor que Jó está sentindo não se compara à sua força. Esse é o motivo de Malick para retroagir até a criação do mundo, mostrando a criação das partículas, dos seres das águas, dos dinossauros. Essa digressão, para muitos, é uma tolice (elas têm tomadas cinematográficas e não simplesmente documentais, com efeitos especiais de Douglas Trumbull, o mesmo de 2001 e Blade Runner, que não aprecia efeitos digitais, e a fotografia brilhante de Emmanuel Lubezki), mas é ela que torna A árvore da vida um filme tão interessante, à medida que ingressa na poesia e na fusão de imagens estranhas e elípticas.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.

Difícil ver nesses artifícios de Malick apenas uma grandiosidade ou um sentimento épico – apesar da música sacra, de igreja, pontuar ao fundo, muitas vezes. Na verdade, a queda-d’água na cachoeira representa, mais do que a natureza, os próprios personagens, em direção a um rio que não tem origem exata, independente das figuras que neles passeiam – constituindo a própria árvore da vida.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.

Nesse sentido, Malick não chega a nos impor nenhum maniqueísmo, ou seja, sua obra tem uma sutileza que apenas as grandes obras possuem. A trilha sonora não convence o espectador a sentir determinada emoção, apenas faz parte da história, nem leva a uma catarse. Tampouco as aproximações de câmera dos personagens. Se as suas tomadas embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), e por isso são por vezes cansativas e tornam o filme um pouco mais longo do que deveria, nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento. Tudo é meticulosamente calculado nas cenas da criação do mundo, por exemplo, não deixando nenhum espaço para a simples pirotecnia ou imagens calculadas para documentários. A câmera mostrando, embaixo, as ondas se formar depois da queda do meteoro, por exemplo, é o significado de uma busca radical do diretor pelo sentido de origem, mesmo que, como a água, o fogo, a terra e o ar (os quatro elementos que circulam frequentemente nas imagens de A árvore da vida), não tem uma explicação exata.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.

O fato de que o personagem de Sean Penn caminha em meio a um deserto ou a um chão recém-abandonado pela água, lembrando algas do fundo do mar, quando, na verdade, está numa cidade grande, pode fazer com que o filme seja visto de modo excessivamente alegórico. Ou quando ele passa por uma porta sem sustentação no meio do deserto. Cada imagem parece sempre dizer mais do que uma simples alegoria. Ele pode olhar para cima e ver arranha-céus, assim como pode lembrar, em sua infância, do teto da igreja no alto, por onde perpassa a luz solar, ou dos galhos da árvore, pois na verdade as imagens, como a criação e o fim, estão dentro dele mesmo. E, mesmo se não o fossem, são elas que tornam A árvore da vida um achado em termos poéticos no meio cinematográfico. Porque se é bem verdade que as imagens de Malick não são absolutamente originais, é também verdade que ele coloca a poesia como ponte entre uma história que poderia ser linear e comum e uma história que adquire grandiosidade também pela maneira com que é filmada e pensada, com a corrida das crianças em meio a um matagal; banhando-se num rio (em que a água pode dar e tirar a vida); pulando numa cachoeira, em meio a rochas onde se formaram os primeiros seres; subindo em árvores; indo ao circo pela primeira vez; ou jogando bola entre as árvores da rua. E o filme impacta, de igual modo, porque, ao buscar a transcendência, refere-se ao nosso dia a dia: os girassóis estão ao nosso redor, e se guiam pelo sol, contudo não transcendem, como nós – ou, ao menos, parecem não transcender. Enquanto o sol é atraído pela terra, nossos olhares são atraídos pelo sol, e este está a cada fotograma do filme de Malick, pois ele sempre está ali, nos vigiando, assim como para o dinossauro ferido no início do filme. Os girassóis representam uma terceira via, entre a graça e a natureza, para o diretor. A transcendência, nesse caso, sempre é um ponto de vista. Nesse sentido, não se pode cogitar que Malick seja expulso da cidade por ser um poeta-cineasta, mas como um artista capaz de filmar algo de profunda densidade, que foge ao lugar comum e, por isso mesmo, merece ser visto e entendido.

The tree of life, EUA, 2011 Diretor: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Fiona Shaw, Jessica Chastain, Hunter McCracken, Kari Matchett, Dalip Singh, Joanna Going, Jackson Hurst, Brenna Roth, Jennifer Sipes, Crystal Mantecon, Lisa Marie Newmyer Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 138 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Cottonwood Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment / Brace Cove Productions

Cotação 5 estrelas