A árvore da vida (2011)

Por André Dick

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O filme A árvore da vida, de Terrence Malick, tem despertado polêmica desde a sua estreia. Assim como ganhou a prestigiada Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para quem pretende ver imagens filmadas com poeticidade raras vezes vistas no cinema e um diálogo aberto tanto com o sentimento religioso quanto com a ciência, envolvendo a formação do indivíduo como sujeito, buscando, porém, as suas contradições, é uma obra diferenciada, embora o fio de sua história seja bastante claro (não se equiparando, por exemplos, aos filmes mais enigmáticos de David Lynch). Mesmo seu aparato mercadológico, de promoção, mostra esse objetivo. Três de seus cartazes são complementares: um com o olhar do pai  por trás do pé do filho que acaba de nascer, comparando um de seus dedos da mão com o tamanho do pé do filho; outro que mostra uma colagem de imagens do filme, criando um quebra-cabeças visual; e ainda um que foca o pé do filho que acaba de nascer em meio aos dedos da mão do pai que o segura, e uma luz por trás: a luz da criação do universo e dos seres, talvez. Importante dizer que, a partir daqui, há spoilers.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.

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O filme começa com a morte de um filho do casal O’Brien, que perturba o seu filho mais velho, Jack (Sean Penn), arquiteto que trabalha num arranha-céu de Dallas. A sua mãe se pergunta como Jó – citado na epígrafe do filme – onde está Deus para tê-la abandonado, pois sempre acreditou na graça, mas o divino quer mostrar sua grandiosidade por meio da natureza, e Malick filma tudo como se fosse uma mescla entre o criacionismo e o evolucionismo. Em Jó, Deus busca uma proximidade com o ser humano para explicar sua criação e que a dor que Jó está sentindo não se compara à sua força. Esse é o motivo de Malick para retroagir até a criação do mundo, mostrando a criação das partículas, dos seres das águas, dos dinossauros. Essa digressão, para muitos, é uma tolice (elas têm tomadas cinematográficas e não simplesmente documentais, com efeitos especiais de Douglas Trumbull, o mesmo de 2001 e Blade Runner, que não aprecia efeitos digitais, e a fotografia brilhante de Emmanuel Lubezki), mas é ela que torna A árvore da vida um filme tão interessante, à medida que ingressa na poesia e na fusão de imagens estranhas e elípticas.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.

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Difícil ver nesses artifícios de Malick apenas uma grandiosidade ou um sentimento épico – apesar da música sacra, de igreja, pontuar ao fundo, muitas vezes. Na verdade, a queda-d’água na cachoeira representa, mais do que a natureza, os próprios personagens, em direção a um rio que não tem origem exata, independente das figuras que neles passeiam – constituindo a própria árvore da vida.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.

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Nesse sentido, Malick não chega a nos impor nenhum maniqueísmo, ou seja, sua obra tem uma sutileza que apenas as grandes obras possuem. A trilha sonora não convence o espectador a sentir determinada emoção, apenas faz parte da história, nem leva a uma catarse. Tampouco as aproximações de câmera dos personagens. Se as suas tomadas embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), e por isso são por vezes cansativas e tornam o filme um pouco mais longo do que deveria, nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento. Tudo é meticulosamente calculado nas cenas da criação do mundo, por exemplo, não deixando nenhum espaço para a simples pirotecnia ou imagens calculadas para documentários. A câmera mostrando, embaixo, as ondas se formar depois da queda do meteoro, por exemplo, é o significado de uma busca radical do diretor pelo sentido de origem, mesmo que, como a água, o fogo, a terra e o ar (os quatro elementos que circulam frequentemente nas imagens de A árvore da vida), não tem uma explicação exata.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.

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O fato de que o personagem de Sean Penn caminha em meio a um deserto ou a um chão recém-abandonado pela água, lembrando algas do fundo do mar, quando, na verdade, está numa cidade grande, pode fazer com que o filme seja visto de modo excessivamente alegórico. Ou quando ele passa por uma porta sem sustentação no meio do deserto. Cada imagem parece sempre dizer mais do que uma simples alegoria. Ele pode olhar para cima e ver arranha-céus, assim como pode lembrar, em sua infância, do teto da igreja no alto, por onde perpassa a luz solar, ou dos galhos da árvore, pois na verdade as imagens, como a criação e o fim, estão dentro dele mesmo. E, mesmo se não o fossem, são elas que tornam A árvore da vida um achado em termos poéticos no meio cinematográfico. Porque se é bem verdade que as imagens de Malick não são absolutamente originais, é também verdade que ele coloca a poesia como ponte entre uma história que poderia ser linear e comum e uma história que adquire grandiosidade também pela maneira com que é filmada e pensada, com a corrida das crianças em meio a um matagal; banhando-se num rio (em que a água pode dar e tirar a vida); pulando numa cachoeira, em meio a rochas onde se formaram os primeiros seres; subindo em árvores; indo ao circo pela primeira vez; ou jogando bola entre as árvores da rua. E o filme impacta, de igual modo, porque, ao buscar a transcendência, refere-se ao nosso dia a dia: os girassóis estão ao nosso redor, e se guiam pelo sol, contudo não transcendem, como nós – ou, ao menos, parecem não transcender. Enquanto o sol é atraído pela terra, nossos olhares são atraídos pelo sol, e este está a cada fotograma do filme de Malick, pois ele sempre está ali, nos vigiando, assim como para o dinossauro ferido no início do filme. Os girassóis representam uma terceira via, entre a graça e a natureza, para o diretor. A transcendência, nesse caso, sempre é um ponto de vista. Nesse sentido, não se pode cogitar que Malick seja expulso da cidade por ser um poeta-cineasta, mas como um artista capaz de filmar algo de profunda densidade, que foge ao lugar comum e, por isso mesmo, merece ser visto e entendido.

The tree of life, EUA, 2011 Diretor: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Fiona Shaw, Jessica Chastain, Hunter McCracken, Kari Matchett, Dalip Singh, Joanna Going, Jackson Hurst, Brenna Roth, Jennifer Sipes, Crystal Mantecon, Lisa Marie Newmyer Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 138 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Cottonwood Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment / Brace Cove Productions

Cotação 5 estrelas

Publicado originalmente em 11 de setembro de 2012

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