Melhores filmes de 2020

Por André Dick

Não há dúvidas de que, assim como as pessoas e várias áreas, a indústria cinematográfica foi afetada de modo decisivo em 2020, devido à pandemia. Os filmes estrearam nos cinemas ate março e voltaram a ser exibidos, esporadicamente, em maior número, a partir de outubro. No resto do mundo, o cenário não foi diferente. Com o receio de se frequentar salas fechadas e com as condições de isolamento, o cinema se tornou um lugar a ser evitado.
Se havia um ano que poderia mostrar a capacidade do streaming de sustentar a indústria seria este. E ele, de certo modo não desapontou. Sem a alta escala de lançamentos que os cinemas proporcionam, plataformas como a Netflix, Anazon Prime, HBO, Disney+ e Apple+ procuraram trazer obras que pudessem trazer um pouco de alegria a um momento tão conturbado.
E, bem, entre prós e contras, o cinema em 2020 apresentou um bom número de filmes de qualidade. Para além do fato de trazer novas obras de Terrence Malikck, Christopher Nolan, Sofia Coppola e Greta Gerwig, conseguiu diversificar gêneros, indo da ação tecnológica de Tenet à visão tanto sobre a Primeira Guerra, em 1917, quanto sobre a Segunda Guerra, em Jojo Rabbit e Uma vida oculta. Comédias românticas ou de ação (Enola Holmes) acrescentaram bons momentos, assim como uma visão sobre universos em que o preconceito foi tratado de modo amplo, de forma dramática ou bem-humorada, a exemplo de The boys in the band e A festa de formatura.

A ficção científica preferiu trazer peças de direcionamento apocalíptico, entre as quais High life, Problemas monstruosos e O céu da meia-noite, misturado com referências a Solaris, e assustador, neste caso A vastidão da noite. O universo da juventude ganhou múltiplos olhares, seja em Retrato de uma jovem em chamas, seja em A química que há entre nós, As ondas, Adoráveis mulheres, Emma, Fourteen, O mistério de Silver Lake e Nunca, raramente, às vezes, sempre.
O terror foi desde o remake de O grito, passando pelos perturbadores O chalé e Viveiro e o claustrofóbico Vigiados.até uma peça misturando elementos de humor, Freaky. Mas esteve até em momentos de peças dramáticas como Estou pensando em acabar com tudo e O farol.
Por sua vez, animações da Pixar, Soul e Dois irmãos trouxeram também aqueles elementos que ficaram conhecidos em outras obras da companhia, mesclando bom humor, diversão e um real afeto pelos personagens.

A música marcou presença de forma especial em Soul, A voz suprema do blues, O som do silêncio e entre os musicais tivemos o polêmico Cats e A festa de formatura.
O confronto entre indivíduos e sistema (judiciário ou policial) se mostrou a base de filmes como Luta por justiça, Os miseráveis, Os 7 de Chicago, Os últimos dias do crime americano e O caso Richard Jewell.
A fantástica fotografia em preto-e-branco se mostrou linda muito usual para retratar diferentes épocas em O pássaro pintado, Mank e O farol.

Num ano de poucos blockbusters, devido à condição dos cinemas, Tenet, Mulan, Mulher-Maravilha 1984, Bad boys para sempre, Aves de Rapina, Sonic – O filme e Convenção das bruxas fizeram a diversão em alta escala, alguns com momentos épicos.
Dentre as comédias românticas, a mais feliz talvez tenha sido On the rocks, seguida por Festival Eurovision da Canção: A saga de Sigrit e Lars, The lovebirds e Amor com data marcada.
Alguns atores se destacaram especialmente, tendo à frente Robert Pattinson, presente em O farol, Tenet, O diabo de cada dia e High life, Chadwick Boseman, infelizmente falecido, uma grande presença em Destacamento Blood e A voz suprema do blues,, e Kelvin Harrison Jr., revelação em As ondas, Luce e Os 7 de Chicago. Adam Sandler também conseguiu se equilibrar entre o drama de Joias brutas e o humor de O Halloween do Hubie, o mesmo acontecendo com Bill Murray em On the rocks e Os mortos não morrem. Entre as atrizes, destacaram-se Viola Davis em A voz suprema do blues e Margot Robbie, em Aves de Rapina e O escândalo, além de Haley Bennett, em Devorar, O diabo de cada dia e Era uma vez um sonho, Anya Taylor-Joy em Emma e Os novos mutantes, Riley Keough em O chalé e O mistério de Silver Lake e Kristen Stewart em Ameaça profunda, Seberg contra todos e Alguém avisa?
Cinematographe apresenta a seguir listas com menções honrosas, apreciados e decepções e/ou superestimados.

Menções honrosas

Soul (Pete Doctor), Joias brutas (Josh Safdie e Ben Safdie), Os últimos dias do crime americano (Olivier Megaton), O diabo de cada dia (Antonio Campos), Luta por justiça (Destin Daniel Cretton), Viveiro (Lorcan Finnegan), Mulan (Niki Caro), O som do silêncio (Darius Marder), Os mortos não morrem (Jim Jarmusch), A voz suprema do blues (George C. Wolfe), The boys in the band (Joe Mantello), Enola Holmes (Harry Bradbeer), O escândalo (Jay Roach), Ontem havia coisas estranhas no céu (Bruno Risas), O pássaro pintado (Václav Marhoul), Luce (Julius Onah), What did Jack do? (David Lynch), O preço da verdade (Todd Haynes), Os aeronautas (Tom Harper), Festival Eurovision da Canção: A saga de Sigrit e Lars (David Dobkin), Troco em dobro (Peter Berg), Você não estava aqui (Ken Loach), A última coisa que ele queria (Dee Rees), Dois irmãos – Uma jornada fantástica (Dan Scanlon), Tudo bem no natal que vem (Roberto Santucci), O chamado da floresta (Chris Sanders), O caminho de volta (Gavin O’Connor), A ligação (Lee Chung-hyeon), Pacarrete (Allan Deberton), Convenção das bruxas (Robert Zemeckis), I’m no longer here (Fernando Frias), High life – Uma nova vida (Claire Denis), A química que há entre nós (Richard Tanne), A prima Sofia (Rebecca Zlotowski)

Apreciados

Era uma vez um sonho (Ron Howard), Bad boys para sempre (Adil El Arbi e Bilall Fallah Vigiados (Dave Franco), Amor com data marcada (John Whitesell), Problemas monstruosos (Michael Matthews), O céu da meia-noite (George Clooney), Maria e João (Oz Perkins), Aves de Rapina – Arlequina e sua emancipação fantabulosa (Cathy Yan), Ava (Tate Taylor), The lovebirds (Michael Showalter), Alice Junior (Gil Baroni), 7500 (Patrick Vollrath), Ameaça profunda (William Eubank), Sonic – O filme (Jeff Fowler), SCOOBY! – O filme (Tony Cervone), Quentin Tarantino – Os oito primeiros (Tara Wood), Um lindo dia na vizinhança (Marielle Heller), Seberg contra todos (Benedict Andrews), Freaky – No corpo de um assassino (Christopher Landom), O que ficou para trás (Remi Weekes)

Decepções ou superestimados

Os novos mutantes (Josh Boone), O homem invisível (Leigh Whannell), O dilema das redes (Jeff Orlowski), Borat – Fita de cinema seguinte (Jason Woliner), A festa de formatura (Ryan Murphy), The old guard (Gina Prince-Bythewood), Power (Henry Joost e Ariel Schulman)., Rede de ódio (Jan Komasa), A caçada (Craig Zobel), A despedida (Lulu Wang), Artemis Fowl (Kenneth Branagh), Lost girls – Os crimes de Long Island (Liz Garbus), Seu nome gravado em mim (Kuang-Hui Liu), A jornada (Alice Winocour), Honey boy (Alma Har’el), 1917 (Sam Mendes), Wasp Network – Prisioneiros da Guerra Fria (Olivier Assayas), Tigertail (Alan Yang), O grito (Nicolas Pesce)

Abaixo, os 25 melhores filmes de 2020 segundo o Cinematographe. Todos foram lançados no cinema ou streaming no Brasil entre janeiro e dezembro deste ano. Um ótimo 2021 e obrigado pela leitura!

Grande adaptação de Jane Austen, com Anya Taylor-Joy no papel central, já vivido por atrizes como Gwyneth Paltrow e Alicia Silverstone (na adaptação moderna de As patricinhas de Beverly Hills). Com uma narrativa ágil e entrecortada, possui design de produção, fotografia e figurinos irretocáveis, que dialogam o tempo todo com as sensações e transformações dos personagens. Como outras obras de Austen, é sobre a figura da mulher num universo predominantemente masculino, tentando adaptar suas escolhas ao contexto. A figura de Emma tentando conciliar relações é muito significativa e bem trabalhada pelo diretor Autumn de Wilde

Os conjuntos e o design de produção inserem o espectador na narrativa, com referências ainda a Kurt Cobain e aos universos dos quadrinhos e musical. David Robert Mitchell sempre se mostrou um diretor talentoso e aqui talvez esteja mais interessado em um clima de narrativa do que exatamente em condensar uma história capaz de ser entendida. Seu foco são as simbologias do mundo contemporâneo, a confusão da juventude, uma certa nostalgia de um cinema que se perdeu, no entanto continua, como o dele, tentando trazer elementos novos. Um filme que pode crescer em novas sessões. O objetivo de Mitchell é claro: homenagear o cinema noir com a trilha sonora de Disasterpeace. Com posters de filmes antigos espalhados pelas paredes do seu apartamento, que não consegue pagar, Sam lembra muito o detetive feito por Joaquin Phoenix em  Vício inerente, mas vai parar em festas estranhas que lembram tanto obras de Kubrick quanto de David Lynch. De fundo, a sátira é com o universo pop e Andrew Garfield, talvez em sua melhor atuação, usa muitas vezes uma roupa que remete ao Homem-Aranha, que já interpretou.

Este drama psicológico mostra Hunter Conrad (Haley Bennett), que acabou de se casar com Richie (Austin Stowell), de uma família rica e CEO da empresa do seu pai (David Rasche), e fica em casa o dia todo numa casa próxima ao rio Hudson. Com o tempo, percebendo o desinteresse do esposo em estabelecer qualquer conversa, ela adquire um hábito estranho: engolir objetos estranhos, que podem machucar seu organismo. O filme é um interessante estudo sobre como uma mulher estaria disposta a formar um lar – e estabelecer uma família. Para isso, Bennett, que se revelou em Letra e música, com uma boa verve cômica, trabalha com todas as nuances possíveis. De certo modo, também se busca investigar o passado dessa personagem conturbada– e todas as questões são bem resolvidas pelo diretor Carlo Mirabella-Davis. A fotografia de Katelin Arizmendi é muito boa, em diálogo com o design de produção que parece ajudar a compor a faceta psicológica de Hunter, e com cores em oposição à vida cinzenta que ela leva. O ambiente onde ela mora também se mostra dúbio: a casa, com uma arquitetura modernista, parece revelar muito, no entanto esconde o que realmente se passa.

Os miseráveis, de Ladj Ly, acompanha a chegada de um novo integrante, Ruiz (Damien Bonnard), à Unidade de Crimes de Rua, ou SCU, onde passa a trabalhar com Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga). Eles fazem rondas especialmente num dos bairros mais pobres de Paris, onde mora Issa (Issa Perica), um menino que é mostrado na abertura do filme comemorando a conquista da Copa do Mundo em frente à Torre Eiffel, no meio de uma multidão. A homenagem, desde o título, à obra de Victor Hugo, reserva um retrato sobre o embate entre a polícia, vista aqui com elementos de violência extrema, mesmo com a negação de Ruiz, fazendo o papel que em Dia de treinamento servia a Ethan Hawke, e os moradores da periferia. É um filme bastante emocional, com elementos às vezes documentais, com notório domínio sobre a sua paisagem em ruínas, lembrando um cenário de guerra civil, de abandono. Parece partir para o maniqueísmo quando, ao fim, se mostra mais complexo.

Quando as figuras a serem julgadas por um evento conturbado em Chicago chegam ao tribunal, já sabemos que o acusador será Richard Schulz (Joseph Gordon-Levitt), que começa o filme se reunindo com o novo Procurador-Geral John Mitchell (John Doman), nomeado por Richard Nixon, ao lado de Thomas Foran (JC MacKenzie). Gorodon-Levitt é um ator propício para este tipo de embate, com sua tranquilidade e descompromisso, mas aqui ele funciona menos do que poderia, pelo parco roteiro que recebe. Mais eficiente é Mark Rylance como William Kunstler, o que faz a defesa dos sete acusados, no entanto se nega a defender Seale, que não pode ser representado pelo advogado que quer como gostaria. Rylance tem aqui uma atuação que seria merecedora de um Oscar, ao contrário daquela pelo qual o recebeu, em Ponte dos espiões. Com ambientação de época notável e alguns registros misturados com cenas documentadas (ou seria um efeito de JFK, de Oliver Stone?), Os 7 de Chicago vai se embrenhando na vida dessas figuras. A principal talvez seja a de Abbie Hoffmann, feito com rara eficácia por Sacha Baron Cohen, em sua melhor participação num filme desde A invenção de Hugo Cabret. No papel de um homem com ideais revolucionários, ele não sucumbe demais ao romantismo de suas reflexões, nem adere e a uma postura autocomplacente.

Como em alguns momentos do primeiro, principalmente no seu desfecho, Mulher-Maravilha 1984 também sabe emocionar e toca o espectador em momentos definidos. Embora Gadot comece a narrativa um pouco indecisa quanto ao tom do roteiro, em momentos mais dramáticos ela consegue mostrar facetas não mostradas no filme de 2017. É ela que realmente faz o personagem evoluir, estabelecendo uma ligação entre partes, com seu passado, seus sonhos e sua vida solitária nos anos 80, ao som da trilha sonora acertada de Hans Zimmer. Aguardado com muita expectativa, Mulher-Maravilha 1984 é um dos melhores filmes do seu gênero e encerra com uma mensagem sutil e bela para os dias atuais, sem que Jenkins precise esclarecê-la por meio de palavras. Não é pouco e diz muito sobre as relações no mundo todo, sendo até simples, mas sem menosprezar a inteligência do espectador, Ao mesmo tempo, ao colocar a Mulher-Maravilha como alguém que descobre dentro de suas próprias aspirações a resposta para seu dilema principal é bastante oportuno e, por causa da história, algo que permanece independente do filme.

O personagem central deste filme brasileiro, Amadi, é um núcleo de gentileza (o ator O.C. Ukeje, é extraordinário no papel), vendo tudo o que está ao redor sob o ponto de vista de que pode ajudá-lo, mesmo que muitos não queiram. Há um clima de isolamento (não raramente o personagem está descansando as costas em paredes ou sofás) que contrasta com a possível solidariedade que poderia emergir dessa condição de o personagem ser um estrangeiro. Amadi está à procura do irmão a pedido da mãe e as certezas de Ikenna parecem confrontá-lo com a ideia de família. É a procura de um rastro familiar para encontrar a própria independência. O diretor Matias Mariani conserva um afeto pelos personagens que nunca desliza para o discursivo, mas se mantém um pouco a distância, digamos, quase documental sem se misturar com uma frieza e neutralidade que disso poderia resultar se utilizado de maneira menos equilibrada. Cidade Pássaro é um filme que expande uma nova sensibilidade, capaz de tocar o espectador mesmo quando ele parece não perceber. É de uma beleza rara e precisa.

Muitas vezes inspirado na filmografia de Alexander Payne, especialmente Eleição, no qual um professor tinha problemas exatamente com alunos candidatos a liderar seus colegas numa escola, Má educação mostra a ambição num universo visto como de respeito e dedicação ao ensino – e lida com os personagens e seus erros de maneira humana, sem impedir o espectador de acessar o sentimento deles, de os outros perceberem suas trapaças ou simplesmente a angústia provocada pela situação em que se envolveram. Esses professores se dedicam à escola, querem torná-la respeitada, tanto pelos alunos quanto pelo corpo de pais, no entanto isso a custo de uma ambiguidade manifesta nos diálogos de Mike Makowsky. Como lidar com figuras tão contraditórias é uma questão que permeia a narrativa, com uma indefinição entre tentativa de alcançar a felicidade ou apenas sentir um alívio diante da culpa pelos atos. Há uma sensibilidade latente no conjunto de cenas entre Jackman e Janney, por exemplo, quando suscitam uma amizade que pode ser emperrada por algo maior. Finley constrói alguns planos simetricamente, como fazia em Puro-sangue, mas sem tantos maneirismos, embora continue utilizando a trilha sonora para pontuar bem suas escolhas. Como um filme que poderia ficar restrito a um universo mais indie, Má educação atinge o público de maneira universal a partir do espaço de uma escola.

Com sua perícia em lidar com acontecimentos reais, Eastwood constrói uma narrativa muito interessante, com uma tensão sempre às portas de cada situação. Ele lida com a esperança, o receio, a ambição e a honestidade ou não em tons diferentes e específicos, sempre procurando uma simplicidade do homem comum para explicar seus atos. Para isso, ele precisa também do elenco, e ganha ótimos resultados de Hauser, Bates e Rockwell, além de Hamm e Wilde. Hauser e Bates, especialmente, conseguem traçar uma relação entre mãe e filho comovente, enquanto Rockwell acrescenta seu habitual bom humor a uma situação grave. A edição de Joel Cox também é vital para o resultado. E mesmo que Eastwood facilite algumas sequências, procurando tornar determinadas saídas menos complexas, este parece ser seu melhor filme desde Menina de ouro e o que capta uma melancolia moderna do mesmo modo que Um mundo perfeito e seu filme anterior, A mula Um dos grandes cineastas hoje em dia.

A vastidão da noite é um filme para quem gosta de experimentos na linha dessa série antológica e de Histórias maravilhosas, a série de Spielberg, assim como No limite da realidade, versão em longa-metragem da primeira série. É conciso, bem escrito e tem ótima atmosfera, com o acréscimo de uma movimentação de câmera notável. Começa de maneira lenta, acompanhando esses dois personagens caminhando pelas ruas da cidade quando cada objeto luminoso, principalmente as lâmpadas da rua, parecem lembrar OVNIs. Nesse ritmo, o diretor Andrew Patterson vai construindo uma atmosfera acolhedora e, ao mesmo tempo, ameaçadora, assim como lida muito bem com certo design de época, que remete a Loucuras de verão de George Lucas e Zodíaco, de Fincher. Os personagens falam sobre assuntos triviais, mas o espectador tem sempre a sensação de algo está para acontecer.

Destacamento Blood usa diferentes tipos de formato de tela: um para representar a pré-missão, quando os amigos saem inclusive para uma discoteca com um grande painel ao fundo de Apocalypse now, de Francis Ford Coppola, homenageado também quando embarcam numa navegação por um rio ao som de “Cavalgada das Valquírias”, outro quando mostra o passado, com o grupo no campo de batalha do Vietnã; e outro no presente quando estão em missão, quando o formato de tela se preenche totalmente. O talento da fotografia de Newton Thomas Sigel, acompanhado por uma trilha sonora de Terence Blanchard e canções de Marvin Gaye, evita com que isso pareça um mero maneirismo, fazendo bem o contraponto entre a tonalidade das imagens atuais e as dos anos 70 (granuladas, em 16mm), quando lembram uma espécie de documentário, na linha de Corações e mentes. É um trabalho brilhante de Spike Lee em alguns momentos, esteticamente apurado e emocionante.

A partir de uma festa grandiosa de aniversário de Mayer no Castelo Hearst. Mank é filmado com muita diferença em relação aos outros filmes de Fincher, porque se parece uma obra dos anos 40e 50, desde a fotografa em preto-e-branco de Erik Messerschmidt até a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross (que receberam Oscar pelo trabalho em A rede social). Enquanto Clube da luta tinha imagens subliminares, aqui Fincher registra marcas de um filme antigo. Há muito de Barton Fink, dos irmãos Coen, desde o conflito de um roteirista com a falta de inspiração, até o retrato dos donos de estúdio como figuras afastadas da realidade. Isso foi desenvolvido também pelos Coen em Ave, César!, e não é aqui que Fincher consegue também inovar, porém instiga o espectador com referências a filmes como O mágico de Oz, tratando do pano de fundo de uma indústria que se encaminha para enfrentar a Grande Depressão.

Em 2012, eu não estava a bordo da ideia de que Indomável sonhadora era um grande filme, nem que Benh Zeitlin fosse uma revelação como diretor. Ele foi recebido com entusiasmo, recebendo indicações ao Oscar, inclusive de melhor filme. Por isso, é uma surpresa o quanto este Wendy, com seu orçamento visivelmente limitado, consegue ampliar a concepção infantil de uma ideia baseada no Peter Pan, de J. M. Barrie. Angela Darling (Shay Walker) trabalha como garçonete no Darling’s Diner, ao lado de uma ferrovia, com seus filhos gêmeos James (Gavin Naquin) e Douglas (Gage Naquin) e a filha Wendy (Devin France) Certo dia, Wendy, ainda bebê, observa um amigo, Thomas Marshall, embarcar nesse trem para desaparecer. Para onde ele foi? Anos mais tarde, Wendy vai fazer o mesmo trajeto, indo parar num universo a princípio paralelo, em que conhece Peter (Yashua Mack). O roteiro de Benh Zeitlin e Eliza Zeitlin utiliza a ideia de Barrie de modo contemporâneo, levando essas crianças para uma ilha, nos moldes de Onde vivem os monstros, na qual vão viver aventuras que as levam a se decidir se devem se manter crianças ou crescerem. Zeitlin, de certo modo, pontua o ritmo com uma fotografia de Sturla Brandth Grøvlen de estilo indie sem nunca esquecer uma certa emoção remota nesse lugar a princípio longínquo e afastado de todas as coisas reais, mas que parece trazer as mesmas dores da vida conhecida por essas crianças. Wendy, de modo geral, lida com as expectativas de uma criança viver algo extraordinário e fugir de seu ambiente, por meio da imaginação. É, ao mesmo tempo, objetivo e profundo, leve e denso, com cenas minuciosamente conduzidas. Um belo filme.

Fourteen mostra a amizade de duas garotas, Mara (Tallie Medel) e Jo (Norma Kuhling), desde o ensino fundamental. Elas se complementam pelas diferenças: Mara é mais discreta, enquanto Jo tem problemas seguidos em empregos e aos poucos com drogas. Jo tem uma verdadeira admiração pela amiga, o que fica claro nas suas tentativas de manter a relação sempre sob controle apesar de qualquer ameaça de perda de controle, também querendo que tudo continue como uma amizade adolescente. O diretor Dan Sallitt constrói o filme sob o ponto de vista de um diretor oriental, como Hong Sang-soo, escolhendo a calmaria e paisagens solitárias como mote para tido. É nessa calmaria que transitam os conflitos e, mesmo que boa parte da ação se passe no Brooklyn, não aqui o humor intelectualizado dos filmes de Noah Baumbach, por exemplo, e sim um drama intimamente doloroso. Os diálogos e os saltos temporais fluem de maneira realista, lembrando às vezes também uma obra dos  irmãos Dardènne, sem a faceta frenética.

Em 2014,  Veronika Franz e Severin Fiala realizaram um dos filmes de terror mais bem-sucedidos da década passada, intitulado Boa noite, mamãe. Muito competentes em armar uma atmosfera de suspenses, utilizam o arsenal que possuem de referências para isso em O chalé, do Overlook de O iluminado, na paisagem gélida que cerca o lugar, com a constante neve, à série Evil dead, apenas para citar obras muito próximas. Riley Keougjh tem um certo destaque no cinema indie, como sua presença em Docinho da América, e possui aqui talvez a sua melhor atuação, mostrando uma indecisão entre vulnerabilidade e insanidade. Assim como Aster, Franz e Fiala têm uma certa influência de Jodorowsky, sobretudo quando mostram uma casa imaginária – e europeia  – perdida no nada, em formato de cruz gigante, com um tamanho descomunal, e do maior influenciador de todos eles: Ingmar Bergman, de A hora do labo, que flertava com o sonho e a loucura em lugares afastados.

Em Nunca, raramente, às vezes, sempre, o espectador acompanha a trajetória de uma jovem, Autumn (Sidney Flanigan), que descobre estar grávida com 17 anos e não quer ter o filho. Ela decide ir para Nova York com sua prima, Skylar (Talia Ryder), a fim de interromper uma gravidez. A diretora liza Hittman não coloca a discussão sob o ponto de vista sociológico, mas concentra no olhar solitário de Autumn e o mistério sobre o que ocasionou a gravidez, diante o qual não se tem certeza sobre por que sua decisão é esta e fruto de qual relação ela surgiu. É um filme bastante comedido, mostrando as jovens em viagem – e inclui conhecer um rapaz que se interessa por Skylar e parece registrar o mesmo interesse vazio que Autumn visualiza no mundo masculino. A cidade de Nova York é captada de modo realista, com suas estações de metrô vazias ou lotadas e galerias igualmente vistas apenas como uma passagem para um momento em que a personagem está em conflito interno.

Adoráveis mulheres se aproxima da suntuosidade de Maria Antonieta, e se afasta quase completamente dos elementos de cinema indie que caracterizam Lady Bird. Isso, por um lado, é elogiável, pois Greta Gerwig não quis se repetir, inclusive nos primeiros acordes da trilha sonora de Alexandre Desplat, evocando John Williams, com outra influência clara de Gerwig: A cor púrpura, de Steven Spielberg Se o filme de Spielberg mostrava de maneira excepcional a trajetória de mulheres afrodescendentes com uma trajetória de sofrimento, Gerwig revela uma aristocracia modesta em Adoráveis mulheres. As paisagens invernais, no entanto, aproximam muito os filmes, assim como os enquadramentos de Gerwig, a imponência das casas e um transporte para os anos 1860, enquanto o filme de Spielberg se passava no início do século XX. Embora os temas sejam diferentes, a imersão é a mesma. Gerwig faz lembrar de como eram os filmes históricos feitos para o Oscar, com talento.

A obra de Waititi se baseia na parte técnico e no elenco para acentuar uma narrativa que, até determinado ponto, poderia ser fraca e ligeiramente esquecível. Há elementos, claro, de A vida é bela, de se imaginar uma realidade paralela àquela que se impõe. Nisso, Waititi consegue ser mais interessante do que Benigni, fazendo uma sátira que a todo momento se lembra de ser séria – e, mesmo que entregue uma mensagem evidente, o faz de maneira calibrada e emocional, capaz de suscitar sentimentos imprevistos. As cartas, os poemas e as bibliotecas fazem parte de uma possível mudança de perspectiva e as janelas que lembram olhos chorando representam a autodescoberta da vida do personagem central. Isso consegue levar a uma comoção baseada na ideia de que são as crianças que vão escrever novas páginas direcionadas ao futuro, com um novo otimismo e necessidade de revitalizar a história. É uma ideia que parece óbvia, porém Jojo Rabbit a entrega com rara ênfase e cuidado.

As ondas chega ao autoperdão e à aceitação dos erros como uma espécie de discurso religioso, como aquele ouvido na igreja que a família da história frequenta, sobre o perdão a pessoas principalmente. Ele não se baseia, porém, num discurso: sua empatia com o espectador acontece pela humanidade das situações e a delicadeza de algumas cenas do terceiro ato, quando pai e filha conversam à beira de um lago, que transcendem qualquer expectativa depositada no roteiro. Um elo entre as gerações é produzido pela sensação de que se deve reparar o quanto antes sentimentos dispersos para que eles não se reproduzam infinitamente e não sejam acentuados pelo indivíduo de modo a estagná-lo no tempo. Por isso, As ondas se mostra uma obra ao mesmo tempo contida e emancipadora de um sentimento expansivo, direcionado ao outro como poucas.

Robert Eggers utiliza influência de Bergman: a maneira como ele movimenta a câmera tem muita semelhança, além da necessidade de mesclar um cenário real, dramático, a elementos de terror. Isso era muito presente em A hora do lobo, já referido, no qual um casal morava numa ilha atormentada por estranhas figuras de uma mansão. Também é visível a influência do cinema de Béla Tarr, sobretudo O cavalo de Tuim, com a presença considerável de efeitos sonoros do vento e dos pássaros, além das ondas do mar batendo nos rochedos da ilha, inserindo o espectador no centro da situação que vivem os personagens. Por isso, a partir do terceiro ato e, principalmente, a conclusão tornam a história ainda mais notável, por toda a ousadia e o cuidado em retratar a época. A última cena é tão pictórica que poderia, como outras passagens do filme, ser emoldurada. Poderia ser apenas estilo sobre substância, sem nenhuma história verdadeira a ser contada: não é. Este é um tipo de cinema cada vez mais raro e é preciso dedicar toda a atenção quando ele surge, com alguém disposto a bancá-lo, sem fazer concessões. E apresenta duas das melhores atuações do ano, de Robert Pattinson e Willem Dafoe.

Na década passada, Sofia Coppola esteve muito interessada em mostrar certo vazio tanto na vida de um artista (Um lugar qualquer) quanto na vida de adolescentes capturados pelas imagens de ídolos superficiais (The Bling Ring). Aqui ela parece querer uma volta à solidão feminina, que evocou em O estranho que nós amamos e no início de sua carreira, mais destacadamente Maria Antonieta. Difícil imaginar que ela não se sai bem, com cenas lentas, um roteiro até certo ponto básico e atuações excepcionais de Rashida Jones e Bill Murray, este no seu momento mais contido desde Flores partidas. Rashida já se mostrou grande atriz ao lado de Andy Semberg em Celeste e Jesse para sempre, um filme delicado sobre o divórcio conturbado de dois jovens, e aqui está especialmente bem, enquanto Wayans, como seu marido, foge ao padrão das comédias pastelão que faz com seu irmão, a exemplo de As branquelas, ou os dois primeiros Todo mundo em pânico, para desenhar uma figura em relação à qual o espectador fica indefinido. É exatamente na falta de definição desses personagens que se baseia Sofia para mostrar se trabalho talvez mais intimista desde Encontros e desencontros, um retrato decisivamente elaborado sobre o casamento e seus efeitos na vida de cada um.

No novo filme de Christopher Nolan, nada chega a ser muito explicado, apesar dos diálogos visando isso, e há certas surpresas que dão a sensação de se lidar com uma novidade na maneira de apresentar os personagens, mesmo que às vezes a trilha sonora de Ludwig Göransson soe excessivamente tecnológica, não tendo o grau de variação daquelas de Hans Zimmer, e a fotografia de Hoyte van Hoytema nunca procure exatamente pontos de diversidade no uso de cores (o amarelo é predominante nos detalhes, como em O cavaleiro das trevas ressurge e Dunkirk), apresentando tudo como um futuro asséptico. Ainda assim, o design de produção e a fotografia em termos de movimentação funcionam de maneira inquestionável, sendo a obra de Nolan talvez mais bem resolvido na sua apresentação, sabendo compor as cenas, mesmo as mais confusas. Tenet é um experimento paradoxal: enquanto você tenta entendê-lo, parece que a diversão diminui. No entanto, é quando se deixa embarcar nessa mescla de sensações que o filme se torna fascinante. Há algo nele que soa, conforme suas próprias intenções, atemporal, e nisso reside sua maior importância numa época em que o tempo parece ter estagnado.

Pode-se dizer que Retrato de uma jovem em chamas é um dos mais belos filmes feitos sobre o ato da pintura. Não apenas ele mostra a aproximação entre a pessoa retratada e quem a pinta, como mostra que os traços e o jeito com que um ser humano se revela numa obra artística diz muito dele – mais do que se imagina. Céline Sciamma vai compondo a aproximação das duas com esse viés. Sophie não pode pintar Héloïse como é de praxe e precisa observá-la (seu rosto, suas mãos, sua pele) para que, depois de voltar à casa, possa fazer seu retrato escondida. É uma história simples, mas que conta não apenas a aproximação de duas pessoas com caminhos diferentes que podem ser muito semelhantes, caracterizando, ao mesmo tempo, o espaço de onde cada uma delas vem, como relata a própria essência de uma obra de arte – e se imagina o quanto a mímesis aristotélica poderia ser explicada a partir desses traços do filme.

Não há, igual às outras obras de Charlie Kaufman, uma tendência natural ao otimismo. Parece tudo um pouco seco, mas, por outro lado, é bastante emocional e mesmo sentimental, lembrando alguns instantes de A árvore da vida, de Malick. Ele não e coloca a distância dos personagens com sua série de referências intelectuais, contudo os coloca uma espiral de sentimentos mesclados entre a realidade, o imaginado e o onírico. O roteiro transmite a estranha sensação de que cada momento e decisão podem englobar todos os outros, de que por mais que nos afastemos de uma experiência ela vai acompanhar o indivíduo por toda a vida e que mesmo os arrependimentos o formam e o estruturam. E em meio a isso imagina-se uma atemporalidade pela imagem de um zelador, muito próxima, em conceito, não em realização, daquela que Kubrick faz para Jack Torrance em O iluminado. É uma constante variação entre descoberta, encontro, perda e abandono, e sua circularidade se dá nas próprias idas e vindas que, a partir de determinado ponto, marcam presença. Jake se sente incapaz de lidar com a ideia de morte, entretanto ela está em referências ao destino dos animais (inclusive na cena do jantar) ou mesmo a um sorvete que o vincula à infância e à ideia de um musical e não pode ver desperdiçado, mesmo em meio a uma nevasca.

Terrence Malick constitui uma obra à parte, na qual os filmes vão dialogando e se completando, talvez funcionando mais para o espectador que os conhece de antemão. Ainda assim, quem vai ao cinema sem conhecer o estilo de Malick se depara com uma obra em que a reconstituição de época é brilhante, desde o design de produção até o figurino, e tudo se encaixa dentro da montagem feita de forma proposital mais embaralhada. Essa montagem vai dando cadência às cenas passadas nas montanhas e aquelas em que Franz enfrenta os homens por causa do seu discurso. As paisagens a céu aberto contrastam com os muros e as celas da prisão. É a presença de uma força divina, a partir desse momento, como na obra em geral de Malick, que se manifesta nos cenários, assim como as narrações lembram confissões sobre a eternidade evocada pelos personagens por meio de suas ações. O modo como o diretor entrelaça o fim e o início traz uma comoção particular. Como toda a filmografia recente de Malick, Uma vida oculta é uma obra-prima.

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