Dias de paraíso (1978)

Por André Dick

Dias de paraíso.Cena 1

Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.

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Dias de paraíso.Cena 3

Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso,  com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.

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Dias de paraíso.Malick.Cena 3A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.

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Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.

Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures

Cotação 4 estrelas e meia

Publicado originalmente em 11 de março de 2013

Especial Terrence Malick

Terrence Malick.Especial.Diretor.Cinematographe

Terrence Malick nasceu em 30 de novembro de 1943 em Ottawa, Illinois, ou Waco, Texas, filho de Irene e Emil A. Malick, que trabalhava como geólogo. Ele estudou na St. Stephen’s Episcopal School em Austin, Texas, enquanto sua família morava em Tulsa, Oklahoma. Malick tinha dois irmãos mais novos: Chris e Larry.
Como Peter Biskind relata, em Como a geração sexo-drogas-rock’n’roll salvou Hollywood:

Ele (Malick) era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu a Terry que fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhode Escolar, e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso opressivo da culpa.

A árvore da vida.Música

A árvore da vida.Música 2

Parece o prenúncio de A árvore da vida: Malick parece ser o menino O’Brien que carrega a lembrança do irmão que gostava de música. A presença desta se dá em todos os filmes de Malick, mais diretamente pelo símbolo do piano. Desde aquele do pai de Holly, em Terra de ninguém, passando por aquele que o Sr. O’Brien utiliza para ensinar a seus filhos em A árvore da vida, até aqueles que tanto Neil quanto Marina se mostram próximos em Amor pleno, mais ainda pela utilização das composições de Carl Orff, George Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Nat King Cole e Erik Satie (em Terra de ninguém), de Wagner e Mozart (em O novo mundo) e de Zbigniew Preisner, Gustav Mahler, Ottorino Respighi, Johann Sebastian Bach e Mozart novamente (em A árvore da vida), Malick transforma a música quase numa referência para seus filmes.

A árvore da vida.Piano

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To the wonder.Piano

Malick estudou filosofia na Universidade de Harvard, e seguiu para a Magdalen College, Oxford. Depois de se desentender com seu tutor, Gilbert Ryle, a respeito do conceito de mundo em Heidegger, Wittgenstein e Kierkegaard, ele deixou Oxford sem o doutorado (em 1969, a Northwestern University Press chegou a publicar a tradução de Malick de Vom Wesen des Grundes, de Heidegger). De volta aos Estados Unidos, ensinou filosofia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, enquanto trabalhou independentemente como jornalista, escrevendo artigos para a Newsweek, The New Yorker e Life.
Malick foi iniciar a carreira de cineasta após receber um MFA do American Film Institute, em 1969, na direção de Lanton Mills. No AFI, ele conheceu, por exemplo, Jack Fisk, que seria seu colaborador de longa data, e o agente Mike Medavoy , que colocou Malick para revisar roteiros. Ele acabou sendo creditado pelas primeiras versões de Dirty Harry (1971), Deadhead Miles (1972) e Meu nome é Jim Kane (1972), além de ter feito uma das primeiras versões de Great balls of fire, sobre a trajetória de Jerry Lee Lewis.

Terra de ninguém.Filme 3

Depois do roteiro de Deadhead Miles, ele conseguiu realizar seu primeiro filme, Terra de ninguém, com a ajuda do produtor Ed Pressman:

“Malick havia escrito um roteiro chamado Terra de ninguém. Queria que Pressman financiasse o projeto. Brian estudou Pressmann com a intensidade de um zoólogo e lhe deu alguns conselhos. Desajeitado como era, Pressman parecia um convite aberto ao abuso, e De Palma sugeriu que Malick alternasse elogios com maus-tratos. Conta-se que Malick, que tinha o dobro do tamanho de Pressman, certa vez tinha se levantado de uma cadeira segurando a orelha de Pressman e fazendo força para se erguer.
Malick convenceu Pressman a financiar Terra de ninguém […] Foi filmado com minguados recursos próprios num total de 350 mil dólares, no Colorado. Não havia dinheiro suficiente nem para dailies. Era a primeira experiência de Malick como diretor, mas estava determinado a fazer tudo do seu jeito. Certa vez, disse a uma pessoa da equipe: ‘Vou colocar (o ator) na frente da janela, então, quando escurecer, você pode continuar a filmar, você vai ter mais luz’.

‘Terry, você pode colocá-lo onde  quiser, a gente ilumina.’

‘Não precisa me dizer isso. Já fiz dois filmes de 8mm.’

[…]

Malick estava obcecado pelo filme. Mesmo quando o dinheiro acabou, ele continuou filmando cenas de cobertura sozinho, com a ajuda de alguns locais”.

Elogiado no Festival de Cinema de Nova York, Terra de ninguém obteve inúmeros elogios, embora Pauline Kael considerasse (não sem nenhuma exatidão) um filme frio. Roger Ebert o colocou na sua galeria de grandes filmes, assim como Dias de paraíso (embora seja A árvore da vida que figure no seu Top 10 de todos os tempos). A Warner acabou por comprar o filme.
A Paramount produziria o seu filme seguinte, Dias de paraíso, que se passa na Fazenda de Panhandle, no Texas, no início do século passado.

Dias de paraíso.Casa

As filmagens foram extenuantes e complicadas:

“A produção começou no outono de 1976. Como De Palma, Malick era um diretor que trabalhava essencialmente dentro da sua cabeça. Os atores e a equipe achavam-no frio e distante, ele estava tendo dificuldades em conseguir desempenhos razoáveis. Com duas semanas de filmagem, bastava olhar para os dailies para ver que nada estava funcionando, parecia teleteatro ruim. Malick decidiu jogar fora o roteiro, ir na direção de Tolstoi em vez de Dostoievski, amplidão no lugar de profundidade, e filmou quilômetros de película na esperança de poder consertar os problemas na mesa de montagem.
A produção seguia a passo de cágado. As velhíssimas ceifadeiras mecânicas viviam quebrando, o que significava que as filmagens só começavam no final da tarde, com poucas horas até o fim do dia até que ficasse escuro demais para continuar; apesar disso, as imagens embebidas da luz dourada do poente, eram lindas, ainda que o diretor de fotografia Nestor Almendros estivesse ficando cego. Um de seus assistentes tirava polaroides da cena, que ele examinava usando óculos fortíssimos para fazer os ajustes necessários.

[…]

E depois ainda teve a montagem, que levou mais de dois anos – Malick era famoso por sua indecisão. Ou apenas meticuloso, dependendo de quem esteja pagando as contas.

[…]

À medida que mais e mais pedaços de diálogos iam para o lixo, a trama tornava-se incompreensível e Malick se debatia entre várias maneiras de trazer alguma lógica para a trama, finalmente optando por uma voz over”.

Após o lançamento de Dias de paraíso, Malick começou a desenvolver, também para a Paramount, o filme Q, que pretendia contar a origem da Terra, o que acabou servindo como projeto para a A árvore da vida. No entanto, nessa época, ele viajou para a Europa e refugiou-se em Paris, onde ficou recluso um bom período de sua vida, quando seu desaparecimento havia já se tornado conhecido. Em 1997, regressou com Além da linha vermelha.

Além da linha vermelha.Cena 2

O novo mundo.Cena 4

Antes de realmente filmar A árvore da vida, Malick chegou a se envolver com o filme sobre Che Guevara, que seria, afinal, feito por Steven Soderbergh. Em meio aos preparativos, ele teve a oportunidade de realizar O novo mundo.
Contando a história romântica entre o oficial inglês John Smith e Pocahontas, O novo mundo teve três versões de tamanhos variados e foi nomeado apenas ao Oscar de melhor fotografia. Embora interessante, ele não tem o magnetismo dos demais filmes de Malick.
Sob o ponto de vista do magnetismo, há uma notória influência da pintura de Edward Hopper em Malick, assim como em David Lynch. Vejamos, por exemplo, que a casa de Dias de paraíso (imagem acima) dialoga com Hopper, da pintura “House by the railroad”.

Edward Hopper.House-by-the-railroad

E os trilhos de trem, habituais em Hopper, tanto no quadro acima (em frente à casa) como em “Queensborough bridge”, como se Malick trabalhasse a ideia de travessia, de continuidade e dois pontos interligados, como seus personagens:

Edward Hopper.Queensborough Bridge 2

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Cena

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Malick

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 10

Em Amor pleno:

To the wonder.Trilhos

Malick também é influenciado pelo pintor Andrew Wyeth, sobretudo em Dias de paraíso e Amor pleno (abaixo as pinturas  “Christina’s world” e “Wind from the sea”, esta capturada em vários instantes de Amor pleno quando os personagens Neil e Marina ficam próximos às cortinas):

Andrew Wyeth.Christina's World.Pintura

Andrew Wyeth.Wind from the sea

A pintura, inclusive, é a profissão do pai de Holly, e uma cena-chave de Terra de ninguém é quando ele conversa com Kit enquanto faz um de seus trabalhos, num imenso outdoor com uma imagem tipicamente norte-americana em meio a uma planície.

Terra de ninguém.Cena 4

Um dos filhos da família O’Brien também pinta numa página em A árvore da vida, criando, em seguida, um conflito:

A árvore da vida.Pintura

Com essa influência pictórica, vem a simbologia do contato com a natureza, sobretudo, em todos seus filmes, com a água, elemento que revigora os personagens em uma determinada trajetória. Vejamos:

Em Terra de ninguém:

Terra de ninguém.Filme 7

Em Dias de paraíso:

Dias de paraíso.Água

Em Além da linha vermelha:

Além da linha vermelha.Filme 6

Em O novo mundo:

O novo mundo.Cena 1

Em A árvore da vida:

A árvore da vida.Cena 11

Em Amor pleno:

To the wonder.Água

Junto com a presença da água, a filmografia de Malick compõe personagens envolvidos por incertezas e ligações metafísicas. Se o primeiro casal de sua carreira, em Terra de ninguém, cometia crimes pelo interior dos Estados Unidos, mergulhados numa espécie de vazio contínuo, diante das paisagens mais belas, em Dias de paraíso o Éden era ameaçado por gafanhotos, numa cena de origem bíblica. Em Além da linha vermelha, a natureza fazia o papel de Deus em meio à batalha, com suas árvores e rios, assim como em O novo mundo, com a figura de Pocahontas auxiliando neste contato. Em A árvore da vida e Amor pleno, a base religiosa é ainda mais forte, com as figuras do luto e do amor sendo compreendidos à luz da igreja, não ligando-se a uma determinada religião, mas, de forma mais ampla, à espiritualidade e à criação do mundo. Os personagens de Malick, ainda assim, não são porta-vozes de alguma ideia religiosa, mas sim vagam em meio à incerteza. É de se pensar que os casais de Malick (Kit e Holly em Terra de ninguém; Bill e Abby em Dias de paraíso; John Smith e Pocahontas em O novo mundo; o casal O’Brien de A árvore da vida; e Neil e Marina em Amor pleno) jamais conseguem desenhar, a partir de suas relações, uma verdade sobre o universo; pelo contrário, parecem sempre perseguir um horizonte inalcançável.

Terra de ninguém.Filme 4

Dias de paraíso.Cena 2

O novo mundo.Filme 3

A árvore da vida.Casal

To the wonder.Malick 16

A fotografia de seus filmes é extraordinária. Também com costume de trabalhar com fotógrafos diferentes a cada filme, tem repetido a parceria com Emmanuel Lubezki desde O novo mundo, e A árvore da vida e Amor pleno se constituem em dois dos mais belos filmes já feitos. Isso para não atestar que o trabalho de Brian Probyn, Tak Fujimoto e Stevan Larner para Terra de ninguém; de Nestor Almendros para Dias de paraíso; e de John Toll para Além da linha vermelha são irrepreensíveis.
As paisagens dos filmes de Malick são sempre familiares. Waco, onde teria nascido, foi utilizado em A árvore da vida, assim como Smithville. Seu raríssimo Amor pleno foi filmado em Tulsa, Oklahoma, onde morava sua família. Perceba-se nos filmes Terra de ninguém, Dias de paraíso, A árvore da vida e Amor pleno que Malick mostra a paisagem do Texas – e a própria obsessão de Malick por figuras do interior ou inseridas no interior. Mesmo em Além da linha vermelha, com a paisagem da II Guerra Mundial, a natureza cria uma redoma ao redor dos personagens, e os flashbacks sempre tentam alcançar o outro lado do oceano.
Sob esse ponto de vista, parece que as voice overs adotadas por Malick em seus filmes também existem para que não haja um excesso de diálogos que interfiram diretamente no ambiente, resguardando sempre uma aproximação à distância. Se essa voice over foi utilizada em Dias de paraíso, que ele julgava problemático, é de se pensar que constituiu, desde o início, uma referência original de sua obra, uma maneira de reelaborar a filosofia que existia em seus roteiros de modo mais transparente. O filme em que este elemento parece menos orgânico é O novo mundo.

A árvore da vida 8

A árvore da vida.Cena 13

Malick ganhou a Palma de Ouro de diretor por Dias de paraíso e a principal por A árvore da vida. Enquanto Além da linha vermelha e A árvore da vida foram indicados aos Oscars de melhor filme e direção, Dias de paraíso e A árvore da vida foram indicados nessas mesmas categorias ao Globo de Ouro. Recebeu o Urso de Ouro por Além da linha vermelha e o Prêmio Signis do 69º Festival Internacional de Cinema de Veneza por Amor pleno.
Ao contrário de David Lynch, com quem compartilha afinidades estéticas e está se dedicando apenas à carreira musical e de diretor de videoclipes no momento, Malick já tem três projetos em filmagem ou em processo de montagem. Um deles se chamava Lawless, com Ryan Gosling, Natalie Portman, Cate Blanchett e Rooney Mara, atualmente ainda sem título. O outro é Knight of cups, com Christian Bale. Há ainda o documentário Voyage of time, com imagens feitas para a A árvore da vida, sobre a criação da terra, com a narração de Brad Pitt, e que vem sofrendo alguns problemas de produção.
Conhecido por não conceder entrevistas, o que é estipulado em seus contratos, Malick também dificilmente se deixa fotografar, sendo raras suas aparições. Podemos vê-lo numa ponta de sua estreia, Terra de ninguém.

Terra de ninguém.Terrence MalickDe 1970 a 1976, Malick foi casado com Jill Jake; de 1985 a 1998, com Michele Morette; e é casado atualmente com Alexandra  “Eckie” Wallace.
A partir de amanhã, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por Terrence Malick.