O mestre (2012)

Por André Dick

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Em Sangue negro, filme anterior a O mestre, de Paul Thomas Anderson, Daniel Day-Lewis interpreta Daniel Plainview, que vai explorar uma região com potencial petrolífero, no Oeste dos Estados Unidos, onde há um jovem que deseja ser pastor, Eli Sunday (Paul Dano). Plainview e Sunday são figuras controvertidas: suas ações, em determinado momento, se misturam e o vazio que os acompanha parece contaminar as pessoas que os cercam. São personagens delineados, no fim das contas, com uma complexidade quase ausente na cinematografia recente e se intensificam, sobretudo com a cena do batismo, que revela a verdadeira intenção do filme.
Com inúmeros silêncios interrompidos pela música dissonante de Jonny Greenwood, guitarrista do grupo Radiohead, O mestre volta aos elementos básicos dessa obra-prima de Anderson: um  cinema lento, simétrico, mas de forte magnetismo sensorial, baseado na ligação entre dois personagens. Nesse sentido, O mestre é quase uma continuidade daquele, na relação de suas vidas com a violência moral e que parece não encontrar sossego nem na imagem de um Deus protetor ou de um mestre capaz de ajudar o indivíduo a escapar de seus problemas.
Freddie Quell (Joaquin Phoenix) é um homem problemático. Ele serve na Marinha dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e Anderson o focaliza numa praia, misturando bebida com água de coco. Depois, ele simula sexo com uma mulher feita com areia, em meio aos outros marinheiros, e se masturba na beira da praia. Em poucos minutos, Anderson contextualiza a volta de Freddie deste cenário, e os resultados psíquicos não são agradáveis. Vida pós-Marinha, ele se torna um fotógrafo, agora com o vício de misturar álcool com material fotográfico, e, munido de uma alquimia alcóolica, precisa fugir com urgência de outro lugar. Com o corpo arqueado, o rosto abatido e magro, ele é o retrato ao avesso das fotografias que registra. Certo dia, vagando sem rumo, ele vê uma festa num barco e, regressando à imagem de Marinha, adentra nele. É a chance que o destino lhe oferece para conhecer Lancaster Dodd (Phillip Seymour Hoffman), uma espécie de mestre de uma seita chamada A Causa. Sempre acompanhado pela família – a mulher Peggy, grávida (Amy Adams), a filha Elizabeth (Childers Ambyr), que está para se casar, e o filho, Val (Jesse Plemons) –, seu objetivo é propagar uma ciência fundamentada na psicologia, que poderia entender vidas passadas e ligação com outros planetas. A Causa seria um outro nome para a Cientologia, a polêmica seita, mas ela realmente mantém-se mais como um núcleo de abstração e enigmas.
Em nenhum momento, há uma explicação exata para o interesse de Freddie por querer ficar entre os familiares e seguidores de Lancaster, o que se esclarece exatamente por ambos serem, a princípio, exatamente iguais. Nesse sentido, Freddie fica no navio porque Lancaster gostou da bebida singular que ele prepara. Enquanto Freddie se acomoda nas cadeiras para ouvir a eloquência de Lancaster, ele projeta o que seria se conseguisse fazer o mesmo. Existe a curiosidade de que o autor original da Cientologia, L. Ron Hubbard, serviu na Marinha, assim como Freddie, e lançou, exatamente em 1950, ano em que se passa a maior parte de O mestre, um culto nos Estados Unidos. Inegável perceber o quanto ambos os personagens mantêm de proximidade mesmo sem nunca exatamente se aproximarem.

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Com todos esses aspectos, há uma complexidade maior do que aquela primeira premissa de Sangue negro (a do conflito e/ou ligação entre religião e capitalismo). Em O mestre, existiria a ligação entre um universo mais amplo e a regeneração. Em Anderson, esses conceitos se constroem, muitas vezes, lado a lado. Temos, na superfície de Sangue negro, a exploração de petróleo sendo feita ao mesmo tempo em que uma casa é construída para abrigar seguidores do pastor, na única sequência mais iluminada do filme, caracterizado por cores escuras. Em O mestre, Lancaster é também cobrado por desvios de dinheiro anteriores e quer manter seu olhar numa reta para a autodescoberta, sem avisar exatamente a quem ela interessa. De qualquer modo, o foco é nos principais personagens. Diante da violência moral potencializada pelas atuações de Day-Lewis e de Paul Dano num, e Phoenix e Hoffman em outro, em dueto fantástico, no entanto, firma-se a filmografia de Anderson, que é comparado a Kubrick e Altman e não nega suas influências. Desde o ator pornô vivido por Mark Wahlberg em Boogie Nights, até o conselheiro sexual interpretado por Tom Cruise em Magnólia, e mesmo a revolta pessoal de Barry Egan contra um diretor de telessexo em Embriagado do amor, temos por trás das câmeras alguém que busca o impacto sem contorno definido e uma constelação de personagens poucas vezes vista.
Em O mestre, há, em igual proporção, uma tensão amorosa implícita entre os dois personagens centrais. Ela não chega a se traduzir em palavras, mas a obsessão de Lancaster por Freddie percorre todo o filme, embora Anderson evite traduzi-la em confissões e palavras. Lancaster é Dodd (uma mistura entre God e dog); o sobrenome de Freddie é Quell (“suprimir”, “subjugar”, “dominar”); o do barco em que ambos se encontram é “Alethia” (que remete ao significado de “verdade” e “desocultação”, em grego). Lancaster diz a Freddie: “Você é meu protegido e minha cobaia”. Ele deseja experimentar com Freddie o processamento, técnica de seu programa, com uma série de perguntas, inclusive repetidas à exaustão, e neste momento o filme de Anderson consegue adquirir uma tensão. Pois vemos, detalhadamente, um homem querendo entrar na mente de outro, para trazer seu passado à cena, numa espécie de hipnose. Freddie passa a seguir Lancaster como se fosse uma espécie de sombra, deslocado das fotografias, embora seja aquele que registre tudo. Se antes ele parecia um fantasma perdido pelo mundo, ele, apesar do oferecimento de regeneração, não melhora. Acusado de simples animal pelo mestre, na verdade ele passa a fazer exatamente o que Lancaster deseja, mesmo sem dizer, pois não precisa, à medida que ambos se assemelham. É extraordinária uma sequência que se passa entre uma festa em Nova York, em que Lancaster é cobrado por um homem a respeito de suas promessas, e faz um discurso em que tenta não transparecer nenhuma ideia manipuladora, devolvendo as acusações em igual tom, e sua ida à casa de Helen Sullivan (Laura Dern), na Filadélfia, onde haverá uma festa estranha, acenos para o Kubrick derradeiro, e onde Peggy terá uma conversa reveladora com o marido, culminando num ponto crítico, em que Anderson filma os personagens, numa determinada situação, lado a lado, sendo que um age com o sentimento implícito do outro. Freddie é um personagem, sem dúvida, subjugado e seu vício no álcool é suplantado por um desejo furtivo de voltar a uma reminiscência de infância, a um amor perdido, antes da loucura da Guerra e permanentemente interessado no que a Causa considera animalesco (as conversas na Marinha já o anunciam). Em determinado momento, ele precisa prometer que não vai beber, mas, como um filho rebelde, precisa ir à varanda experimentar a nova mistura. É preciso, para ele, punir os pais, mesmo sem ser filho; é preciso fugir ainda mais, para fora do convés e dos trilhos, a pé ou não, e, ao contrário do que diz seu sobrenome, não ser subjugado. Como em Sangue negro, o Oeste, mais uma vez, significa um encontro com o passado (um livro enterrado em meio a rochas) e a fuga.

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Há, em O mestre, um sentimento de que existe uma lacuna entre os personagens e as situações, como se algo maior a ser dito estivesse vagando. Para alguns, Magnólia pode ser um filme sobre um idoso adoentado e um jovem arrependido, em meio a uma chuva de sapos bíblica, e Barry Egan, de Embriagado de amor, apenas o dono de uma empresa feliz em meio a prateleiras do supermercado por descobrir uma promoção de milhas para viagens aéreas, mas sabemos que Anderson consegue apresentar mais do que isso. Em O mestre, as sensações, como a própria conversa sem piscar os olhos entre Lancaster e Freddie, abrangem uma atemporalidade e os cenários podem significar também sensações de descoberta, medo, vida e morte. Tudo pode também se concentrar no “eu”, mas sempre depende de qual “eu” está se falando. A caminhada entre a parede e a janela de uma casa pode esconder, também, a recuperação ou o mergulho na loucura substancial dos personagens.
Tecnicamente, O mestre é realizado, em grande parte, de closes nos rostos dos personagens, revelando em detalhes a figura dos personagens principais, e grandes aberturas para a planície e para o oceano, apoiado na fotografia impressionante de Mihai Malamaire Jr. (colaborador do Coppola mais recente, de Tetro e Twixt), na direção de arte irretocável de Jack Fisk (que trabalhou em Sangue negro e A árvore da vida, por exemplo) e David Crank (Lincoln), além do figurino, que complementa cada sequência, de Mark Bridges (habitual colaborador de Anderson). Anderson tem uma noção exata do que deseja mostrar e é um dos maiores cineastas contemporâneos justamente por causa disso. Seu controle sobre os atores é absoluto, e não se poderia deixar de dizer o que é até previsível: Phoenix tem a atuação de sua carreira (antecedida por Johnny & June), particularmente melhor, porque também de maior risco, do que a de Day-Lewis em Lincoln, e Phillip Seymour Hoffman volta a surpreender, sem utilizar nuances já reveladas em outros papéis. Amy Adams, plenamente antipática e sem dizer quase nenhuma frase com sentido que não seja de manipular quem está à volta, é uma atriz completa.
Difícil ver um filme em que os personagens, e os atores, estão, ao mesmo tempo, expostos e escondidos, em que por vezes se revelam e nesta revelação está seu esconderijo. As relações entre eles racham ou se complementam ao longo do filme, e o espectador precisa integrar as peças para dar um significado a um panorama que não se apresenta nunca definitivo. Nenhum deles, ainda assim, funcionaria sem a direção e o roteiro modulado e discreto de Anderson, aberto a lacunas e interpretações diferentes, sem trazer uma aula ou autoexplicações desgovernadas, o que faz com que se assemelhe a filmes com uma base filosófica mais densa, embora não traga um discurso preparado para que se possa introduzi-la de forma mais eficaz. Há uma espécie de secura amarga em muitas passagens, ou um corte no andamento, como o momento em que os personagens se perguntam quem é, afinal, Freddie Quell. Para Lancaster, ele precisa ser salvo; caso contrário, a falha pode ser de todos. Não se entende por que ele coloca o subjugado nesta situação, entretanto parece ser claro que, para Anderson, ele não consegue viver sem sua própria sombra, o ser em que ele pode, afinal, esconder seus segredos, como numa garrafa vazia, aquele que, definitivamente, pode entendê-lo, ou desmascará-lo.
Em determinado momento, a seguidora Helen pergunta a Lancaster porque, no processamento, ele mudou “lembrar” por “imaginar” outras vidas. Para Freddie, se há Doris Day, pode também haver Ruth Etting. Entre o oceano e uma mulher desenhada com areia nas costas do Pacífico, O mestre atinge uma espécie de linha subliminar em que pode se concentrar tudo. Como Sangue negro, atinge mais: é uma obra-prima.

The master, EUA, 2012 Diretor: Paul Thomas Anderson Elenco: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Laura Dern, Jesse Plemons, Childers Ambyr, Rami Malek, Jillian Bell, Kevin J. O’Connor, W. Earl Brown Produção: Paul Thomas Anderson, Megan Ellison, Daniel Lupi, JoAnne Sellar Roteiro: Paul Thomas Anderson Fotografia: Mihai Malaimare Jr. Trilha Sonora: Jonny Greenwood Duração: 138 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Annapurna Pictures / Ghoulardi Film Company

Cotação 5 estrelas

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2 Comentários

  1. Melhor review q eu ja li sobre esse filme! Parabéns 🙂

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